“O caso do homem errado" revisita o homicídio de Júlio César de Melo Pinto para falar sobre o genocídio do negro no Brasil

Lucas Boaventura
Acabou em Pizza
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3 min readMar 22, 2018

Na última semana, perdemos Marielle Franco, vereadora e ativista, assassinada covardemente a tiros, incluindo na sua cabeça. O motivo da execução segue em investigação, mas não é difícil encontrar a resposta. Marielle era um corpo negro político, eleita com mais de 46 mil votos na cidade do Rio de Janeiro, conhecida pela causa negra e feminista, além de sua trajetória na luta pelos direitos humanos. Recentemente envolvida com denúncias sobre a violência da PM, Marielle incomodava. A morte dessa mulher trouxe a tona uma discussão que sempre foi pauta de extrema importância no movimento negro: o genocídio da população negra no país. Esse é o mote que Camila de Moraes, segunda diretora negra a estrear em circuito comercial em toda história do cinema brasileiro, toma para a construção de seu documentário “O caso do homem errado”.

Produzido por Camila de Moraes e Mariani Ferreira, o longa apresenta a história de Júlio César de Melo Pinto, executado pela Polícia Militar em 1987, em Porto Alegre. O homem errado em questão era um jovem negro, casado e trabalhador, sem antecedentes criminais, que morava no bairro Partenon, quando perto de sua casa acontecia um assalto a um supermercado. Júlio saiu então para ver o que estava acontecendo e, no meio da troca de tiros entre os assaltantes e a Brigada Militar, teve um ataque epiléptico e foi levado pela PM como suspeito do crime. O que colocava Júlio César como suspeito?

O documentário faz o uso de diversos depoimentos para traçar a linha de denúncia contra a violência policial, desde o jornalista Ronaldo Bernardi, que teve papel chave para resolução do caso, até a viúva de Júlio César, Juçara, além de sociólogos e pessoas envolvidas com a luta pelos direitos humanos. Ronaldo, que se emociona ao lembrar da cena, foi responsável pelas imagens que deram repercussão ao caso na época: suas fotografias mostram Júlio César dentro da viatura da polícia com o nariz sangrando ainda com vida, pouco antes de chegar ao hospital, morto a tiros. As imagens e a movimentação na mídia junto ao apoio do Movimento Negro Unificado e do Movimento de Justiça e Direitos Humanos foram essenciais para pressionar a investigação e, consequentemente, as condenações dos policiais que executaram Júlio César. Dentre os condenados, todos expulsos da corporação, nenhum cumpriu sua pena total e um tenente foi absolvido posteriormente.

“O caso do homem errado” acerta ao usar como ponto de apoio o questionamento sobre quem vem a ser o homem errado. Foi Júlio César naquele momento, mas o critério para determinação das suspeitas de envolvimento com crimes se baseia em um fenótipo tão específico quanto parece? Existe um homem certo? Segundo o Atlas da Violência, realizado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada e pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública em 2017, com base nos homicídios ocorridos entre 2005 e 2015, a cada 100 assassinatos cometidos no Brasil, 71 eram de pessoas negras. Enquanto os estados com maior número de mortes relacionadas à intervenções policiais são Rio de Janeiro, São Paulo e Bahia. O longa se preocupa em mostrar dados estatísticos que explicitam a situação do negro no país e liga isso aos depoimentos de sociólogos que fortalecem tais questionamentos sobre o que torna o negro um suspeito em potencial.

Entrando hoje em circuito comercial, após passar pelo Festival de Gramado e pelo 9° Festival Internacional de Cine Latino, Uruguaio y Brasileiro, onde ganhou o prêmio de Melhor Longa Metragem, “O caso do homem errado” havia tido uma pré-estreia em 2017, na Cinemateca Capitólio, logo após uma marcha pelo fim do genocídio da população negra. Mais do que um filme sobre o racismo estrutural, sua construção carrega uma denúncia urgente — o caso de Júlio César aconteceu no final dos anos 80 mas o assunto nunca foi tão atual. A ferida do assassinato de Claudia Silva Ferreira, que teve seu corpo dilacerado ao ser arrastado por 350m no porta mala do carro da Polícia Militar, ainda está aberta. Precisamos falar sobre os outros homens e mulheres errados que estão sendo mortos somente por serem negros.

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