Crônicas de Morte e Música: Antipatia pelo Diabo, ou as pedras se arrependeram de rolar?

Luiz Carlos González
a brasa
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6 min readJan 25, 2023

No final dos 60’s, a morte de um jovem negro de 18 anos deixou evidente os limites da paz e do amor da contracultura norte-hemisférica. E veja só quem eles foram culpar…

https://www.dailymail.co.uk/news/article-3750676/The-dark-truth-Jagger-Altamont.html
Mick Jagger observa parte do bando de motoqueiros tumultuando o palco em Altamont; dividindo a imagem, entre Jagger e os Hells Angels, uma representação clássica de Satanás.

Permita que eu me apresente mais adequadamente. Espero que você saiba o meu nome, e se não souber, espero que possa adivinhar.

Eu tava lá quando o Diabo levou a culpa pelo o que a revista Rolling Stone chamou de “o pior dia da história do rock”. Era pra ser um tipo de “Woodstock”, acontecendo alguns poucos meses depois do evento original. Dezembro do mesmo ano de 1969, para ser mais preciso.

A “Woodstock da Costa Oeste”.

Apenas um épico e gratuito concerto de rock com as principais bandas da época para celebrar a Paz, o Amor e a Música. Acontece que pra esse evento gratuito, que teria em seu palco os artistas de maior sucesso nos EUA do final dos anos 60, e reuniu mais de 300.000 pessoas, na cidade de Altamont, na Califórnia, a organização do evento e a banda principal escolheu pra fazer a segurança a gangue de motoqueiros Hells Angels, e decidiu que eles seriam pagos com 500 dólares em cerveja cada um.

Repito: deixaram a segurança do evento sob responsabilidade da gangue de motoqueiros mais temidamente lendária e pagaram a cada um deles com 500 dólares de cerveja. Isso na época era bebida para perder a consciência umas duas vezes e ainda levar pra viagem.

Veja se esse não é o cocktail molotov da má decisão. Só precisava da mão estúpida o suficiente para riscar o fósforo.

A consciência dos anjos ainda mergulharia em outros níveis de alteração. Os caras da gangue, além de consumirem todo o seu pagamento antes da banda principal se apresentar, já estavam estado de Lucy in The Sky With Diamonds graças à encomenda de um traficante de Los Angeles que fora para Altamont, atender especialmente aos “Hells”.

Quando os astros do espetáculo principal subiram ao palco, a Paz já tinha virado fumaça e o Amor tinha sido pisoteado e afogado na lama. A única que resistia aos trancos, barrancos, gritos, microfonias e longas pausas, era a Música, coitada.

Ela foi muito forte.

Ela entendia o significado da sua presença ali. Entendia o seu papel com aqueles artistas e jovens que não queriam mais o mundo funcionando do jeito que vinha funcionando até então. Mas também queriam curtir, e curtir muito o pedaço de paraíso que descia dos céus sempre que um festival de música acampava na cidade.

Mesmo que a expectativa não fosse muito boa, ela queria que ao menos eles não perdessem a esperança de tentar novamente. De um jeito diferente, quem sabe.

Enquanto manifestação da eternidade, ela desejava que pudessem compreender que esse papel talvez não lhes coubesse, pois não cabe nem na visão de mundo limitada de um estadunidense da metade do século XX. Afinal, nem todo mundo ali queria que o mundo realmente mudasse do jeito que eles pregavam.

Por exemplo, boa parte daquele público havia participado de protestos pelo fim da guerra do Vietnã, contra o racismo, em favor dos direitos civis, da liberdade sexual e de um amor mais livre. De certa forma, era o que significava aquele movimento todo naquele local, e anteriormente em Woodstock e Monte Rey, em Newport e outras manifestações culturais do lado festivo do progressismo estadunidense.

Hells Angels x Allen Ginsberg: o improvável confronto da era da Guerra do Vietnã

No entanto, os que ficaram responsáveis por manter a sua integridade física, os Hells Angels, já tinham participado dos mesmos protestos, só que do lado oposto.

Alguns já haviam vestido capuz pontudo branco e tacado fogo em cruz de madeira, enquanto outros espancavam manifestantes anti-guerra gritando “Volta pra Rússia, maldito comunista”. Qualquer semelhança com o “Volta pra Cuba!” da nossa desprezível e estúpida direita, não é mera coincidência.

Essa intolerância fica muito mais evidente quando o jovem negro Meredith Hunter, e mais um grupo de jovens do público tentam invadir o palco. Ele foi o único que pagou com a vida.

