Ocupar sem reprimir

Espaço cultural recebe intervenção de trabalhadoras sexuais e inicia ações de aproximação no 4º Distrito

Maiara Dallagnol
Acabou em Reportagem
5 min readJul 4, 2018

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O 4º Distrito de Porto Alegre é oficialmente conhecido como a união dos bairros Floresta, São Geraldo, Navegantes, Farrapos e Humaitá e, em outros tempos, foi o berço do progresso da Capital. Assumindo papel exclusivamente industrial em meados do século 1920, abrigou potências fabris que tiveram grande importância no desenvolvimento da cidade. Pela proximidade com o Guaíba e com a linha férrea, as fábricas viveram seu auge enquanto navios e trens eram as melhores possibilidades de escoamento da produção. Quando deixaram de ser, as empresas ficaram ociosas e então migraram ou fecharam suas portas, deixando a região em estado de degradação.

Adentrar os bairros através da Avenida Voluntários da Pátria faz com que qualquer um sinta-se minúsculo ao lado dos abandonados gigantes de concreto, que conduzem os visitantes até seus destinos. Teoricamente, o 4º Distrito é uma área de revitalização desde 2010, quando a região foi incluída via Lei Complementar no Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano Ambiental, aprovado em 1999. No entanto, nenhum dos projetos que deveriam beneficiar os espaços locais saiu da gaveta do governo. Assim, há aproximadamente dois anos, cansados de aguardar por ações práticas e desejando criar espaços de trabalho colaborativo e de disseminação de arte e de cultura, jovens empreendedores viram no local a oportunidade de implantar suas iniciativas.

A presença dos novos ambientes de convívio na região fez com que aumentasse o fluxo de pessoas nas ruas e que, em eventos esporádicos, algumas fossem fechadas. O senso comum, na maioria das vezes, tende a enxergar apenas o lado benéfico do movimento de geração cultural numa área antes tão abandonada. No entanto, esse pensamento contempla apenas o público frequentador e não representa todos os que circulam pelo 4º Distrito.

Trabalho sexual também é trabalho

A prostituição entre as ruas do 4º Distrito não é incomum. Há pelo menos 30 anos, as ruas que cortam os bairros são pontos fixos de pessoas que encontram na prostituição a forma de sustentarem-se. Antes de estabelecerem-se nas ruas escuras e pouco agitadas, as garotas costumavam esperar por seus clientes no Moinhos de Vento, bairro vizinho ao 4º Distrito. Com o passar do tempo, o local foi tornando-se um dos bairros mais nobres de Porto Alegre, colocando a população mais pobre à margem e obrigando-a a ceder espaço para a comunidade rica que mudava-se para a região. Esse processo de gentrificação fez com que as trabalhadoras sexuais tivessem que se adequar ao novo estilo do bairro e precisassem buscar por novos pontos de trabalho.

No dia 1º de Maio deste ano, Dia do Trabalhador, lambe-lambes foram colados nas paredes externas do Vila Flores, associação cultural sem fins lucrativos do bairro Floresta e local de trabalho de artistas e empreendedores criativos, como forma de manifestação contra suas atividades. Carregando frases como “cultura sim, gentrificação não” e “trabalho sexual é trabalho”, a ação foi a forma que as trabalhadoras noturnas encontraram para apontar que os eventos produzidos à noite atrapalham o seu rendimento, já que o fluxo mais intenso nas ruas constrange seus clientes e eles deixam de aparecer.

A artista visual Priscila Fróes, responsável pela intervenção artística, inspira-se em figuras femininas das artes, que na maioria das vezes foram compostas a partir de prostitutas que posavam como modelos. Ela apropria-se das imagens e generaliza suas características para que as representações não excluam nenhum grupo. Priscila conta que a necessidade de expor a insatisfação das trabalhadoras da rua era de longa data e que o festival Deslocamentos 4D, que aconteceu no dia 29 de abril fechando a rua Hoffmann, foi a gota d`água. As artes e as frases foram elaboradas por ela durante uma única noite, para que fossem coladas no outro dia e estivessem expostas no Dia do Trabalhador. Monique Prada, vice-presidente da Central Única de Trabalhadoras e Trabalhadores Sexuais (CUTS), também teve papel de liderança na manifestação. Fortemente envolvida com militâncias, Monique diz que havia a vontade de promover um debate com a Associação, mas não sabiam como fazer isso. Para ela, foi importante “chutar o balde” para que o primeiro passo fosse dado e surgissem propostas de atitudes que beneficiassem ambos os lados.

Manifestação “Prostituta é Trabalhadora” de Priscila Fróes / Foto: Maiara Dallagnol

O elo entre dia e noite

O Vila Flores mostrou-se aberto à reflexão e à discussão sobre mudanças e demonstra enorme vontade de que as trabalhadoras sexuais sintam-se confortáveis ao entrar no local. No ambiente agradável do pátio, as meninas podem aproveitar o espaço do Café do Vila e o bebedouro gratuito, além de nos banheiros estarem disponíveis preservativos e géis lubrificantes.

Para gerar essa aproximação, foram promovidas, até agora, duas ações. No dia 02 de junho, Dia Internacional da Prostituta, houve uma intervenção artística com novas obras de Priscila no pátio do Vila Flores e na rua São Carlos. Foram instalados projetores que reproduziram as ilustrações e as fortes mensagens que carregam. Para atrair as meninas, o evento ofereceu uma degustação de cachaças. Ainda assim, não houve grande participação delas, de modo que apenas algumas entraram, timidamente, quase no final do evento. As organizadoras acreditam que, por ser um evento aberto, muitas ficaram constrangidas em se apresentar, já que também atuam em empregos convencionais e não gostariam de ser reconhecidas.

Intervenção artística de Priscila Fróes no Dia Internacional da Prostituta / Foto: Maiara Dallagnol

Para amenizar o desconforto, no dia 07 de junho foi organizado um bate-papo fechado apenas para as trabalhadoras sexuais. A proposta era apresentar brevemente o Vila Flores e explicar sobre suas atividades. No entanto, as meninas estavam iniciando seus turnos de trabalho e, como era o quinto dia útil do mês, o trabalho aumenta. Por isso, a aderência foi apenas das organizadoras do debate. Contudo, a reunião foi aproveitada para discutir as propostas de aproximação e para elaborar as ações práticas. Entre elas, a criação de um fanzine quinzenal contendo detalhes sobre a Associação e seu calendário de eventos. A primeira edição, programada para a próxima semana, contará com informações sobre a intervenção artística que foi feita no Dia Internacional da Prostituta e o convite para que participem do Arraial do Vila Flores, festa tradicional que acontecerá no dia 23 de junho. Também será publicado um mapa do Vila, para que haja maior reconhecimento do espaço.

A divulgação das conversas e dos materiais gráficos é, e continuará sendo, feita de mão em mão. O contato direto favorece o retorno individual, tornando possível explicar pessoalmente sobre os pontos que geram insegurança. O desejo de integrar quem já fazia uso dos bairros do 4º Distrito com os novos empreendedores é gigantesco. Há espaço para todos os trabalhadores na região, sejam eles diurnos ou noturnos e, principalmente, a cultura e seus movimentos têm o propósito de unir e dar voz aos marginalizados. O trabalho é de formiguinha, mas a força também é.

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