O Mistério da Trindade

Peter J. Leithart

Absalão Marques
Absalão Marques | Portfólio
5 min readOct 24, 2020

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The Holy Trinity, Pierre Mignard

Durante os últimos quarenta anos, dois teólogos reformados — Vern Poythress, do Westminster Theological Seminary na Filadélfia, e John Frame, do Reformed Theological Seminary em Orlando — têm colaborado para desenvolver um método “multiperspectivo” para a teologia. A premissa é simples. Nosso conhecimento é limitado e parcial. Vemos através dos nossos próprios olhos, ouvimos com os nossos próprios ouvidos, e levamos conosco nosso próprio conhecimento prévio para relacionar com o que experenciamos. Para aprofundar o nosso conhecimento de algo, para ver as coisas em três dimensões, precisamos suplementar a nossa perspectiva limitada com as perspectivas de outrem.

Embora a premissa seja simples, a elaboração não o é. Frame frequentemente usa um modelo triperspectivo. Deus é Senhor, e isso significa que ele está no controle de toda situação, fala com absoluta autoridade e faz-se presente para com o seu povo. Esses “atributos senhoriais” são o fundamento do que Frame chama de perspectivas normativas, situacionais e existenciais. Pode-se analisar questões éticas, problemas teológicos, textos bíblicos e absolutamente tudo dentro dessas perspectivas. E cada perspectiva implica as demais. Para tomar uma decisão ética, por exemplo, não basta conhecer as regras (a perspectiva normativa); precisamos conhecer os fatos aos quais as regras se aplicam e as pessoas envolvidas. Quando propriamente compreendido, o princípio normativo inclui o situacional e o existencial. Por outro lado, nós podemos começar com as pessoas, a perspectiva existencial. Entretanto, as pessoas estão em situações e a norma suprema da palavra de Deus é sempre o fator primário.

Durante a última década, Poythress, que obteve de Harvard um PhD em matemática antes de começar sua formação teológica, tem aplicado esse método à lógica, linguagem, filosofia, ciência, matemática e sociologia. Em seu livro lançado em 2018, Knowing and the Trinity, ele explica como o multiperspectivismo reflete a natureza trinitária de Deus. E em seu mais recente livro, The Mystery of the Trinity, ele elabora “uma abordagem trinitária aos atributos de Deus”.

Poythress contribui para um debate corrente entre evangélicos a respeito do “teísmo cristão clássico”. Em uma das primeiras seções do livro, ele defende brevemente afirmações centrais do teísmo clássico. Deus, diz ele, é absoluto, infinito, imensurável, eterno, imutável, onisciente e simples. No entanto, ele também sonda os problemas do teísmo clássico, e critica certas formulações que, conforme argumenta, são inconsistentes com a natureza trinitária de Deus.

Acertar a relação entre a transcendência e a imanência de Deus é uma questão crucial. Os cristãos concordam que Deus é tanto transcendente quanto imanente, mas essa relação pode ser mal interpretada. A “falsa transcendência” vê a transcendência e a imanência como contrários; Deus é inacessível e incognoscível. A “falsa imanência” também vê ambos como contraditórios, afirmando que um Deus acessível não pode ser transcendente. Uma visão cristã nega que a transcendência e a imanência estão em tensão; antes, implicam-se uma à outra. Deus só pode estar presente em todo tempo e lugar se transcende os limites do tempo e do espaço. Logo, Deus não é imanente a despeito de ser transcendente, mas imanente porque é transcendente.

Falsas visões da transcendência e da imanência estão por trás de visões errôneas da Escritura e da linguagem teológica. Em uma falsa visão da transcendência, Deus está demasiado além do conhecimento humano para ser “capturado” por palavras. No entanto, isso mina a confiança de que a Escritura fala de todo verdadeiramente. Quando nós não confiamos na Escritura, podemos ser tentados a especular sobre como Deus deve se parecer. Nossas especulações são um esforço soberbo de “supervisionar Deus” em vez de aceitar a Escritura como sua autorrevelação verbal. Poythress argumenta que a linguagem humana pode revelar Deus (imanência), mas jamais exaustivamente (transcendência). A Escritura é veraz, porém cercada de mistério.

Os teístas clássicos, argumenta Poythress, por vezes guinam em direção à falsa transcendência e acabam falando dos atributos de Deus de maneiras que contradizem as Escrituras. O puritano Stephen Charnock, por exemplo, argumentava que Deus não adquire uma “nova relação” em virtude da criação. Na visão de Poythress, as preocupações de Charnock surgem não da Escritura, mas, sim, de seu comprometimento com um “princípio filosófico da não mudança”. Quando consideramos a Escritura em si mesma, nós temos de dizer que uma nova relação surge, sim, na criação: desde a criação, “Deus tem uma relação com o mundo que criou”, a qual “surge porque o próprio Deus tanto trouxe o mundo à existência como estabeleceu a relação”.

Poythress aplica categorias trinitárias a toda questão teológica. Todas as estruturas e padrões fundamentais da realidade criada têm sua fonte nas estruturas e padrões dentro da Trindade. Todas as coisas criadas, especialmente o homem, expressam Deus de alguma forma. Contudo, essa relação arquétipo-éctipo está enraizada na vida triúna, uma vez que desde toda a eternidade Deus tem sido expressado por seu Filho (Cl 3.15; Hb 1.3). Deus cria um mundo fora de si mesmo, mas isso está enraizado na eterna geração do Filho e na processão do Espírito Santo, [1] que produz “outros” que estão em relação com o Pai. A diversidade não é uma falha na criação, o resultado de uma queda da unidade primordial. Antes, a diversidade da criação tem sua origem na diversidade divina, porque a criação procede do Deus em quem unidade e pluralidade são igualmente supremas. A responsividade de Deus para com a criação está enraizada na responsividade das Pessoas umas para com as outras.

Frame e Poythress não são relativistas. A palavra de Deus na Escritura é um padrão absoluto para a fé e a vida. Mas o perspectivismo inculca hábitos teológicos irênicos. Muitos problemas teológicos são intrincados porque as partes abordam os problemas a partir de perspectivas diferentes, mas não contraditórias. Conflitos podem ser mitigados, se não até resolvidos, quando cada lado reconhece a verdade nos argumentos do outro. O perspectivismo leva-nos a pensar: “Por que meu oponente diz isso? Que verdade ele está tentando proteger?”

Anos atrás, eu tive uma aula de hermenêutica com Poythress. Parecia uma cirurgia cerebral. Ele gentilmente torceu minha mente do avesso e virou-a de ponta-cabeça. Num dia memorável, ele contou toda a história da Bíblia como se fosse uma historinha das plantas. Com toda a sua criatividade e complexidade, a obra de Poythress tem uma forte dimensão pastoral. Cada capítulo de Mystery of the Trinity encerra com uma oração. Poythress e Frame querem que a teologia fale a pessoas comuns em linguagem comum, em vez de se tornar um parque para profissionais que apregoam termos técnicos intimidadores a fim de manter a ralé longe de seu território. O perspectivismo é um método não apenas para teólogos, mas para toda a igreja. Não há honra maior do que essa.

NOTAS

[1] Doutrina cristã da Igreja Latina que ensina que o Filho provém do Pai, e de que o Espírito Santo provém de ambos, no mistério da Santíssima Trindade.

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