No meio de uma confusão que seria para impedir que a garotada colocasse os membros da banda em risco, Alan Passaro, dos Hells, enfiou duas vezes a sua faca nas costas do garoto Meredith Hunter, que de fato estava armado, porém, algumas questões de lógica precisam ser jogadas na mesa:

  1. Os responsáveis pela segurança não deveriam garantir que um evento que tinha a representação da Paz em sua bandeira estivesse completamente livre de qualquer tipo de artigo violento?
  2. Os mesmos seguranças não deveriam estar desarmados também?
  3. Era necessário que mais cinco membros da gangue continuassem golpeando o garoto quando este já estava esfaqueado, por duas vezes, jogado no chão?

Sim, veja a série de más decisões que, fazendo as contas, só pode dar em merda. Como puderam culpar o Diabo? Como puderam culpar a menção ao Diabo em uma canção?

De fato, quando a confusão assumiu a postura de uma panela de pressão com o pino entupido, prestes a explodir, a canção que tocava chamava-se algo como “Simpatia ao Diabo”, mas essa panela só estourou quando a música seguinte já estava rolando.

Os autores da canção e artistas no palco, de forma antipática, culparam o Senhor das Trevas pelo feito dizendo: “Algo estranho sempre acontece quando essa música toca.”, mas essa coisa estranha parecia tão lucrativa e eles ganharam tanto dinheiro com todas as vezes que ela tocou e se isentaram do acontecido publicamente com um filme meia-boca, e mais nada foi feito. Nem condolências à família de Hunter recebeu dos membros.

Os Stones representavam um salto na expressão uma humana. Um tipo de evolução que desafiava a mentalidade vigente a sair da caixa, do quadrado, do careta. Quando eles lavam as mãos como Pilatos, eles estão celebrando o pecado de onde se originou o Diabo, pecado este ao qual os cristãos se converteriam abraçando o conservadorismo: a separação. A isenção, o afastamento de algo que pertence.

Você olha praquilo que não gosta em você, ainda sua responsabilidade, e diz “isso não me pertence”, “isso não sou eu”, “eu não fiz isso”. Então “isso” precisa de um outro nome. Principalmente, quando você o coloca no extremo oposto de onde julga estar. E assim, ele nasce. O inimigo de nossas almas, o coisa ruim, o excomungado da graça divina, Satanás, Lúcifer, o Diabo.

Nasceu quando O Todo Poderoso não gostou de algo que percebeu em sua própria criação; nasceu quando seu filho se isolou no deserto, crendo estar se isolando das tentações que enxergava no mundo à sua volta, e percebeu que elas o acompanhavam.

E sabe o que esse afastamento faz?

Facilita as coisas.

Mesmo.

Você não precisa se preocupar com a dor de cabeça de buscar resolver um problema seu. Afinal, esse problema é obra de Satanás e tudo o que você precisa é clamar pelo nome de Jesus. E pronto.

No caso de Mick Jagger e companhia, eles não precisariam lidar com o fato de que a vida daquelas pessoas era de sua responsabilidade e a segurança deveria ter sido contratada pensando não só em zelar pela integridade física dos artistas que passaram pelo palco, mas prioritariamente no público.

Ao dizer “alguma coisa estranha sempre acontece quando tocamos essa música”, eles estão apontando as digitais e dizendo que elas são do Diabo no fato sangrento que ceifou a vida de um jovem de 18 anos. Com isso não precisariam encarar o peso nos olhos de uma família recebendo as devidas condolências. E assim, não o fizeram.

Entenda, da perspectiva de tal afirmação, essas digitais não são das más escolhas de quem organizou o evento, não são dos Hells Angels, não são de Allan Passaro que apunhalou Meredith Hunter, pois elas são daquele sobre quem a igreja alertou. A mesma igreja que reprovava e perseguia quem se comportava baseado no estilo de vida pregado por sua geração artística.

De fato, a culpa é do Diabo. Mas desse diabo com “D” maiúsculo. Porque é o nome que damos àquela partezinha sombria de todos nós, que talvez tivesse atitudes bem menos nocivas se a aceitássemos e buscássemos compreender ao invés de banir para o inferno de nossa consciência.

se você acha que algo ficou faltando, veja aí a oportunidade de trazer a sua preciosa colaboração para a conversa.

a intenção aqui é nada mais que começar uma conversa e ver por onde nosso entendimento atual das coisas pode nos levar.

então aproveite a área de comentários e nos diga o que você gostaria que soubessemos…

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Luiz Carlos González
a brasa
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escritor de rua confinado; forasteiro criando raiz; forçado a deixar a estrada, mas não de viajar, não descarta a possibilidade de embarcar no próximo meteoro°´