O Vício da Curiosidade

Hans Boersma

Absalão Marques
Absalão Marques | Portfólio
6 min readOct 24, 2020

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Vanitas — Still Life with Books and Manuscripts and a Skull, Edwart Collier

As leituras deste ano no lecionário, feitas no culto de início do ano letivo no seminário onde eu ensino, foram bastante curiosas. Foram do Salmo 90 (“Tu reduzes o homem ao pó e dizes: Tornai, filhos dos homens”), Eclesiastes 1 (“Vaidade de vaidades, diz o Pregador; vaidade de vaidades, tudo é vaidade”) e Lucas 9 (“Herodes, porém, disse: Eu mandei decapitar a João; quem é, pois, este a respeito do qual tenho ouvido tais coisas? E se esforçava por vê-lo”). Visando o encorajamento no início dos estudos dos seminaristas, alguém pensaria que quase qualquer outra passagem poderia ter sido melhor do que essas.

Não há como negar o caráter sóbrio dessas leituras da Escritura. O Pregador de Eclesiastes, em particular, parece determinado a solapar mesmo o novato mais compromissado: Todo o nosso trabalho é hevel, vaidade; é sopro de vento, frágil, vazio, insubstancial. A grade curricular acadêmica está abarrotada de livros — palavras atrás de palavras. E o Pregador nos recorda que “não há limite para fazer livros, e o muito estudar é enfado da carne” (12.12).

Por que o Pregador afirma que é coisa enfadonha nos dedicarmos aos nossos estudos? Porque não importa quanto conhecimento acumulemos em nossos cérebros, estes jamais se enchem: “Os olhos não se fartam de ver, nem se enchem os ouvidos de ouvir” (1.8). Nossos olhos viram página após página, nossos ouvidos ouvem aula após aula; não obstante, a satisfação nos escapa. No fim das contas, é tudo mais da mesma coisa — que já sabemos até “de trás para frente”. “Há alguma coisa de que se possa dizer: Vê, isto é novo?” (1.10). O Pregador parece solapar aos seus estudantes o apetite insaciável por conhecimento.

Eclesiastes questiona uma de nossas suposições culturais mais estimadas: que a curiosidade é uma coisa boa. A curiosidade é um vício, não uma virtude. 1 João 2.16 fala de três tipos de amor mundano: a concupiscência da carne, a concupiscência dos olhos e a soberba da vida. Santo Agostinho, em suas Confissões, identifica a segunda delas, a concupiscência dos olhos, como a curiosidade. Por quê? Porque ver e conhecer são uma e a mesma coisa. O bispo africano lamenta a nossa “concupiscência por experimentar e conhecer”. “Para satisfazer essa ânsia insalubre”, comenta ele,

cenas ultrajantes são exibidas nos espetáculos. O mesmo motivo opera ao estudarem as atividades da natureza que se acham além de nossa capacidade, quando já não há proveito algum em conhecer e os investigadores desejam simplesmente o conhecimento por si mesmo. […] Mesmo na própria religião vê-se o motivo ao ser Deus “tentado” pela exigência de “sinais e prodígios” (João 4.48), estes desejados não por qualquer fim salvífico, mas tão somente pela emoção (Conf. X, 35, 55).

“Mesmo na religião”, diz Agostinho. Mesmo os estudos teológicos não estão imunes ao vício da curiosidade.

O Rei Herodes, em Lucas 9, levanta uma excelente pergunta: “Quem é, pois, este?” Essa é, antes de mais nada, a pergunta para todo estudante de teologia. Não é a pergunta em si que é o problema, mas, sim, a curiosidade com que Herodes a levanta. Isso mal nos deveria surpreender. Afinal, Herodes não era particularmente uma pessoa virtuosa: vivia com Herodias, mulher de seu irmão, e quando João Batista ousou levantar um questionamento sobre isso, o rei serviu sua cabeça num prato. Herodes era guiado mais pelo vício que pela virtude.

Ainda assim, ele se empenha numa investigação teológica. As pessoas estão especulando sobre quem é Jesus. Herodes, conforme lemos, está “perplexo” com a questão. Poderia João ter ressuscitado dentre os mortos? Poderia este ser Elias? Ou poderia um dos antigos profetas ter ressuscitado? Não importa o quão perverso seja como pessoa, Herodes continua sendo um estudante de teologia. Ele quer saber quem é Jesus, e assim esforça-se por vê-lo (9.9).

