Crítica — Ponto Cego, de Carlos López Estrada

Lucas Boaventura
Acabou em Pizza
Published in
4 min readOct 4, 2018

As discussões sobre violência policial e racismo estão mais potentes do que nunca. Desde a eleição de Trump à presidência dos Estados Unidos, diversos artistas se posicionaram das mais diferentes formas contra o governo norte-americano. Temos clipes como Formation, da Beyoncé, e, mais recentemente, This is America, de Childish Gambino, discutindo a violência policial sofrida pelo povo negro nos Estados Unidos, e movimentos como o Black Lives Matter (“Vidas Negras Importam”, em português) unindo vozes para gritar contra o genocídio do negro: — Parem de nos matar! Nessa onda de posicionamentos artísticos, políticos e sociais, o circuito cinematográfico do país tem explorado as relações de raça com as violências. “Ponto Cego” é um desses filmes com potencial de levantar inúmeros debates.

Dirigido pelo mexicano Carlos López Estrada, o longa nos insere na vida de Collin, interpretado por Daveed Diggs, durante três dias intensos em uma das cidades mais violentas dos Estados Unidos, Oakland. Prestes a sair da liberdade condicional, vivendo em um pensionato supervisionado, Collin trabalha em uma transportadora com seu melhor amigo de infância, Miles. Eles não só têm personalidades opostas, como também vivem experiências totalmente diferentes em relação à tensão causada pela violência policial: Miles é um homem branco que vive na periferia, e Collin é o negro que os noticiários frequentemente mostram entrando para as estatísticas — quando mostram. Os personagens, unidos pelo mesmo contexto social, vivem realidades próximas e, ao mesmo tempo, distintas. Em certo ponto do filme, a personagem Val, interpretada por Janina Gavankar, explica para Collin o que é um “ponto cego”: trata-se de um ponto (ou algo) que não conseguimos ver, teoricamente, mas está lá. Essa metáfora, explicada somente após metade da projeção, é a base do roteiro. Collin é o corpo negro esvaziado de humanidade, visto como criminoso pela polícia na rua — e interpretado erroneamente pelas pessoas do seu convívio, que o enxergam na sombra da detenção que cumpre.

© 2018 — Lionsgate

Um dos grandes acertos do roteiro, assinado por Diggs e Rafael Casal, é explorar profundamente seus personagens. A partir de Collin é possível analisar uma série de questões a respeito da saúde mental do homem negro: não há somente o medo da “confusão” policial, mas também encarceramento em massa, genocídio e a violência como realidades que colocam o indivíduo negro em um ápice do desgaste psicológico. Daveed Diggs carrega o personagem com maestria, sabendo transitar entre a comédia, o drama e o suspense. É um trabalho denso. Ele dá suporte para que consigamos entender o que o personagem sente, e o porquê de ele sentir medo — e raiva, tristeza, angústia, dor. O ator (e rapper!) divide o protagonismo com Casal, intérprete de Miles, personagem essencial para analisar e pensar o abismo entre as experiências desses dois homens com a violência. Apesar de ser um dos alívios cômicos, Miles é complexo em seu background dramático, com camadas que também o colocam nesse espectro de ponto cego. É casado com uma mulher negra e tem um filho negro — uma das cenas mais interessantes do filme, inclusive, mostra a mãe da criança lendo uma cartilha de “como explicar para seu filho negro o que é um policial”. A preocupação com o destino do jovem negro não fica contida somente em sua experiência individual, mas transpassa a dinâmica familiar. Esse panfleto é dado a ela pela mãe de Collin, também uma mulher negra.

© 2018 — Lionsgate

“Ponto Cego” não deixa a desejar em aspectos técnicos: trilha sonora excelente, edição de som bastante atenta, planos corretos. Tudo parece estar equilibrado de forma que o destaque seja a atmosfera. Sentimos o incômodo e a tensão de forma visceral — o medo não é apenas abstrato. Cada viatura que passa por Collin na rua faz nosso corpo afundar na poltrona do cinema. É pesado, como se pairasse pela sala e pela nossa consciência. É assim o sentimento de temer pela própria vida só por andar na rua perto de policiais? Essa é a pergunta que o filme nos conduz a fazer, no íntimo. Negros se identificarão em diversos momentos do longa. Aos demais, o filme deixa que o terceiro ato fale por si só. Precisamos sair do cinema procurando pelos pontos cegos ao nosso redor.

Trailer do Filme

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