Uma Casa de Esperança

Há 140 anos, o Instituto Pão dos Pobres acolhe crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade social. Nas casas de acolhimento, elas passam a reescrever suas histórias e a de todos que vivem ao seu redor

Daniel Giussani
Acabou em Reportagem
6 min readJul 4, 2018

--

Fachada da Fundação Pão dos Pobres / Créditos: Institucional Divulgação

O tempo estava cinzento e chuvoso quando cheguei na frente do Instituto Pão dos Pobres, na esquina da Rua da República com a Avenida Praia de Belas, em Porto Alegre. No século XIX, antes do lugar ser a fundação que é hoje, servia de chácara para a Baronesa de Gravataí. Durante essa época, o local ainda era um esconderijo de escravos que brigavam com seus donos, uma vez que no espaço havia variados tipos de frutas selvagens para alimentar os fugitivos.

Hoje, 140 anos depois, a grandiosidade do que uma época veio a ser o sítio de barões e baronesas ainda permanece nas estruturas do prédio. Grandes salas, corredores majestosos, pinturas na parede. Do mesmo modo, se naquela época o espaço acolhia escravos fugitivos, a áurea de solidariedade só aumentou. O Pão dos Pobres acolhe 1,3 mil crianças e adolescentes em estado de vulnerabilidade social, sendo que desses, 120 moram lá. São crianças que, por determinação judicial, foram afastadas de suas famílias por violação de direitos básicos, como saúde, educação e moradia.

Sou recebido no Instituto por Ellen Capponi, responsável pela organização comunicacional da fundação, que logo comenta da dificuldade que tivemos para marcar essa visita. “Acontece que o João está sempre fora, ou ele precisa ir no Ministério Público, ou ele tem que estar acompanhando alguma criança no hospital, e assim passa o dia.” O João é João Rocha, gerente socioeducativo do Pão dos Pobres. Ele é o responsável legal por todas 120 crianças que vivem integralmente na instituição, nas chamadas casas de acolhimento. O instituto tem quatro dessas casas. “É uma responsabilidade tremenda”, João fala, “porque as crianças não estão aqui porque elas querem, ou porque elas gostam; em algum momento da vida delas, algo tão ruim aconteceu a ponto da justiça afastá-las da família e encaminhar para nós”.

João acredita que o que a Fundação faz é uma luta contra guerras. De fato, no seu surgimento, em 1895, a Pão dos Pobres tinha como intuito proteger viúvas e órfãos da Guerra Federalista. Hoje a guerra não é declarada, mas não significa que ela não exista. No protagonismo dos conflitos atuais, estão as facções criminosas. “Muitas crianças que estão aqui, na verdade, estão em medida preventiva. Elas não fizeram nada, não sofreram nada, mas são filhas ou sobrinhas de pessoas ligadas ao tráfico e sofrem ameaças por causa disso”, comenta João.

As casas de acolhimento da Fundação ficam no antigo casarão principal da Baronesa de Gravataí. São duas casas por andar e cada uma delas tem cerca de 20 crianças e adolescentes. João me convida para conhecer uma dessas casas, a número três. Quem me acompanha é Marilize da Silva, uma assistente social de 43 anos, que há dois trabalha na Pão dos Pobres. “O que a gente tem aqui é igual a uma família”, fala Marilize. Assim que entro na casa, sou recebido por várias crianças que estão sentadas perto da cozinha. Marilize pede para uma dessas crianças me acompanhar e Pedro* prontamente se oferece.

OS RELATOS DOS ACOLHIDOS

Pedro tem 14 anos e já está em casas de acolhimento há pelo menos seis. A Pão dos Pobres é a terceira casa que Pedro passa. Sua rotina não é tão diferente de qualquer outra criança. De manhã, ele estuda no Colégio Estadual Protásio Alves, na Avenida Ipiranga. À tarde, ele participa de alguns projetos ofertados pela Fundação. A única diferença é que Pedro não volta pra casa no fim do dia. Ele vive no Pão dos Pobres. Assim como em qualquer família, Pedro admite que existem momentos bons e ruins dentro da casa de acolhimento. “Tem desentendimento. Às vezes as pessoas acordam nervosas e estressadas e acham que o melhor é sair xingando. Elas esquecem que o melhor mesmo é parar e conversar.”

