TÔ ENTENDENDO POR QUE FAZER JEJUM É TÃO DESAFIADOR

ACHO QUE O MAIOR DESAFIO DE JEJUAR É QUE QUANDO DIMINUO A INGESTÃO DE COMIDA, DIMINUO MINHAS BORDAS E, AUTOMATICAMENTE, MINHA PERCEPÇÃO DE "EU" TAMBÉM COMEÇA A DIMINUIR.

Fê Chammas
ABRÁÇANA
8 min readApr 3, 2020

--

Áudio do texto a seguir para quem quiser escutar.

Faz pelo menos dois anos que faço jejum com frequência. Uma vez por mês, passo um dia todo sem comer — a princípio fazia na lua cheia, ultimamente tenho feito na lua nova (pra marcar ritmo e observar como elas me influenciam).

Cada experiência mensal sem comer dura somente cerca de 36 horas, mas já tem sido o suficiente para me trazer alguns clarões.

O principal deles é em relação à minha ansiedade quando estou com fome.

FOME E ANSIEDADE

Num dia comum, quando bate aquela fome, fico alerta e sobe o sinal de “preciso matar essa fome já” e, se eu não consigo fazê-lo, fico inquieto, possivelmente ansioso e por vezes irritado.

Num dia de jejum, isso simplesmente não acontece.

Parece que eu mudei uma chavinha dentro de mim e, por estar comprometido com a ideia de que não vou comer naquele dia, quando a fome bate, eu simplesmente reconheço que ela chegou e sigo minha vida.

Quando me engajo em alguma atividade, a fome geralmente desaparece e, em geral, me percebo mais produtivo, mais atento e com mais disposição pra fazer as coisas.

Pouco a pouco venho aprendendo também que tenho um bom estoque pra lidar com a tal fome que sinto e que não preciso ficar em hibernação — posso praticar yoga, pedalar, dar aula, jogar vôlei, correr, dançar.

Na maior experiência que tive de jejum, a Busca da Visão em que fiquei 4 dias e 4 noites só na água, muitas coisas novas e mais profundas apareceram.

A quantidade de sono diminuiu, os sonhos trouxeram mensagens bem claras, as sensações no corpo ficaram muito a flor da pele e, na ocasião, em que eu estava na floresta, sozinho e sem abrigo, passei a notar e me conectar com coisas menores e muito mais sutis que estavam acontecendo ao meu redor, naquele ambiente, que em geral eu não percebo.

Escrevi bastante sobre isso aqui.

A grande pira que me fez querer escrever esse texto é que eu tô fazendo um curso chamado Marma Vidya — Uma Abordagem Energética e Emocional do Ayurveda com o querido Gil Kehl.

Marmas são pontos vitais do corpo, um total de 107, de acordo com a tradição indiana da medicina Ayurveda.
Vidya significa literalmente “ver” (é a origem da palavra vídeo) e se refere a sabedoria, conhecimento.

Quinta-feira passada, dois dias depois da lua nova em que fiz jejum, começamos a estudar Arqueologia Emocional e o fato é que eu me emocionei com o que nos foi apresentado — não é figura de linguagem, lágrimas realmente transbordaram pelos meus olhos.

Vou tentar ser didático e claro (tô achando o desafio bem grande).

ARQUEOLOGIA EMOCIONAL

Arqueologia Emocional é um estudo sobre como as experiências emocionais que tivemos ao longo da vida vão moldando nossa estrutura corporal através da qual seguimos experimentando o mundo e a vida. Essa estrutura não é composta só pelo corpo grosseiro, mas também pelo corpo sutil e o causal.

O corpo grosseiro é a ferramenta mais acessível que guarda esse histórico emocional e, através dele, podemos acessar pistas das coisas que nos aconteceram e ainda vivem em nós e através dele podemos inserir novos estímulos para cuidar de possíveis marcas e feridas que estejam travando o fluxo de vida em nós.

SAÚDE É EQUILÍBRIO E INTERDEPENDÊNCIA

Um dos conceitos que o Gil tem trazido ao longo do curso é o de que saúde não é um conceito estático, mas sim um equilíbrio entre pulsões de vida, um movimento de interdependência entre nós e todas as coisas com que nos relacionamos, direta e indiretamente.

