Impetuosa Esperança

Peter J. Leithart

Absalão Marques
Absalão Marques | Portfólio
3 min readOct 16, 2020

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Cena de “A Árvore da Vida”, por Terrence Malick.

Nenhum livro do Antigo Testamento usa tanto a palavra hebraica para “esperança” (tiqwah) quanto o Livro de Jó. Na maior parte do tempo, entretanto, Jó menciona a esperança somente para lamentar sua ausência. Ele é um cadáver, coberto de vermes e imundície, a pele encrostada. Seus dias findam “sem esperança” (Jó 7.1–6). Há esperança para uma árvore. Mesmo cortada, ela lança raízes para encontrar as águas que hão de revivê-la. Mas um homem não é uma árvore. Ele se deita e não mais se levanta até o último dia (Jó 14.7–12). Jó é um homem sujeito ao escárnio e ao desprezo. Seus olhos estão embaciados pelo luto; seu corpo é um vulto. Ele dorme no Sheol e sua esperança desaba ao pó junto dele: “Onde está, pois, a minha esperança? Sim, a minha esperança, quem a poderá ver?” (Jó 17.1–16). Tão morta quanto Jó está a sua esperança.

De acordo com o “investimento básico”, a esperança combina o desejo e a crença; nós esperamos quando desejamos um bom futuro e acreditamos que é provável que o alcancemos: “Espero que chova.” “Espero que meu Uber chegue a tempo.” Não experimentamos a esperança se os nossos desejos são infundados ou se as nossas crenças são falsas. Desejos por desfechos improváveis são fantasias, não esperanças, e impossibilidades lógicas são mais ilusórias que esperançosas. Esse investimento básico parece se adequar ao costume de Jó. Ele deseja bons desfechos, mas já não crê que acontecerão. Ele almeja pelo amanhecer, mas espera uma noite infindável.

No investimento básico, a esperança é uma emoção branda e passiva. Na Escritura e na tradição cristã, ela possui qualidades mais robustas. A esperança mostra do que é capaz quando assume a forma do que o apóstolo Paulo chama de “esperar contra a esperança” (Rm 4.18). Paulo usa essa expressão para descrever a fé de Abraão. Yahweh prometera a Abraão e Sara um filho para levar a promessa da aliança, mas Abraão está com um pé na cova, e o ventre de Sara esteve morto por toda a sua vida. Abraão deseja um filho através de Sara, mas isso é impossível. Ainda assim, ele crê na promessa do Deus chama à existência as coisas que não existem, do Deus que vivifica os mortos (Rm 4.17). Abraão é destemido diante do impossível porque confia no Deus para quem nada é impossível. Suas circunstâncias desesperadas deram à luz a esperança.

A esperança de Abraão e o desespero de Jó crescem desde o mesmo solo; são posturas alternativas em relação à morte. Jó é desesperançoso porque sofre um suplício que parece ser permanente. A esperança de Abraão, diz Paulo, é uma esperança pela ressurreição, uma esperança de que uma nova vida pode surgir de dois corpos moribundos e decrépitos. Na Escritura, a esperança é sempre esperança pela vida depois da morte. Israel espera pelo êxodo do Sheol do Egito, pela ressurreição da sepultura do exílio, por um Messias para vencer as forças da morte. Uma ou duas vezes, essa esperança tremeluziu nas sombras de Jó: “Depois, revestido este meu corpo da minha pele, em minha carne verei a Deus” (Jó 19.26). Mesmo no cotidiano, a esperança anela pela ressurreição. Os doentes esperam pela saúde recobrada; os prisioneiros, pela libertação; os solitários, por amor; os maltratados, por socorro para sua segurança. Todos querem uma vida diferente. E, como diz Josef Pieper, essas esperanças cotidianas implicam uma esperança universal para a humanidade. “Mesmo que eu morra”, diria um paciente terminal, “a vida continua.” Mas e se não continuasse? Será que podemos sustentar a esperança individual sem a metaesperança para o mundo? Toda esperança é esperança pela ressurreição; em última análise, por uma ressurreição geral.

Tomás de Aquino situa a esperança entre as paixões “irascíveis”. Para Tomás, a esperança só é verdadeiramente esperança quando é árdua. O desejo, diz Tomás, é mera concupiscência. A genuína esperança envolve uma determinação de suplantar os obstáculos para alcançar a destinação desejada, e, portanto, tem um elemento de ira, a fúria. Desafiadora em face da morte, a esperança assume um tom de exasperação. “Esperar contra a esperança” não é brando, mas impetuoso, selvagem, feroz e até furioso. Essa impetuosa esperança, fruto da tribulação e adversidade, não decepciona.

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