Crítica — Tully

Maternidade e amadurecimento em filme ácido estrelado por Charlize Theron

Lucas Boaventura
Acabou em Pizza
4 min readJun 1, 2018

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E se Mary Poppins fosse uma jovem esquisita cheia de vida ajudando uma mãe desesperada? “Tully” é a segunda colaboração entre Charlize Theron e Jason Reitman, conhecido por “Juno” e “Amor Sem Escalas”, e sua história tem um quê de Mary Poppins, só que sem fantasia e pássaros cantando.

Aqui, ao contrário do musical da Disney, somos apresentados à Marlo e sua família em uma realidade nada deslumbrante. Marlo acaba de dar à luz ao terceiro filho e, apesar de viver com o marido, com quem não tem uma vida sexual muito ativa, não consegue dar conta de cuidar de duas crianças pequenas, um bebê e uma casa. Um de seus filhos é uma criança sensível enfrentando problemas de adaptação à escola e o bebê recém chegado exige dedicação total — todas essas responsabilidades, apesar de serem do pai também, recaem sob Marlo, que não cuida de si mesma há anos. Após relutar, Marlo decide contratar uma babá noturna, chamada Tully, para auxiliar no cuidado do bebê nesse período. O que essa mãe não sabia era que Tully seria mais do que uma jovem babá.

Em sua segunda parceria com o diretor, Charlize Theron vive um de seus papeis mais significativos. Marlo é uma mulher exausta que, até certo ponto, recusa qualquer ajuda e carrega nas costas responsabilidades que não deveriam caber somente à ela— mas que comumente são atribuídas apenas à mãe. A atriz capta a essência dessa mulher com maestria e carrega o filme. Há cenas em que ela parece atordoada, estressada e distraída, tudo ao mesmo tempo. O primeiro ato, em especial, é repleto de cenas que oscilam entre comédia e drama, dependendo totalmente do desempenho da intérprete e Charlize encontra a sintonia perfeita entre esses dois gêneros. Um exemplo desse controle da atriz ao compor a personagem é uma cena em que Marlo tenta urinar logo após dar à luz e acaba discutindo com a enfermeira, explodindo em um misto de sentimentos. Se o filme estiver apto a concorrer na temporada de premiações, não será uma surpresa ver Charlize Theron figurar entre as categorias de Melhor Atriz. É um trabalho extremamente consistente que ela entrega em “Tully”.

A personagem-título é vivida por Mackenzie Davis, conhecida pelo episódio “San Junipero”, de Black Mirror. Mackenzie, apesar de novata, carrega bem o papel e dá graça a personagem. Consegue encontrar o equilíbrio entre inocência e sabedoria e torna-se chave para a compreensão de quem é Marlo. O restante do elenco também se sai bem — em especial, Mark Duplass, super confortável na pele de Craig, irmão de Marlo, e Asher Miles Fallica, intérprete de Jonah, um dos filhos de Marlo. Há uma cena difícil envolvendo Jonah e Marlo e o menino segura a carga dramática com bastante eficiência.

O roteiro, assinado por Diablo Cody, também velha colaboradora de Reitman, com quem já fez “Juno” e “Jovens Adultos”, é simples, porém inteligente e sincero. Marlo é mãe, mas não sente-se abençoada pela gestação e pela responsabilidade de cuidar dos filhos e da casa praticamente sozinha. O filme inteiro trabalha os aspectos psicológicos dessa mulher que abriu mão de si mesma para ser mãe; é fácil simpatizar com Marlo e tentar entendê-la. A atriz ganhou peso para encarar o papel e isso é um elemento importante na composição estética da personagem — olheiras, cabelo desarrumado, mamilos machucados por amamentar e dores no peito pelo excesso de leite. “Tully” rompe com a idealização da gestação super feliz e perfeita, e explicita uma realidade que o cinema hollywoodiano raramente explora, além de resgatar uma roteirista que há tempos não entregava um trabalho tão honesto nas telonas.

“Tully” está em cartaz no Brasil.

As parcerias entre Cody e Reitman costumam abordar questões dramáticas de forma engraçada e com “Tully” não foi diferente: o filme é uma das melhores comédias do ano, até o momento. Engraçado e sensível, consegue caminhar entre gêneros com sutileza e entrega uma história com um ótimo fechamento, que, além de permitir pensar sobre a maternidade e suas agruras, fala sobre amadurecer e se autoconhecer. Imperdível.

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