Herodes dá rédeas soltas à curiosidade. Sua perplexidade perdura até o fim, quando Pilatos envia-lhe Jesus. Lemos no capítulo 23: “Herodes, vendo a Jesus, sobremaneira se alegrou, pois havia muito queria vê-lo, por ter ouvido falar a seu respeito; esperava também vê-lo fazer algum sinal” (23.8).

O desejo de Herodes é ver Jesus. Infelizmente, ele é meramente curioso. Caiu na cilada empírica da “concupiscência dos olhos”. Sua esperança de ver um sinal operado por Jesus não pode senão nos lembrar da afirmação de Agostinho, de que, mesmo na própria religião, a curiosidade surge quando buscamos o conhecimento por si mesmo, procurando “sinais e prodígios” tão somente pela emoção. Herodes vê Jesus, e, não obstante, trata-o com desprezo, escarnece-o e reveste-o de um manto aparatoso (Lucas 23.11). A pergunta de Herodes, “Quem é este?”, procede da curiosidade. Ele não é um estudante genuíno.

Jesus toma para si a pergunta herodiana. “Quem dizem as multidões que sou eu?” (9.8), pergunta ele aos seus discípulos. Eles respondem com as diversas opções mencionadas anteriormente — João Batista, Elias, um dos antigos profetas. “Mas vós, quem dizeis que eu sou?” Sempre ávido, a mão levantada primeiro, Pedro responde: “És o Cristo de Deus” (9.20). Tanto Herodes como Pedro podem ter-se matriculado. Mas somente Pedro sabe como lidar com a questão.

Retornemos à pergunta do Pregador: “Há alguma coisa de que se possa dizer: Vê, isto é novo?” A pergunta pode parecer retórica. “Não” seria a resposta óbvia. Não há nada novo debaixo do sol. Um enfado resignado no estudo e no trabalho pareceria inevitável.

Mas, ainda assim, o Livro das Lamentações apresenta o evangelho, em meio às ruínas de Jerusalém: “As misericórdias do Senhor são a causa de não sermos consumidos, porque as suas misericórdias não têm fim; renovam-se cada manhã; grande é a tua fidelidade” (Lm 3.22–23). O Profeta Isaías apresenta o evangelho, prometendo um fim a todo o exílio: “Eis que faço coisa nova, que está saindo à luz; porventura, não o percebeis?” (Is 43.19). João, o Vidente, apresenta o evangelho quando vê “novo céu e nova terra, pois o primeiro céu e a primeira terra passaram, e o mar já não existe” (Ap 21.1).

Há uma coisa de que se diz: “Vê, isto é novo”. A coisa nova é o evangelho. A coisa nova é Jesus, o Cristo de Deus. A coisa nova é o Espírito do Pentecostes. A coisa nova é a Igreja. A coisa nova é o Reino de Deus. Com efeito, toda a grade curricular da nova aliança é repleta de coisas novas.

Logo antes de discutir o vício da curiosidade na Summa Theologiae, São Tomás de Aquino lida com o tópico da estudiosidade (ST II-II, q. 166). Ele trata a curiosidade como um vício, mas considera a estudiosidade uma virtude. Em outras palavras, não o conhecimento per se, mas a busca imoderada ou imprópria do conhecimento é o problema. Apropriando-se da linguagem de Eclesiastes: O reconhecimento do evangelho como novo distingue a estudiosidade da curiosidade.

Exige-se vigilância dos que desejam ser estudantes de coisas novas, pois a abordagem de Herodes é mais fácil que a de Pedro, e a curiosidade, mais fácil que a estudiosidade. A curiosidade é a busca concupiscente dos prazeres dos olhos; a estudiosidade, a busca sacrificial das coisas que não se veem (cf. 2Co 4.18). Tanto a abordagem de Herodes como a de Pedro estão ao dispor dos estudantes de Jesus. Somos chamados diariamente a nos empenhar na luta contra a curiosidade, à medida que exploramos sempre mais profundamente a única pergunta que verdadeiramente importa: “Vós, quem dizeis que eu sou?”

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