Além do Jurídico

Grupo interdisciplinar atua de dentro da Universidade para a defesa de jovens infratores

Luísa Tessuto
Acabou em Reportagem
5 min readJun 18, 2018

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André¹, 17 anos, perdeu o pai cedo e sua mãe tem problemas mentais. Sofreu abuso sexual do tio quando era pequeno e hoje é acusado, junto do irmão, por abusar sexualmente de meninos em um dos vários abrigos em que ficou. Jonas, 16 anos, não tinha envolvimento com tráfico ou facção, mas acabou caindo na conversa do cunhado e participou de um roubo de carros. Nervoso, matou uma estudante que estava no carro e hoje é condenado por latrocínio. Por ter delatado os parceiros, não pode sair nos finais de semana pois tem risco de morte.

Wellington mal completou 18 anos e já espera o segundo filho. Depois de ser acusado por tentar matar transexuais que ficavam na esquina da boca onde trabalhava, decidiu se afastar da vida no tráfico. Seu pai — que Wellington só conheceu quando tinha oito anos porque ele estava preso — é nome importante no tráfico da comunidade e recentemente ficou paraplégico. Agora Wellington se sente pressionado a assumir a função do pai.

Vitor é condenado por tráfico, roubo, porte de arma e homicídio. Tem 17 anos. Wagner, de 17 anos também, roubou um carro, que acabou sendo rastreado porque tinha um celular com GPS dentro. O dono do veículo resolveu não prestar queixa. Tempos depois, Wagner desceu do ônibus e se deparou com o mesmo carro, do qual coincidentemente ele ainda tinha a chave. Roubou o carro novamente. “Achei que era sorte demais”, disse. Agora o dono decidiu prestar queixa, e ele está sendo condenado por roubo de veículo.

Essas e outras tantas histórias que parecem saídas de novela são a realidade de milhares de jovens de Porto Alegre. Por terem cometido atos infracionais antes de serem oficialmente adultos pela lei brasileira, vão parar na Fundação de Atendimento Sócio-Educativo do Rio Grande do Sul (Fase), na Vila Cruzeiro.

Bem distante dali, socialmente e geograficamente falando, mais precisamente no centro de Porto Alegre, na Avenida João Pessoa, alunos da UFRGS se reúnem na sala 101 do prédio da faculdade de Direito para debater os casos listados acima. Esses alunos integram o G10, grupo que faz parte do Serviço de Assessoria Jurídica Universitária (Saju), que tem como objetivo a defesa jurídica desses jovens infratores. Porém, muito mais do que isso, o diferencial do G10 é a busca por uma defesa interdisciplinar do adolescente, visto que, além de estudantes de Direito e advogados voluntários, também fazem parte do grupo estudantes de Educação e Psicologia.

Ana Paula Motta Costa, professora de Direito e coordenadora do G10, explica: “Ao trabalhar com adolescentes, a gente precisa do instrumental jurídico, mas não é suficiente. É preciso uma leitura mais complexa das políticas públicas, das possibilidades para esse adolescente. Porque a forma como funciona o direito para a criança e para o adolescente requer que tu tenhas propostas, por exemplo, para apresentar para o juiz de como vai ser o projeto de trabalho com aquele adolescente”.

Reunião do G10 — créditos: Luísa Tessuto

O QUE DIZ A LEI?

A lei realmente funciona diferente para crianças e adolescentes. “Quando um menor comete um crime, chamamos de ato infracional. Já quando é um adulto, dizemos crime mesmo. Apesar da nomenclatura diferente, ambos são crimes que constam no Código Penal. A diferença é que o Código Penal não é aplicado para menores em dois pontos: no processo, feito para ser mais rápido e menos danoso ao adolescente; e na execução da pena”, explica Thales Medeiros, estudante de Direito e integrante do G10. Resumindo: a definição de crime é a mesma para adultos e menores, porém, assim que é estabelecido que o adolescente cometeu um crime (chamado então de ato infracional), o Código Penal deixa de ser aplicado e o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) entra em ação. É o ECA que vai dizer qual vai ser a pena daquele adolescente, de uma forma que seja menos lesiva e mais adequada a ele. O juiz deve levar em conta aquilo que o adolescente fez, mas também de onde ele vem e qual é seu prospecto de futuro. Isso tudo porque a medida é sócio-educativa, e não apenas punitiva, como é o caso dos adultos.

Essa ação busca entender o adolescente enquanto um sujeito ainda em desenvolvimento, que está numa fase muito peculiar da vida. Biologicamente falando, seu cérebro ainda está se formando, seu corpo está vivenciando uma explosão de hormônios e os seus sentimentos são diferentes dos de um adulto, assim como suas tomadas de decisões, que são muito mais propensas a mudar. A importância da psicologia e da educação dentro do G10 é fazer esse menor compreender melhor a sociedade em que vive, para que ele questione seu meio. A medida sócio-educativa diz respeito à aplicação de uma política pública que busca articular para esse sujeito em desenvolvimento, junto com a sua família e com a comunidade onde ele vive, formas de tirá-lo do crime, de lhe dar opções, para que ele possa sair de eventuais angústias.

COMO FUNCIONA O G10?

O G10 atua conjuntamente com o Programa de Prestação de Serviço à comunidade (PPSC) e com o Estudo e Ação em Políticas de Subjetivar e Inventar (Estação PSI), e todos esses compõem o Núcleo de Extensão do Programa Interdepartamental de Práticas com Adolescentes em Conflito com a Lei (Pipa). Siglas à parte, essa junção é a concretização de que se entendeu que o trabalho dentro da Fase exige uma colaboração entre diferentes áreas para que seja efetivo. Membros do PPSC e do Estação PSI frequentam as reuniões do G10 e vice-versa. Cada área com suas peculiaridades tem um papel fundamental no entendimento e na busca de soluções para esses jovens. Em especial, o PPSC é o lugar onde os jovens cumprem suas medidas em meio aberto, na qual prestam serviço à comunidade dentro da Faculdade de Educação da UFRGS, como por exemplo, trabalhando na gráfica da Universidade.

Na prática, os integrantes do G10 se dividem em subgrupos formados por um advogado e alunos de Direito, de Psicologia e da Educação. Esse subgrupo vai assumir um ou mais casos. Por meio de visitas ao adolescente, muitas delas realizadas na própria Fase, conversas com a família, participações em audiências e acompanhamento do processo jurídico, o subgrupo assume a defesa do adolescente e, na maioria das vezes, segue o acompanhando mesmo depois da sua saída da Fase.

Alex Vidal, ex-integrante do G10, atual colaborador do PPSC e doutorando em Educação, diz que “furar a bolha” é a expressão mais usada pelos alunos quando fazem entrevista para ingressar no G10. Diante da dura realidade dupla do Brasil, furar a bolha é pouco perto da vivência e aprendizado que, tanto os estudantes, quanto os jovens infratores defendidos por eles, adquirem com esse contato.

¹Os nomes foram trocados para preservar a identidade dos menores.

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