Deixa-me viver

O Rio Grande do Sul é o segundo estado com o maior número de casos de Aids, de acordo com Ministério da Saúde

Andressa Mendes
Acabou em Reportagem
6 min readJul 4, 2018

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Laço vermelho símbolo da luta contra a Aids / Foto e Edição: Andressa Mendes

O Rio Grande do Sul é o segundo estado com maior número de casos de Aids no país, fica atrás do estado de Amazonas com 33,4. Segundo o Ministério da Saúde, são 31,8 casos para cada 100 mil habitantes, quase o dobro da média nacional: 19,7 casos por 100 mil habitantes. A capital Porto Alegre ocupa a primeira posição do Ranking entre as capitais, são 65,9 casos por 100 mil habitantes. Na Região Sul, são 17 casos em homens para cada 10 mulheres na faixa etária de 50 anos ou mais. Entre esses números, está Maria Elisabete, que há quatro anos é portadora do vírus.

Maria Elisabete tinha 64 anos quando descobriu que era portadora do vírus da Aids. Na cama do hospital, ela se lembra do momento em que o médico deu a notícia a sua filha Iara: “Ela ficou decepcionada”, conta. Isso foi em 2014. Nos últimos anos, Beth — como gosta de ser chamada — vem lutando contra a Leucoencefalopatia Multifocal Progressiva (Lemp), uma doença degenerativa das funções motoras que a impede de realizar movimentos no lado direito do corpo e atinge 1% da população com Aids.

Em 1972, Beth começou a construir um novo futuro para sua família ao se mudar para Madureira, Rio de Janeiro, com seu marido e filhos, Iara, 2 anos, Cristiano, de 6 meses e a espera de Maurício¹. Deixou a capital gaúcha a procura de melhores condições financeiras, porém nem tudo saiu como planejado: “Foram momentos muito difíceis, tivemos que nos adaptar”, diz ela. Ao longo dos doze anos que viveu no Rio, passou a investir em sua carreira de vendedora de imóveis. O começo foi promissor, muitos clientes e ótimas vendas, mas esse período não durou. Seu marido estava desempregado e, com mais um filho nos braços, ficar na cidade deixou de ser opção.

Ao voltar com sua família, ela sentiu a necessidade de permanecer em Porto Alegre. Apesar de, depois de muitos anos de brigas, seu casamento ter terminado, com o tempo tudo foi se ajustando. Seu emprego como vendedora de imóveis ia bem e seus filhos cresciam saudáveis. Ao investir em um novo relacionamento, no entanto, acabou engravidando novamente.

No início de 1990, sua filha mais velha já estava casada e seus outros dois filhos longe de casa. Ainda que morasse com o filho mais novo, Luís¹,o desemprego do marido e as brigas levaram a uma nova separação. Foi então que surgiu a chance de se dedicar a educação do filho e a sua carreira. Mas a tranquilidade não durou por muito tempo, seu filho Cristiano, depois de passar mal no trabalho, foi diagnosticado com aneurisma cerebral e Aids devido ao uso de drogas injetáveis. Beth só descobriu a condição de saúde do filho quando já era tarde. Cristiano morreu aos 17 anos, em 1991, logo após o Natal.

Beth continuou a trabalhar. Viu seus filhos amadurecerem e lhe darem netos, mas Luís¹, agora um homem, ainda dependia dela. As vendas de apartamentos asseguravam uma boa renda. Sempre que podia comprava jóias e roupas de grifes. Quando seu filho enfim saiu de casa, Beth passou a morar sozinha aos 57 anos. Acostumada a sair para se divertir, foi em uma das noites que conheceu Carlos, um homem mais jovem, independente, sem filhos e empregado que chamou a sua atenção. Logo passaram a morar juntos. Mas, com o tempo, a estabilidade financeira começou a desmoronar. As vendas de apartamentos diminuiu, Carlos ficou desempregado e Beth teve que reduzir os custos. Foram várias mudanças de apartamentos — os preços dos aluguéis não se ajustavam com as condições financeiras — e, depois de três anos, morar em um galpão tornou-se realidade. Carlos fazia bicos, e Beth se esforçava nas vendas, mas nada parecia mudar.

