Crítica — Infiltrado na Klan, Spike Lee

Lucas Boaventura
Acabou em Pizza
Published in
4 min readNov 22, 2018

Spike Lee é um dos cineastas mais importantes do cinema norte-americano, isso é fato. Com trabalhos consagrados em sua filmografia, como “Faça a Coisa Certa” e “Malcolm X”, Lee é conhecido por abordar questões raciais em suas críticas sociais. Seus trabalhos mais significativos da década de 80 trazem Nova York sob uma perspectiva negra, explorando personagens complexos em situações comuns da experiência afroamericana nos bairros periféricos da cidade. Após seu último filme para o grande público, o remake do sul-coreano “Oldboy”, não ser bem recebido pela crítica, Spike Lee se dedicou a produções menores e voltou às raízes com a série da Netflix, “Ela Quer Tudo”, remake do seu próprio filme de 1986. “Infiltrado na Klan” é seu grande retorno ao cinema blockbuster.

Inspirado em fatos, o filme nos apresenta Ron Stallworth, primeiro policial e detetive negro do Departamento de Polícia de Colorado Springs, nos Estados Unidos. Ron ficou conhecido por se infiltrar no grupo supremacista branco Ku Klux Klan, na década de 70, se passando por um homem branco a fim de investigar as atividades da KKK. O personagem é interpretado por John David Washington — filho da Denzel Washington, antigo colaborador de Spike Lee — em uma performance memorável. O ator, conhecido pela série “Ballers” da HBO, se entrega a seu primeiro grande papel como protagonista no cinema, e divide a tela (e o nome) com Adam Driver, que interpreta Flip Zimmerman, policial judeu envolvido na operação.

Todos os direitos reservados © NBCUniversal

Em “Infiltrado na Klan” Spike Lee nos transporta para o final da década de 70, período de enorme força dos movimentos de direitos civis negros. Contudo, Lee não quer apenas apresentar uma história biográfica: seu objetivo é falar sobre os dias de hoje. Após eventos recentes, como a marcha de Charlottesville, e a ascensão dos grupos supremacistas brancos ao redor do mundo, a Ku Klux Klan voltou a ser falada com frequência nos noticiários e redes sociais. Quem são essas pessoas que acreditam em raça pura e higienização racial? A Ku Klux Klan que o filme aborda é formada majoritariamente pelas mesmas pessoas que compõem esses grupos extremistas atualmente: conservadores que se dizem pessoas de bem —sobretudo, homens brancos. Para falar dessas (e com) pessoas, Lee assume um tom fortemente ácido, que diverte quem identifica essas caricaturas e (possivelmente) irrita quem se vê refletido nas figuras de homens estúpidos, manipuláveis, cuja coisa mais consistente que os une é a incapacidade de raciocinar sem os discursos prontos de seus líderes. O diretor não se basta em colocar o dedo na ferida — seu filme é uma comédia, afinal de contas. Spike Lee vai do cidadão médio ao líder da KKK na época, David Duke, para mostrar que essa é piada. Esses homens são a piada. Infelizmente, uma piada real demais.

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Das complexidades do personagem principal, Ron Stallworth, um dos aspectos mais ricos é seu conflito interno com a militância negra e seu próprio trabalho. Ron não é um ativista e seu primeiro trabalho para a polícia, a fim de entrar para o serviço de inteligência, é infiltrar-se em um evento onde Stokely Carmichael, militante negro associado a grupos estudantis, irá discursar. Isto é, dar informações à polícia sobre um evento que buscava reunir pessoas para lutar por uma mesma causa: a sobrevivência da população negra, a qual fazia parte. Esse conflito é sustentado pela personagem interpretada por Laura Harrier, Patrice Dumas. Patrice (com um quê de Angela Davis) é ativista dos direitos civis e líder estudantil, responsável por receber Carmichael na cidade, e parte dela o contraste principal entre as realidades dos personagens: enquanto Patrice é uma pantera negra, Ron é um policial, em um momento em que a violência policial já era questionada e criticada. É como um Romeu e Julieta do movimento negro. Mesmo sendo policial, Ron tinha suas convicções políticas e vivenciava o racismo diariamente no trabalho. Se infiltrar na Klan, naquele contexto, era mais do que uma investigação: era uma forma de Ron mostrar que se importava em combater o racismo e a violência que a comunidade negra vivia.

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Do ponto de vista técnico, destaca-se a linguagem própria do diretor em suas montagens, com cortes bruscos para referências externas. Dessa colcha de retalhos que Spike Lee constrói com as referências, é importante ressaltar a menção ao cinema blaxploitation. Não está apenas no roteiro, mas também na composição visual de algumas cenas, e traz a assinatura do diretor.

Poucos filmes são tão certeiros em sua proposta de atemporalidade quanto “Infiltrado na Klan”. Sua temática reverbera discussões densas sobre diferentes questões raciais, além de ser um produto cultural de extrema relevância em tempos como os que vivemos hoje — um filme que atinja o grande público para trazer críticas sociais e políticas tão sérias sai do status quo de cinema por entretenimento e torna-se cinema como expressão de protesto. Spike Lee produz aqui o que pode ser considerado um dos melhores filmes do ano — e quiçá da última década.

TRAILER DO FILME

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