Esporte

A bola é feminina, o futebol nem tanto

O futebol feminino cresceu nos últimos anos, no entanto ainda falta muito para alcançar o reconhecimento ideal

Rafaela Frison
Acabou em Reportagem

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Qual foi o último time campeão do Brasileirão? O último time campeão da Libertadores? E o melhor jogador do mundo? Não é muito difícil saber quais são as respostas para essas perguntas. Hoje, o futebol interfere na vida das pessoas, mesmo sem que elas percebam. E se essas perguntas fossem direcionadas ao futebol feminino? Seria fácil responder? A identidade do Brasil está muito relacionada ao futebol, mas, infelizmente, o “país do futebol” valoriza muito mais o futebol masculino espetacularizado, deixando a modalidade feminina às margens.

Uma pesquisa do Ibope de 2017 mostra que o preconceito mais praticado no Brasil é o machismo. É esse machismo que, de muitas maneiras, acaba afetando o futebol feminino no país. Durante a presidência de Getúlio Vargas, criou-se o Decreto-Lei 3199, que proibia a prática do futebol por mulheres. Segundo a professora da UFRGS e pesquisadora da área Silvana Goellner, o critério era médico: as mulheres não teriam a capacidade física e o futebol masculinizava. “Foram argumentos biológicos que, na verdade, justificam o preconceito social, o que se pensava em uma determinada época sobre o local que as mulheres deveriam ocupar.”

Esse decreto durou 38 anos. Da revogação, em 1979, até hoje, muita coisa mudou e a modalidade teve grandes avanços, porém, não o suficiente. A menina ainda ganha uma boneca ao invés de ganhar uma bola.

Dados que doem mais do que cartão vermelho!

Demonstração da disparidade no investimento financeiro no futebol feminino e masculino, no Brasil em 2017

Impedimentos

Mesmo que o futebol feminino e o masculino sejam distintos, pois envolvem cargas físicas e estímulos diferentes, enquanto existir um contraste entre o universo esportivo de ambos, haverá comparações. Um movimenta milhões de reais, e o outro ainda luta por garantias básicas. “Nós vamos brigar por mais, porque é surreal a diferença, o muito pra nós, não é nada pra eles”, enfatiza Daiane Moretti, atacante do Internacional.

Por conta do preconceito, os pais não deixam as meninas jogarem bola, assim, elas começam tarde. “Isso acarreta em dificuldades futuramente, elas não desenvolvem o repertório motor e a percepção corporal, então não têm desenvolvimento da técnica e da tática. Depois, falam que o jogo do futebol feminino é lento, mas é claro, olha o desenvolvimento que já se perdeu”, explica Suellen Ramos, preparadora física do time feminino do Internacional. “É lógico que uma atleta que começou com 14 anos não vai atingir o mesmo nível de um atleta homem que começou a chutar uma bola com dois anos”, completa Pedro Klever, técnico da equipe feminina do Grêmio.

Muitas mulheres ainda não vivem o futebol como uma profissão e, ao terem uma atividade secundária, se desgastam mais. A grande maioria não tem carteira assinada, tampouco contrato com os clubes. Elas ficam a mercê do desemprego. “Eu machuquei o joelho direito e não tinha condições de jogo. Como eu não tinha contrato, não recebi”, conta Pamela Joras, ex-jogadora, pesquisadora do tema e árbitra. “A profissionalização é uma luta difícil que ainda temos pelo caminho.”

“Muita coisa avançou, por exemplo, números de equipes e de campeonatos, mas também tem muito no que avançar”, enfatiza a pesquisadora Silvana. Este ano o campeonato brasileiro está com a Série A1 e A2. “Mas, por outro lado, nós perdemos o patrocínio da Caixa Econômica Federal, que investia 10 milhões de reais por ano, então nenhum canal de televisão está transmitindo os jogos”, explica Pamela. “Tem que olhar com os mesmos olhos, futebol é futebol, não pode ter diferenciação por ser masculino ou feminino. Se transmite futebol masculino, tem que transmitir futebol feminino. É o mesmo esporte, a gente precisa de igualdade”, diz Elisandra Guerra, meia-direita do Grêmio.

Assistências

O cenário está em ascendência. Além da constante luta das mulheres para terem seus espaços reconhecidos, o Programa de Modernização da Gestão e de Responsabilidade Fiscal do Futebol Brasileiro (ProFut) e o regulamento da Conmebol auxiliaram para que isso tenha ocorrido.

