ligações curiosas: bíblia, sessão da tarde, alice e childsh gambino. como conversam?

Luiz Carlos González
a brasa
Published in
8 min readJan 1, 2023

Algumas figuras icônicas da história e da cultura pop mundial de épocas distintas, podem até parecer estar falando cada uma do que diz respeito ao seu próprio quadrado, seu mundo comum.

Na verdade, existe acordo e comunhão nas suas respectivas mensagens. O texto despejado nas próximas linhas, se oferece como mesa redonda para esse debate, que busca tirar o melhor proveito do que cada obra, habitada por estes, tem a oferecer.

Os Convidados:

Charlton Heston em Os Dez Mandamentos; 1956. (Paramount Pictures/Imagem do trailer via YouTube)

Moisés é um personagem tão famoso da Bíblia e da Torá, que chega a ser muito mais do que um símbolo religioso. Ele surge no segundo capítulo do Êxodo para salvar seu povo, o hebreu, da escravidão vivida no Egito e guiá-los para a terra prometida.

Pra isso ele lança praga sobre seus opressores, abre o mar, atravessa com os seus, e mais tarde sobe ao monte e volta com as tábuas das leis divinas que viriam a se tornar os “Dez Mandamentos”. Sua história ao longo de milênios vem servindo de inspiração para debates, analogias, buscas espirituais e para a organização de códigos de conduta moral, que transcendem culturas e costumes.

Coelho Branco, Alice no País das Maravilhas Divulgação/Disney

O Coelho Branco é um personagem tão famoso da literatura infantil, que chega a ser muito mais do que um personagem da literatura infantil. Ele surge correndo em Alice no País das Maravilhas. Corre tanto que as páginas do clássico livro de Lewis Carrol, parecem não oferecer limites. E há mais de um século ele vem cruzando todos níveis da cultura pop, inspirando músicas, poemas, livros, canecas, camisetas e etc.

Matthew Broderick, Mia Sara, and Alan Ruck in Curtindo a Vida Adoidado (1986); Paramount Pictures

Ferris Bueller é um personagem tão icônico do cinema hollywoodiano, que chega a ser muito mais do que um personagem do cinema adolescente. Ele surge quebrando a quarta parede e dando tutorial de como matar aula e ser bem sucedido. Pelo menos uns 30 anos antes de qualquer youtuber imaginar uma decoração descolada para seu quarto aparecer num vídeo para a rede mundial de computadores. “Curtindo a Vida Adoidado”, escrito, produzido e dirigido por John Hughes, hoje ocupa um lugar onde muitos filmes, que miraram mais alto, não chegaram.

Rihanna and Donald Glover in Guava Island (2019)

Donald Glover (não é parente do Danny) é um artista tão talentoso dentro da música atual, que é impossível classificá-lo apenas como um artista talentoso da música atual. Assim, vem se manifestando ao grande público como roteirista, como ator (Comunnity, Atlanta), e como cantor por meio do seu álter ego Childish Gambino.

Em uma obra específica, ele organizou a união de todos os seus poderes, o média-metragem Guava Island, lançado no Coachella 2019 e disponibilizado pela Prime Vídeo, da Amazon, desde o dia 13 de abril de 2019.

“Um filme de Childish Gambino”

É assim que se apresenta Guava Island. Nele Donald Glover interpreta Deni Marron, um operário sonhador e músico querido por todos os habitantes da pequena ilha que dá o título ao filme. Porém, há problemas no paraíso.

O lugar é governado à pulso violento e firme por um ditador que explora os moradores a trabalharem todos os dias, sem direito à folga, na confecção de uma seda azul, principal produto de exportação e riqueza típica.

Deni vive em um ritmo acelerado em compasso apenas com os batuques alucinados da música local. Ele quer aproveitar o máximo de tempo possível fora do trabalho e acaba sempre atrasado.

O que acredita, é que todos deveriam aproveitar mais tempo no paraíso em que vivem, pois, se todos chegarem mais tarde, ele e nem ninguém estará atrasado.

