Não é só por 25 centavos

A perda de passageiros nos ônibus de Porto Alegre é reflexo dos problemas do serviço de transporte e traz consequências graves para a vida da cidade

Lilian Santos Dias
Acabou em Reportagem
7 min readJul 4, 2018

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Foto: Lilian dos Santos

“Se eu pudesse, deixaria de andar de ônibus”, diz a técnica contábil Rita de Cassia Amarindo, moradora do bairro Rubem Berta, em Porto Alegre. Essa afirmação reflete a realidade que o sistema de transporte público da cidade enfrenta. Quem não precisa está deixando de utilizar o serviço. Como muitos porto-alegrenses, ela utiliza o ônibus diariamente para se deslocar até o trabalho e relata que a qualidade do transporte não faz jus ao preço da tarifa. “Não tem conforto algum para as pessoas, é superlotado e inseguro, até briga tem dentro dos ônibus”, relata Rita.

Além da superlotação e insegurança, outros fatores como, o aumento do preço da passagem associado à crise econômica, atrasos, demora nas rotas e a concorrência dos transportes particulares, fizeram com que em média 83 mil pessoas por dia deixassem de utilizar os ônibus de Porto Alegre, desde 2017 até março deste ano, conforme dados da Empresa Pública de Transporte e Circulação (EPTC). Essa crise no transporte público se agravou a partir de 2013, em que houve perda de 6% de passageiros nos ônibus. (Ver gráfico) Desde então, o número de usuários vem caindo continuamente. O fenômeno não ocorre apenas em Porto Alegre, é realidade em cidades como Belo Horizonte, Curitiba e Goiânia de acordo com dados da Associação Nacional das Empresas de Transportes Urbanos (NTU).

“Se eu pudesse, deixaria de andar de ônibus.”

Rita de Cassia Amarindo, técnica contábil.

Tempo x Congestionamento

Os atrasos e a demora nas rotas são determinantes para a perda de passageiros nos ônibus. De acordo com a assessoria de comunicação da Associação dos Transportadores de Passageiros de Porto Alegre (ATP), os tempos de viagem são longos porque o coletivo fica preso no congestionamento junto com os carros. “Apenas 7% das vias percorridas têm corredores ou faixas exclusivas”, afirma a assessoria da ATP.

“Quando o deslocamento demora mais que o programado, se faz menos viagens mesmo tendo o mesmo número de carros”, afirma Flávio Tumelero, gerente de Planejamento e Transportes da EPTC. Essa perda da velocidade nos trajetos é danosa para o sistema de transporte, pois é a principal causa dos atrasos.

Lata de sardinha

A superlotação dos ônibus da capital é comum, especialmente nos horários de pico. O desconforto causado por ela está entre os motivos apontados pela pesquisa Mobilidade da População Urbana 2017, da Confederação Nacional do Transporte (CNT), para a substituição do ônibus por outros modos de locomoção.

A estudante de direito da PUCRS Natália Carvalho afirma que esse é um dos pontos que precisa ser melhorado para que o transporte coletivo atraia quem diminuiu o uso ou não utiliza esse serviço, como é o caso dela. “Em horários de pico, colocam o mesmo número de ônibus do que no horário que não tem ninguém, aí lota o ônibus, as pessoas não conseguem nem sentar.”

Insegurança

Outro fator decisivo para a perda de passageiros no transporte coletivo é a crise na segurança pública. “O medo de assalto e violência causa uma queda brusca de passageiros nos ônibus, especialmente a partir das 19 horas”, diz Flávio Tumelero.

A partir de uma parceria da EPTC com a Secretaria de Segurança Pública, houve uma redução de 90% nos índices de assaltos dentro dos ônibus em 2017. Nesse ano foram registrados 1.864 assaltos a ônibus e lotações em Porto Alegre. “As pessoas continuam se sentindo inseguras dentro do transporte público e por isso muitas deixaram de utilizá-lo”, diz Tumelero.

Tarifa sobe, qualidade não

A tarifa dos ônibus de Porto Alegre subiu para R$ 4,30 em março deste ano, tornando-se a mais cara entre as 10 principais capitais brasileiras. Na esteira da crise econômica, o reajuste provocou discussões e contribuiu para o quadro de perda de passageiros. De acordo com os dados da EPTC, o perfil de usuário de vale-transporte (VT) foi o que mais caiu.

