Pleasantville: posicionamentos polêmicos podem tornar filme relevante hoje

Luiz Carlos González
a brasa
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7 min readJan 10, 2023

Até sua forma de fazer “justiça” expõe as limitações do progressismo estadunidense. Confira!

Nada mais atual que um filme onde vemos se fazer pública a revolta daqueles que não aceitam mudanças e o fluxo natural das coisas. Fanatismo, ignorância, negação, violência e vergonha marcam seus atos para defender e conservar os absurdos que fazem mal pra eles mesmos.

Vamos falar de um filme de 1998, que faz um diálogo interessante com os dias atuais, embora possua algumas marcas do tempo em que foi produzido e lançado.

Ele não marcou época, não foi um sucesso que arrasou todos os quarteirões de cinema mundo afora. Estou falando de um filme que poderia ser um qualquer, parecido com outros milhares que a indústria hollywoodiana produz todos os anos:

Pleasantville: A Vida em Preto e Branco

David (Toby Maguire, o Homem-Aranha de 2002) é um adolescente insatisfeito com o mundo do final dos anos 1990 em que vive.

Na vida pessoal, seus pais divorciados brigam para ver quem não fica com ele e a irmã Jennifer (Reese Witherspoon; vencedora do Oscar por Johnny & June), com quem não se dá bem. Já no nível social, previsões para clima, desigualdade social, saúde pública e ameaças de guerra nuclear parecem não poupar a ansiedade de quem está para entrar na vida adulta.

Mas, como muitos de nós, ele encontra conforto na sua série favorita: “Pleasantville”. Produto da televisão dos anos 50, ela é completamente em preto e branco e mostra a agradável vida de uma família em uma agradável cidadezinha estadunidense.

O clássico conflito pelo controle da tevê leva a um confronto entre David e Jennifer que começa colorido na sala de casa, e acaba monocromático dentro do mundo de Pleasantville.

Todavia, o fenômeno mágico tecnológico não representa uma guinada apenas na vida dos jovens. Afinal, há todo um universo de cores entre o preto e o branco e não é todo mundo que sabe lidar.

Parece mais um fantástico besteirol americano

A Caverna do Dragão, As Crônicas de Nárnia, Cavalo de Fogo, Matrix, História Sem Fim, Harry Potter, a cultura pop tá abarrotada de fantasias onde o protagonista literalmente abandona seu mundo comum para viver a experiência de ser o “escolhido”, a “princesa guerreira”, aquela figura que irá salvar o mundo mágico e passar por uma profunda transformação.

É necessário apenas alguns minutos de exposição à química entre Toby e Reese, ao roteiro permeado de analogias e simbolismos, críticas e diálogos de piadas ligeiras e ácidas, para sacar que não se trata de mais do mesmo. Que Pleasantville aceitou as roupas, mas vai usar como quiser.

A fábula vai avançando, os conflitos entregando os personagens, as cores pintando a cidade, o debate segue se aprofundando e, numa época anterior a Black Mirror e DARK, Pleasantville deu ao público a experiência de olhar para trás na trama, e se perguntar “Como eu vim parar aqui?”. O mesmo tipo de pergunta que eu faria se me visse substituindo Jon Hamm, o Don Draper de Mad Men.

Parece que Pleasantville quer se aproveitar da licença poética, da ficção, dos tais símbolos, pra ir um pouco mais fundo e ousar provocações apontando algumas feridas que continuam abertas e sangrando no seio da sociedade.

Como a polarização ideológica e o ataque à arte e à cultura por parte daqueles que não a compreendem e acreditam que não vale o esforço. O problema é que essa gente frustrada não se conforma em viver a merda da sua existência de boa no canto dela. Quer definir o que é certo e o que é errado a partir de uma perspectiva desinformada, grosseira e pretenciosa. Enfiar goela abaixo da sociedade em que vivem, é o objetivo.

Não dá pra dizer que Pleasantville é um exemplo de obra antirracista, por mais que trate de transformações pessoais e sociais, da convivência harmoniosa com o diferente e sobre a imprevisibilidade de uma vida sem um roteiro pronto. Pelo contrário, ele faz exatamente o que não se deve fazer. Ao defender uma causa, apagar completamente quem a causa defende, e se colocar como porta voz oficial, parece mais vaidade e egocentrismo do que consciência social.

O único momento em que uma crítica nesse sentido fica mais evidente é quando, na entrada de um comércio, aparece uma placa proibindo a entrada de pessoas coloridas. Em referência ao período segregacionista norte americano, onde comércios impediam a entrada de pessoas negras sinalizando com a mesma placa.

Incomoda, e muito, a existência de uma única etnia na trama. Até porque o filme mergulha no que seria o mundo ideal para o protagonista: um adolescente branco de um subúrbio de classe média estadunidense nos anos 90. Evocando um período em que os verdadeiros EUA, não eram exatamente agradáveis para pessoas que não fossem alvas como a neve, ou até mais que ela.