Seu desejo é ver o povo curtindo a tão merecida folga, e pretende consegui-la desafiando Red Cargo, o tal ditador, com um festival popular de música, a noite inteira.

Note que há uma semelhança entre os protagonistas de Guava Island e o clássico de John Hughes, Curtindo a Vida Adoidado, que traz Matthew Broderick no papel de Ferris Bueller.

Superficialmente, as diferenças de etnia, contexto social e período histórico, afastam os dois personagens.

Bueller, é um adolescente branco de classe média que engana todo mundo pra curtir um dia ao lado do melhor amigo, Cameron Frye, e da namorada, Slone Peterson.

Observando mais atentamente Deni e Ferris, você irá notar que ambos são pessoas muito populares de quem todos gostam, cada um no seu mundo, que utilizam dessas vantagens para cumprir com seus objetivos. E o principal objetivo de ambos se cruzam: Um dia de folga para aproveitar um pouco da vida.

Desde o início Ferris confessa que, mais do que ele mesmo, quem merece esse momento de alívio é Cameron, que, assim como os habitantes de Guava, vive cotidianamente sob a opressão da figura autoritária. No caso de Cameron, seu pai Morris é o grande ditador.

Deni Maroon também deseja que seu povo desfrute de, ao menos, um dia de folga, longe da obrigação imposta pelo regime de Red Cargo. E o elemento principal de tal conquista é o tempo.

Tempo é vida.

E vida que deve ser curtida.

Ferris diz que a vida passa rápido demais, como se fosse o Coelho Branco mostrando seu relógio e dizendo que está atrasado, Cameron o segue como Alice ao coelho… E claro, Deni Maroon passa a maior parte da trama também correndo e dizendo estar atrasado.

O motivo da pressa dos personagens de Broderick e Glover, em seus respectivos enredos, os coloca em posição de libertadores de figuras oprimidas, assim como um dia foi Jesus, Moises e Bob Dylan.

Deixe meu Cameron e minha Guava ir!

Por falar em Moisés, há uma cena em “Curtindo” que simboliza o sofrimento de Cameron. Ele está deitado na cama. Seu meio de expressar a agonia de sua existência, é cantando “When Cameron was in Egypt’s land/ Let my Cameron go…”.

Trata-se da adaptação para a sua condição de um antigo canto Spiritual, que se refere à passagem do Êxodo em que Deus chama Moisés para libertar seu povo, Israel, oprimido pelo faraó no Egito.

Esse spiritual emergiu por volta do século XVIII, em analogia a situação da população negra escravizada nos Estados Unidos. Foi regravada centenas de vezes ao longo do século XX, por artistas como Louis Armstrong, Paul Robeson, Arlo Guthrie e Nana Mouskouri.

O lugar que ocupa na sociedade, não permitiria que o personagem soubesse o que, literalmente, é ser escravizado, e assim poderia ser visto como exagero, ele se apropriar do clamor de povos que de fato estiveram de baixo da escravidão. Porém, deitado sob uma pilha de lenços de papel e comprimidos, ele se sente uma “merda, despedaçado, doente, morrendo”.

Portanto, quando substitui “Israel” por seu próprio nome e canta “Let my Cameron go” — algo cuja tradução literal seria como “Deixe meu Cameron ir”-, ele pode estar considerando a morte como uma opção de fuga daquilo que considera um Egito.

Guava tem seu faraó representado em Red Cargo, e Cameron tem no pai, Morris Frye, o agente da opressão. O personagem nem aparece em cena, porém, a marca de suas atitudes autoritárias, punitivas, mesquinhas, materialistas e violentas, se projetam nas fragilidades de um ser humano que se desenvolveu, ou melhor, que foi impedido de se desenvolver, em meio a esse tipo de criação.

A maneira como o filho enxerga o pai, faz do coroa um fantasma que o está observando e a qualquer momento pode surgir para puni-lo, simplesmente, pelo garoto estar vivo.