Gostei das seguintes definições que ele trouxe:
Num nível transcendental, saúde depende de um equilíbrio entre comunhão e liberdade.
Num sentido terapêutico, saúde depende de um equilíbrio entre vínculo e autonomia.

Escutando isso, me dei conta que essa dinâmica de troca, que ora vai na direção do individual (liberdade e autonomia) e ora vai na direção do coletivo e da interconexão (comunhão e vínculo), está em muitas coisas.

Uma célula faz isso, deixando entrar as coisas que precisa para se sustentar como célula, para manter sua autonomia e seu nível de liberdade, e devolvendo pro meio exterior o que ela não precisa e tão pouco pode dar conta, mas que serve de insumo para outros organismos, reforçando seu vínculo e sua comunhão com coisas que não são ela mesma.

Nossa respiração também é assim. Trazemos ar com oxigênio pra dentro para nos manter funcionando como organismo, autônomos, e devolvemos ar cheio do gás carbônico que não nos serve e não podemos dar conta para que outros seres o utilizem para sua autonomia e que, por sua vez, ao exercer seus processos vitais, produzem mais oxigênio (entre muitas outras coisas) para nosso funcionamento, reforçando também nosso vínculo e comunhão.

A saúde fisiológica também se enquadra nisso quando pensamos que um corpo está funcionando bem em um determinado contexto — com um determinado contexto de temperatura, umidade, microorganismos, relações sociais e afetivas e com uma série de práticas próprias de alimentação, descanso, exercício, entretenimento, etc. Se algo do contexto ou das práticas pessoais muda, tipo a estação do ano ou a alimentação, o corpo (autônomo) precisa readaptar suas trocas com o meio (vínculo) ou ele corre o risco de ficar doente.

Posso ver essa dinâmica até mesmo em meus padrões psicológicos.
Quando experimento muito o vínculo — com pessoas, emprego, rotina — , tendo a criar um anseio por autonomia — não ter que dar satisfação a outros e poder fazer as coisas como quero. Quando estou muito livre, sem regra, percebo a falta que me faz uma rotina e corro atrás dela.

COMO ISSO MEXE COM MINHA SENSIBILIDADE?

O que existe entre comunhão e liberdade, entre vínculo e autonomia, são bordas.

Bordas dão formas as coisas e ajudam a delimitar um espaço de autonomia.

Bordas são o que permitem que a célula possa chamar um conjunto de organelas — mitocôndria, citoplasma, etc. — de “uma célula”.
Bordas são o que fazem com que eu possa me chamar de “eu” e, nesse caso mais específico, minha borda mais tangível é meu corpo físico, grosseiro, que separa o que é parte de mim e o que não é, num dado momento. A parte densa mais externa da minha borda é minha pele, que está em contato com o ar, com minha roupa, com o chão, com as pessoas em quem toco e que permite trocar água e calor com o ambiente.

Uma reflexão legal sobre as bordas é que elas são o que nos permite perceber a passagem do tempo.

Pensa comigo: todas as moléculas de água que existiam na época dos dinossauros ainda existem, mas com outras bordas. O meu cocô de hoje, que nesse estado é uma excreção humana, logo pode se decompor, passando a integrar as bordas de microorganismos, ser absorvido por plantas, passando a integrar suas bordas e, posteriormente, se tornando outros alimentos, integrando então suas bordas.

Portanto, nada se cria de fato.
A matéria simplesmente se reorganiza com novas bordas.

E se percebemos a passagem do tempo a partir da estrutura das coisas e de suas atividades vitais, que são determinadas por suas bordas, se não houvessem bordas, possivelmente não teríamos a ideia de tempo como a conhecemos

BORDAS SÃO O LIMITE DO EU

Afora esta brisa do tempo, o ponto aqui é que nosso corpo grosseiro (sthula sharira, na tradição Ayurveda) é uma das bordas que nos faz seres autônomos e faz com que tenhamos essa experiência de “eu” como algo separado, delimitado, além da interdependência que existe entre nós e toda a teia da vida existente fora de nossas bordas.

E esse corpo grosseiro é regido, como disse o Gil, pela “bainha” do alimento. Ou seja, pelo que comemos.

Tcharam: aqui chegamos no ponto chave.