Devido ao cálculo da tarifa técnica — que divide os custos de operação pelo número de usuários — quanto menos pessoas pegam ônibus, mais cara fica a passagem e menores são os investimentos no sistema de ônibus. Um serviço mais caro e de baixa qualidade afugenta usuários e alimenta o círculo vicioso. Segundo a ATP, outro problema é o número excessivo de isenções. Enquanto a média nacional é de 18%, Porto Alegre tem cerca de 36% de gratuidades. (Ver tabela)

Por fim, Luiz Afonso Senna, professor do departamento de Engenharia de Produção e Transporte da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) avalia que o modo de ocupação dos centros urbanos também é relevante. Ele considera que, com a população mais pobre ocupando os bairros mais distantes do centro (que concentra os empregos e recursos), foi preciso estender as linhas de ônibus. Esse deslocamento maior encareceu o preço da tarifa, prejudicando quem faz viagens curtas.

Conforme a pesquisa da CNT, a diminuição no preço da passagem foi apontada por 34,5% dos entrevistados como condição para retornar a utilizar o ônibus como modo de deslocamento.

Concorrência para o transporte coletivo

Enquanto o número de passageiros de ônibus diminuiu, de acordo com o Departamento de Trânsito do Rio Grande do Sul (DetranRS), houve um aumento de 6,15% na frota da capital gaúcha desde o último ano.

Foto: Joel Vargas/PMPA

Para o professor Luiz Senna, o transporte público tem sua imagem associada a menos qualidade. “Sempre que tem uma oportunidade as pessoas deixam de utilizar o transporte público”, diz ele. Por isso as facilidades de aquisição de veículos e aplicativos de transporte (Uber, Cabify, 99 Pop, entre outros) também são fatores que geram diminuição no uso do transporte coletivo. “Em sociedades como a nossa, há uma ideia de que pobre anda de ônibus e classe média anda de carro”, afirma Senna. De acordo com o docente, os aplicativos fazem uma concorrência predatória para o transporte público, na medida em que eles tiram dele as pessoas que realizam viagens curtas e que com isso subsidiam as viagens longas. “Quando essas pessoas optam por outras formas de transporte, há um desequilíbrio do sistema”, diz ele.

O conforto e a rapidez por um preço semelhante ao do ônibus conquistaram a preferência de Natália Carvalho, estudante da PUCRS, que utiliza o Uber com frequência para ir de sua casa no bairro Partenon até a faculdade. “Passei a usar mais os aplicativos, principalmente porque os custos pra manter um veículo são altos. Para andar de Uber, só preciso pagar a tarifa. É muito mais prático.”

O resultado dessa soma

Além do encarecimento da tarifa, a perda de passageiros do transporte público para o transporte particular gera mais congestionamentos, inclusive fora dos horários de pico. Além disso, há um aumento nos níveis de poluição na cidade.“Mais carros na rua faz com que os ônibus andem mais devagar, o que provoca um aumento no tempo de viagem, gera atrasos e tudo isso leva a perda de usuários do transporte público. Essa perda de passageiros pressiona a tarifa para cima. Precisa de mais recursos para fazer a mesma operação, ou seja, o serviço não melhora e se torna mais caro”, afirma Tumelero, da EPTC.

“Mais carros na rua faz com que os ônibus andem mais devagar, o que provoca um aumento no tempo de viagem, gera atrasos e tudo isso leva a perda de usuários do transporte público. Essa perda de passageiros pressiona a tarifa pra cima. Precisa de mais recursos para fazer a mesma operação, ou seja, o serviço não melhora e se torna mais caro.”

Flávio Tumelero, gerente de Planejamento e Transportes da EPTC.

Os caminhos possíveis

Pensar em soluções para a crise do transporte coletivo é uma tarefa complexa, asseguram os especialistas. Em curto prazo, a EPTC aposta no aumento das faixas preferenciais para ônibus. “Isso diminui os tempos de viagem, tornando o transporte mais atraente. Uma das maiores queixas dos passageiros é que o ônibus demora muito no deslocamento até o destino”, diz Tumelero.

Outro projeto em andamento é a implantação das tecnologias no ônibus como forma de qualificar o transporte público. Ferramentas como o GPS, câmeras internas e o reconhecimento facial possibilitarão a gestão de operação em tempo real, darão informações precisas para os usuários — especialmente sobre a tabela horária- e coibirão o uso indevido de cartões e os assaltos.

De acordo com o professor Senna, a resolução do problema em longo prazo deve focar no planejamento urbano da cidade. “O melhor seria um planejamento em que as atividades de trabalho, saúde, ensino fossem mais próximas dos locais de moradia das pessoas, reduzindo assim a necessidade de transporte.”

Foto: Gustavo Gargioni/ DETRAN

“O melhor seria um planejamento em que as atividades de trabalho, saúde, ensino fossem mais próximas dos locais de moradia das pessoas, reduzindo assim a necessidade de transporte.”

Luiz Afonso Senna, professor do departamento de Engenharia de Produção e Transporte da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS)

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