As únicas pessoas que ainda a visitavam eram sua irmã Maria Bernadete e sua filha Iara. Com o tempo sem se verem, no entanto, Bernadete começou a notar mudanças físicas na irmã: abatida, mais magra e com manchas vermelhas no corpo. Não demorou muito para que a família passasse a desconfiar de sua condição.

O parceiro encantador omitiu: Beth tinha contraído o vírus da Aids devido a relação sexual sem proteção. Em fevereiro de 2013, Carlos, questionado pelos familiares, deixou Beth na casa de sua irmã com todos os seus pertences e nunca mais retornou.”Eu fiquei decepcionada, não pensei que aconteceria com minha mãe”, diz Iara, filha de Beth. Com dificuldades de locomoção, por causa da Lemp, ela passou a morar na casa de sua irmã, aos cuidados da filha. Mas, sem a possibilidade de contratar uma enfermeira, Iara viu a necessidade de colocar Beth em uma casa de repouso.

Com dificuldades para mover a mão direita, Beth usa uma tipoia / Foto e Edição: Andressa Mendes

Foi no início do ano de 2015 que a Associação de Cegos Louis Braille Mantenedora da Casa do Cego Idoso tornou-se seu lar. A Associação foi fundada com o intuito de ajudar no atendimento de pessoas cegas, mas hoje recebe idosos com outras deficiências e degenerações como Beth. Foi difícil se acostumar com a nova rotina: os dias passam devagar, a todo momento o sino toca para avisar o inicio e término das atividades e o horário das visitas.

Em consequência do tratamento tardio do vírus, Beth, hoje com 68 anos, perderá pouco a pouco os movimentos do corpo. O coquetel de antirretrovirais e os remédios para suportar a atrofia muscular fazem parte da rotina. Há um ano ela descobriu ter também Hepatite tipo C, transmitida pela relação sexual. Ela afirma estar pronta para começar mais um tratamento, “Todos os medicamentos têm horário, o meu sino não vai parar de tocar, elas vão se cansar”, fala sobre as enfermeiras.

A TERCEIRA IDADE

No Art. 1.º do Estatuto do Idoso, consta que pessoas com idade igual ou acima de 60 anos são consideradas da terceira idade e têm seus direitos assegurados. Segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o Brasil tem hoje 26 milhões de pessoas acima de 60 anos, sendo várias moradoras de asilos. Para esses idosos a vida se resume a remédios, bengalas e cadeiras de rodas. Eles são dependentes de ajudantes. “Trabalhar com idosos requer paciência e dedicação. Com o passar da idade, é comum ficarem teimosos e não aceitarem os cuidados. Tentamos proporcionar conforto de acordo com suas necessidades, do início ao fim”, conta Suelen Andrade, enfermeira chefe há mais de um ano na Associação de Cegos Louis Braille Mantenedora da Casa do Cego Idoso.

As instituições que abrigam pessoas idosas têm como responsabilidade oferecer habitação apropriada à necessidade de cada morador, assim como manter os padrões de normas sanitárias, de acordo com o Art. 38.º seção 3 do Estatuto do Idoso.

ATÉ O FIM

Márcia ¹ Severo, aposentada, relata que sua irmã Cátia Severo escondeu seu estado de saúde. Devido aos olhares de indiferença de amigos e com medo da rejeição, ela nunca contou que era portadora, mas sua família desconfiava. “Cátia começou a emagrecer”, conta Márcia ¹. A desinformação sobre o contágio do vírus faz com que a pessoas excluam esses grupos. Para Márcia ¹, a intolerância sempre está presente.

Cátia Severo faleceu com 50 anos por motivo de complicações da Aids. Ela sofreu doze infecções, ocasionadas pela falta de tratamento, depois de contrair o vírus por relação sexual sem proteção. Hoje há maior expectativa de vida para pessoas portadoras, a medicação de antirretrovirais é eficaz para conter o vírus, porém o cuidado com a saúde torna-se constante.

Os idosos passaram a aproveitar a vida com mais intensidade e, por consequência, enfrentam os perigos que uma relação sem proteção pode causar. A realidade dos soropositivos hoje é viver uma vida longa e saudável, graças ao resultado antecipado e uso dos medicamentos, no entanto, a falta de informação sobre o contágio da Aids se faz presente, muitos portadores ainda lidam com a negação.

¹Os nomes foram trocados para preservar a identidade.

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