O personagem de Toby Maguire, representa descaradamente a ideia da “saudade daquela época” em que não se viveu, mas que de alguma forma acredita que, na verdade, pertence a ela. No entanto, ele é só um adolescente que acreditou e comprou o “american way of life” da metade do século XXI, que já fora vendido em horário nobre para os pais de seus, divorciados, pais.

É justo também dizer que o formato de família estruturada e acolhedora exposta na família protagonista da série, parece suprir uma carência emocional que o personagem vive em seu lar. Ou seja, mais do que o estilo de vida “americana”, David está comprando carinho, diálogo e estabilidade. De qualquer forma, parece que o filme não sofreu a quantidade suficiente de cortes para seguir o caminho ditado pelo estúdio, que também obedece às exigências da indústria, que controla o gosto do público.

Importante também é destacar a transformação que o personagem sofre não apenas no nome, de David para Bud. Ele que inicialmente se mostra resistente às mudanças, passa a defender todas elas com ênfase no direito de existir do diferente.

Assim, talvez a razão de não ter vingado o suficiente nas bilheterias mundiais, e nem ter conseguido uma distribuição decente em mercados como o brasileiro, seja de fato o conflito entre a maneira como o estúdio quis vender, e o que roteiro e premissa prometiam entregar.

Outras camadas

A fotografia (John Lindley), a direção de arte (William Arnold e Dianne Wager) e a trilha sonora irão te mostrar que quem, principalmente, nunca mais será a mesma, é a própria Pleasantville. Com canções originais de Randy Newman (Toy Story), as mudanças no lugar e nas pessoas é embalada ainda pelos sucessos de Etta James, Elvis Presley, Miles Davis, Dave Brubeck, Gene Vincent, Fiona Apple e outros.

O fato de ser produzido por Steven Soderbergh (dir: Sexo, Mentiras e Videoteipe, e Erin Brockovich), escrito e dirigido por outro velho conhecido da Academia, Gary Ross (já tinha concorrido por “Dave — Presidente Por um Dia”), confirmam que era um “filme de Oscar”.

Acontece que o público mais crítico, público este que torce o nariz para a premiação, aquele que assiste todos os indicados e não perde o evento um ano sequer, é formado por pessoas que geralmente estão saturadas das formulas que conquistam as massas.

Aqui a formula é a “jornada do herói”. Adotada pela indústria, e cujos elementos, segundo o mitólogo Joseph Campbell, estão no inconsciente coletivo desde que os primeiros da nossa espécie precisaram passar uma mensagem.

Isso pode ter feito uma classe menos tolerante de cinéfilos ficar com um pé atrás e deixado o filme em suspenso na vontade de assistir. Sei de pessoas que estão com ele desde 2010 na lista do que assistir do Filmow.

Agora, depois de anos, vem sendo redescoberto pela geração dos seguidores da sétima arte daquela época, e descoberto pelas que estão vindo depois.

Creio que o boom na indústria das séries nos últimos anos, tem causado uma escassez de longas que conseguem verdadeiramente entreter e impactar. Conforme o público fica sabendo da existência de um filme como esse, de certa forma atual, com um elenco carismático que ainda conta com Joan Allen, Jeff Daniels, William H. Macy e Paul Walker, é de se desconfiar que o futuro pode estar reservando o lugar numa prateleira mais interessante: a de “Clássico Cult”. Onde hoje figuram preciosidades como Donnie Darko, O Clube da Luta e São Paulo SA.

Conclusão

“Pleasantville” é permeado de diálogos e cenas simbólicas que poderiam servir de analogia para uma série de situações. Quando as transformações começam a ganhar tom apocalíptico de ameaça aos homens da cidade, há uma cena, por exemplo, em que o prefeito tenta confortar seus concidadãos do sexo masculino dizendo que pelo menos eles tem o boliche como um lugar seguro diante de todos os acontecimentos.

Ou seja, o boliche, o jogo, a distração, representa a fuga de uma realidade desoladora. A mesma fuga que David desejava trilhar maratonando sua série favorita. E quando ele mergulhou de fato no lugar pra onde desejava fugir, foi que descobriu que aquele lugar que ele julgava seguro não é bem assim, se o que você está fugindo está dentro de você. Isso vai te perseguir e te forçar a mudar as coisas de uma vez por todas. E dependendo de como aceitarmos as transformações, dependendo de como aceitamos o fluxo natural da vida, isso pode ser bom ou ruim.

Isso não quer dizer que as fugas são coisas ruins, mas que, na verdade, elas devem ocupar o lugar que lhes são de direito: fuga. Apenas fuga. Se ela passa a dominar sua vida, ela deixa de ser fuga e passa a ser o caminho oficial. O que automaticamente irá te fazer procurar outra fuga, e é aí que a realidade interna da qual você começou a fugir vai te pegar.

O filme está disponível na HBO Go.

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Luiz Carlos González
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escritor de rua confinado; forasteiro criando raiz; forçado a deixar a estrada, mas não de viajar, não descarta a possibilidade de embarcar no próximo meteoro°´