Da mesma forma, em Guava Island, o símbolo de um olho espalhado pelo local, indica que “Red está te vendo”, e os habitantes vivem sendo lembrados do seu poder e do que pode acontecer se for pego fazendo algo além de sobreviver.

Sacrifícios [ZONA DE SPOILER]

No desfecho da história de Moisés no Egito, a liberdade do seu povo só pode acontecer depois que sacrifícios foram feitos. O primogênito de cada família do Egito teve que morrer para que Israel pudesse partir, o povo partiu e Moisés cumpriu com seu objetivo.

Em Curtindo a Vida Adoidado o dia de folga de Cameron também teve seu sacrifício. A Ferrari 250 GT Spyder California teve que voar por uma vidraça e ser destruída para que o rapaz pudesse tirar o melhor daquele dia. Diante da situação mais radical, aquela que ele passou o filme todo tentando evitar que acontecesse, ao invés de se lamentar ou fugir, ele decide enfrentar o “coroa”: “Ele vai ter que me ouvir”.

Na ilha Guava um preço também é cobrado para que seu povo finalmente pudesse desfrutar da liberdade, mas não direi qual é. Só te digo que na ilha não aparece nenhuma Ferrari. No entanto, Red Cargo teve que ouvir e ver seu povo finalmente ter, o que ele passou o filme todo tentando evitar que acontecesse.

Depois que sacrifícios são oferecidos, não há como voltar a trás. Tudo muda e a vida passa a exigir novas atitudes, novos pensamentos, uma nova conduta para que o que foi ofertado não tenha sido em vão e não se torne apenas carne podre num altar vazio.

O faraó, o pai abusivo ou o ditador deverão ser encarados, e estes terão de encarar as consequências de sua opressão. O grito de liberdade dos que clamam por ela precisam de microfone e plateia. Seja no terreno árido do deserto, seja numa avenida entre arranha-céus de Chicago, Beatles rolando, o povo vibrando e gritando, seja numa arenosa avenida de Guava.

Se a exibição vespertina de filmes na Globo sobreviver às mudanças na programação da emissora e da sociedade, é possível que um dia vejamos Rihanna, Donald Glover e sua querida ilha na Sessão da Tarde. Dublado e pronto para ser consumido por uma parte do povo que não tem o cinema e nem a internet como opção para assistir filme.

A produção, por mais que vez ou outra assuma um tom sério e de crítica social, trata tudo com ironia, senso de humor e muita música. Não muito diferente de Curtindo a Vida Adoidado.

A diferença é que John Hughes e sua equipe eram tão feras em matéria de entretenimento, que tais elementos ficam praticamente escondidos demais para parte do público perceber a seriedade e a crítica social.

Já Guava Island, é dirigido por Hiro Murai, parceiro de Glover e responsável pelos socos no estômago mais conhecidos como episódios da série Atlanta. Com isso, nada fica tão escondido. A obra trata-se obviamente da busca pela condição de vida mais básica para pessoas que estão sendo oprimidas.

E não se esqueçam que o futuro para o qual caminhamos, tem nos trazido paisagens cada vez mais absurdas que exigem não só a lembrança do óbvio, mas também sua defesa.

Curtindo a Vida Adoidado está disponível por assinatura em Telecine Play, e para locação pelo YouTube e Google Filmes.

Guava Island pode ser assistido pela Prime Vídeo.

Já o Coelho Branco e Moisés são personagens de obras clássicas da literatura mundial e suas histórias podem ser encontrados em uma infinidade de formatos. O primeiro em Alice no País das Maravilhas, e o segundo em Êxodo, segundo livro do pentateuco que inicia a Bíblia Sagrada.

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Luiz Carlos González
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escritor de rua confinado; forasteiro criando raiz; forçado a deixar a estrada, mas não de viajar, não descarta a possibilidade de embarcar no próximo meteoro°´