A conversa é muito importante na vida de Pedro porque ele sempre viu nela uma maneira de se sentir acolhido. Problemas burocráticos do Ministério Público fizeram ele ser transferido de várias instituições com casas de acolhimento. A decisão de afastar Pedro da família aconteceu depois de uma intervenção social do Ministério Público na vila em que ele morava. Pedro era exposto à condições adversas de trabalho infantil para ajudar no sustento da família. Agora, ele começa a demonstrar estabilidade na Pão dos Pobres. “Eu gosto muito daqui, mas não acho que seja como uma família. A tia que cuida da gente de tarde vai embora no horário dela. A da noite, a mesma coisa. Daqui um tempo, eu que vou embora, quando tiver 18 anos. A gente se gosta, mas falta alguma coisa”, conclui ele.

Durante o tour, Pedro me apresenta várias dependências. Cada casa possui dois banheiros, um para as meninas e outro para os meninos. Os banheiros ficam no lado da sala de convivência: um amplo espaço com sofás, um monitor com TV por assinatura e duas grandes mesas com várias cadeiras. Ali é onde eles passam a maior parte do tempo. Um corredor nos leva para os quartos. São dois quartos masculinos, dois femininos e um para bebês. No final dele, uma sala de estudos, com dois computadores. “Eles separam a gente pela idade”, explica Pedro. “Aqui no meu quarto dorme eu e mais três meninos da minha idade. Lá no outro dorme o Tiago*, o Rodrigo* e outros dois, mas eles já tem quase 18 anos.”

Tiago e Rodrigo já estão perto de sair do Instituto. Tiago conseguiu, graças ao Pão dos Pobres, uma oportunidade de jogar na categoria de base do Internacional. Já Rodrigo fez um curso profissionalizante vinculado à Fundação e agora está buscando um estágio. Ao João Rocha, pergunto como funciona o acompanhamento depois que as pessoas saem da instituição. “Hoje, conseguimos manter contato com 60% das pessoas que acolhemos. O resto a gente perde, porque eles trocam o e-mail, trocam o telefone e não avisam mais a gente”, ele responde.

No último quarto, o feminino, encontro Erick*. Ele tem 16 anos e está na Fundação há seis meses. “Ele é a estrela da casa”, me confidencia Pedro. Erick concorda. Diferente dos outros acolhidos, a decisão de sair de casa e se acolher na Pão dos Pobres partiu dele próprio. “Desde muito novo, eu era bem afeminado. Pintava minha unha, colocava roupa no cabelo pra fingir que tinha um cabelão”, conta. “Aos 14, assumi que era gay. Minha família não lidou bem. Morava eu, minha mãe e minha vó. Elas eram muito religiosas e não conseguiram me aceitar. Um dia brigamos muito feio, verbal e fisicamente. Eu chamei o Conselho Tutelar e agora estou aqui.”

Erick aproveita os seus dias na Casa treinando para seu sonho, ser cabeleireiro. Ele que faz o cabelo e as unhas das meninas da Casa 3. Ele diz que no Pão dos Pobres, sofre muito menos preconceito do que em casa. “Às vezes escuto uma piadinha aqui, outra lá, mas é bem menos”. Com consentimento das meninas, a Fundação deixou Erick dormir no quarto delas. “Aqui eles me entendem bem mais”, ele conclui.

A última criança que conheço é Sofia*, de quatro anos. Ela nasceu dentro da casa de acolhimento, porque sua mãe também é acolhida de outra fundação. Nesses casos, me explica Marilize, a criança não pode ir para um abrigo e ser adotada porque a mãe optou por manter o vínculo materno. “Eu não sei se isso é bom” reflete Marilize. “Porque essa mãe não tem suporte para cuidar da criança e depois ela cresce com um sentimento de vazio interno”.

Saio do Instituto perto das 17h. As crianças já estão confabulando sobre o cardápio da janta. Durante um dia, elas têm cinco refeições. O tempo instável de Porto Alegre de início de maio me surpreende. Já parou de chover e o sol reflete nas paredes do antigo casarão da Baronesa de Gravataí. Enquanto vou saindo dos portões da Pão dos Pobres e algumas crianças vão jogando bola atrás de mim, penso que o clima daquele dia era quase uma metáfora a vida daquelas crianças e de sua jornada dentro do Instituto. De um tempo cinza e chuvoso a um final de tarde com sol. Do medo e insegurança ao acolhimento e à novas oportunidades. E mesmo que ainda reste algumas nuvens cinzas no céu, representando as dificuldades que essas crianças ainda passam mesmo nas casas de acolhimento, como a saudade de casa ou a solidão quando os professores vão embora, o que predomina no céu ainda é o sol.

Os nomes foram trocados para preservar a identidade dos acolhidos.

--

--