A lei do ProFut, sancionada em 2015, teve como principal objetivo ajudar os clubes a quitarem suas dívidas com a União. Em contrapartida, os clubes precisavam cumprir diversas obrigações, uma delas era investir em categorias de base e em futebol feminino. “Quando essa lei saiu, a gente comemorou muito, pois se os times quisessem ter suas dívidas renegociadas, teriam que, obrigatoriamente, investir”, comenta Pamela. Segundo ela, o problema da lei é que ela diz que tem que investir, mas não diz como. E é nesse como que ficam as brechas. “É muito simples pegar uma escolinha que é bem estruturada e colocar uma camiseta de um Clube. Isso não é investimento, é maquiar uma coisa que já está defasada”, aponta Joras.

Além disso, a Conmebol divulgou, em 2017, que as equipes que disputassem a Copa Sul-Americana ou a Libertadores precisariam ter uma equipe de futebol feminino. Suellen Ramos acredita que, por mais que seja uma obrigação e que a ideia não tenha partido dos diretores dos clubes, isso ajudou. Os times de camisa, ou seja, os times do futebol masculino que disputam a elite do campeonato brasileiro, levam para as competições uma maior visibilidade, gerando mais investimento, mais apoio e mais patrocinador, consequentemente, geram mais dinheiro. “O meu medo é que isso não dure, que a lei caia em 2020 e que os clubes dispensem todo mundo. Se cair a obrigatoriedade, os times acabam, a não ser que tenha uma mudança cultural muito grande”, diz Suellen.

Na trave!

Clubes consolidados, como Grêmio e Internacional, vêm investindo em seus times femininos. No entanto, as estruturas cedidas para as atletas estão longe de serem as mesmas oferecidas para os atletas masculinos.

Jogadoras do Grêmio treinam no Vieirão, em Gravataí / foto: Jéssica Maldonado / Grêmio FBPA

O Grêmio está em seu segundo ano de projeto. Do ano passado para este houve crescimento, pois ocorreu uma parceria com o Cerâmica Atlético Clube, de Gravataí. O estádio Antônio Vieira Ramos, mais conhecido como Vieirão, foi alugado pelo Grêmio para a realização das atividades das atletas e para o mando de jogos. “Essa casa tem alojamento, sala de musculação, cozinha… Além disso, como é nosso, podemos treinar o horário que queremos.” Segundo ele, o Grêmio, neste ano, busca se estruturar.

Porém, de acordo com o técnico Pedro Klever, ainda há muito atraso por não haver outros departamentos, como o de fisiologia e o de análise de desempenho. Além disso, outro obstáculo é a não profissionalização das atletas. “O Grêmio, hoje, tem um time de futebol feminino para estar dentro da legislação. Então, não é que o Grêmio investe, de fato, no futebol feminino.” Para ele, não há uma preocupação em dar, para as atletas, um apoio financeiro melhor ou uma estrutura mais profissional.

Apesar disso, ele acredita que as pessoas estão começando a aceitar o futebol feminino e entender que as meninas também jogam futebol. “É um processo longo e demorado, não é de uma geração para a outra, é uma mudança de cultura e de pensamento da sociedade. Mas já é melhor do que foi ontem e, o que for no futuro, será melhor do que é hoje”, diz Klever.

O Internacional vive uma situação diferente. Ano passado, começou em um contexto de time amador e, agora, está em um processo de transição para o profissional. As atletas são assalariadas, têm plano de saúde e vale transporte. “Se olharmos o que temos hoje e o que tínhamos ano passado, dá pra ver o salto enorme que demos”, comenta a preparadora física Suellen. “Esse ano, o Clube investiu e aumentou o salário de algumas. Conseguimos fazer com que elas dessem prioridade para o futebol.”

Gurias Coloradas posam para foto após classificação para o Brasileirão A2 / foto: http://www.internacional.com.br/

No entanto, existe uma distância gigantesca do futebol masculino do Inter para o futebol feminino. As gurias jogaram no Beira-Rio duas partidas, apenas. A árbitra, Pamela Joras, apitou o primeiro deles. “Teve uma situação que me marcou. A capitã do Internacional, num momento de intervalo, falou: “Dá um tempinho a mais de acréscimo?”. E eu questionei: “Por quê?”. “Porque não sabemos quando vamos jogar aqui de novo. É a primeira vez e, talvez, a última. Então, deixa a gente ficar mais um pouquinho”, relata Joras. “Aquilo deu uma mexida, mas retrata um pouco do que elas vivem.”

De acordo com Suellen, o problema é que elas ainda não vivem dentro do Clube. “No momento, em que utilizarmos toda a estrutura de campo, de vestiário, de restaurante, de fisioterapia e de nutrição do Clube, aí sim, seremos profissionais.”

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