O que acontece quando não comemos é que — além de emagrecer, passar fome, ficar ansioso, etc. e etc. — nós diminuímos a força dessa borda num nível sutil e isso nos permite sair um pouco do pólo liberdade/autonomia/eu e entrar em contato com o outro pólo, o da comunhão/vínculo/interdependência com o todo.

Um recém nascido é um exemplo bem claro disso.

Ele passou 9 meses no útero da mãe, em uma experiência total de simbiose, vínculo e comunhão e, mesmo fora do corpo dela, ainda segue por um bom tempo com uma percepção de unidade com ela.
Seu nível de presença é muito profundo e ele deixa fluir todos os impulsos viscerais que passam por ele.

Se olharmos seu corpo, percebemos claramente que suas bordas não estão completamente formadas — a moleira está aberta, não há dentes em sua boca, muitos ossos ainda precisam se juntar para reforçar sua estrutura — e sua percepção de "eu" possivelmente é zero ou muito próxima disso.

Seria coincidência que um bebê, que não tem suas bordas totalmente delimitadas, tampouco possui uma percepção de "eu".

Num nível sutil, seu corpo não completamente formado, sua borda menos firme, é parte do que o permite ter essa experiência transcendente de presença profunda e conexão (vínculo/comunhão) com todo o resto que não é “ele”.

Conforme ele cresce e seus corpos se desenvolvem, suas bordas se afirmam e passar a reafirmar sua percepção de eu, sua liberdade e sua autonomia. Consequentemente, o bebê, conforme cresce, vai diminuindo seu nível de presença e seu estado de comunhão e vínculo com o todo mais sutil.

UMA VIA DE MÃO DUPLA

Levando tudo isso em consideração, fico refletindo sobre a cultura em que fui criado e o que vejo ao meu redor.

Vejo uma cultura extremamente materialista, no sentido do acúmulo e consumo de bens, de experiências e de comida (lembra que o alimento é o que reforça o corpo grosseiro, nossa borda mais densa).
Não me parece coincidência que essa mesma cultura é a cultura que hipervaloriza o indivíduo — ou, nos termos, hipervaloriza liberdade e autonomia.

Através dos acúmulos que tanto valorizamos, reforçamos nossas bordas e fica cada vez mais difícil permitir que sejamos influenciados pelo que acontece além de nós, assim como fica mais difícil deixar que os impulsos de vida que acontecem dentro de nós sejam expressos de maneira íntegra.

Com isso, menos coisas “entram” e menos coisas “saem” através dessas bordas reforçadas, reafirmando nossa percepção de separação, ficando cada vez mais difícil de nos percebermos conectados, interdependentes.

Aí penso sobre o quanto é desafiador pra mim — e pra grande maioria das pessoas que conheço — expressar minhas emoções, dar vazão ao que pulsa em mim de uma maneira saudável. E fico achando que é porque minhas estruturas — cultural, psicológica, física — não facilitam isso.

SUPORTAR O SUTIL É MUITO DESAFIADOR

A última reflexão que me vem é que, em última instância, o maior desafio de jejuar não é exatamente passar fome ou ficar fraco ou correr o risco de minhas funções vitais não funcionarem (até porque se o jejum for feito de maneira cuidadosa e responsável, por uma pessoa com a saúde em ordem, essas coisas não vão chegar a extremos).

O maior desafio de jejuar é suportar o contato com o sutil.

É sustentar a pulsão do sutil nos meus corpos, que não têm estruturas pra isso.
É sustentar a sensação de conexão com as coisas que não são "eu", principalmente aquelas das quais tenho aversão, que eu preferia que não existissem.
E, acima de tudo, acho que o maior desafio de jejuar é que quando diminuo minha borda, automaticamente a minha percepção de "eu" — que é tão reforçada por tudo que sou, faço, sei, tenho e conheço, e à qual sou tão apegado — também começa a diminuir.

Aí a sensação que tenho é de morte.
Morte de como me conheço, de como acho que sou.
E morrer dói.

Mas, como tenho aprendido com o Gil, no centro da doença existe a saúde — e, portanto, no centro da morte existe a vida.

Então bora seguir morrendo, mesmo que doa.
Quem sabe não descubro o que é a vida.

--

--