Como o cinema representa as pessoas que vivem com doenças raras?
Estudo recente, que analisou 20 filmes da cultura de massa que, de algum modo, retratavam pessoas que vivem com doenças raras. constatou que os aspectos clínicos destas enfermidades são pouco abordados nestas películas. As tramas concentram-se mais nos problemas da vida diária dos pacientes. E, quando aspectos científicos são apresentados, eles ali estão não para fins de educação médica , mas sim para atender as necessidades de um roteiro.
Isso na realidade não surpreendeu o autor do estudo, Jan Domaradzki, professor da Universidade de Poznam, na Polônia. Como é de conhecimento de qualquer pesquisador em comunicação, a finalidade da cultura de massa é entreter. E quando, porventura, alguma dimensão de educação entra no roteiro, o entretenimento também ali está, e de forma predominante. Edutretenimento (do inglês, edutainement) é o nome que se dá a esta fórmula de construção de narrativas na cultura de massa com alguma dimensão educacional.
Para o bem ou para o mal, a cultura de massa constitui um recurso simbólico único e um “guia” que ajuda o público a compreender as doenças raras. “Mesmo que o impacto da cultura popular na sociedade não seja decisivo, ele fornece ao público imagens, exemplos e argumentos para discussão sobre as implicações clínicas, psicossociais, éticas e econômicas das doenças raras”, resume Domaradzki.
O estudo empregou quatro categorias analíticas para compreender como o cinema representa as enfermidades pouco frequentes. A opção por tais categorias, segundo o autor do estudo, se deu “porque descrevem e identificam os pontos-chave na literatura científica” e representam “a compreensão pública das doenças raras nos filmes”.
- Doença rara — esta categoria refere-se à forma como a doença genética rara é retratada no filme e inclui: o tipo de doença rara, descrição de seus sintomas, etiologia, terapia, sofrimento, tipo de cuidado , morte e morrer.
- Paciente com doença rara e família: esta categoria engloba as características demográficas dos pacientes, incluindo sexo, idade e etnia, prognóstico, local e tipo de morte, auto-imagem e reações emocionais do paciente, problemas e necessidades do paciente, reação da família.
- médico e/ou cientista: esta categoria refere-se às características demográficas do médico, incluindo sexo, idade, etnia, especialização, cargo, tipo de pesquisa, local de trabalho, interesse na doença do paciente, incluindo comunicação médico-paciente;
- questões psicossociais relacionadas a doenças raras que incluíam estigmatização, isolamento/exclusão social, discriminação e oportunidades de vida reduzidas.
Categorias analíticas empregadas pelos pesquisadores
Doença rara
As enfermidades pouco frequentes mais retratadas na amostra de 20 filmes analisados foram:
- Fibrose cística (20%)
- Imunodeficiência combinada grave (10%)
- Osteogênese imperfeita (10%)
- Xeroderma pigmentoso (10%)
Segundo o autor do estudo, “embora a maioria dos filmes tenha apresentado a doença, seja mencionando seu nome (75%), seja descrevendo a etiologia da doença (50%), ou destacando seus sintomas mais comuns (75%), muitos outros dão apenas uma descrição muito breve da doença ou não fornecem qualquer informação”.
Eles também destacam o fato de a explicação da doença rara ser muitas vezes “reduzida a algumas frases expressas em jargão pseudocientífico” e baseada em “simplificações”. Desta forma, segundo eles, a compreensão da natureza clínicas destas enfermidades nestes produtos da indústria cultural é bastante prejudicada.
Embora muitos dos filmes analisados retratassem algum tipo de tratamento, incluindo medicamentos (30%), cirurgias (15%) ou alguma terapia experimental (20%), a maioria não os menciona (20%) ou enfatiza explicitamente que há nenhum tratamento disponível para doenças raras (20%). Setenta por cento dos pacientes cinematográficos não receberam nenhum tipo de medicamento, 45% sofreram dor e 35% receberam cuidados hospitalares ou paliativos. Em 50% dos filmes, a doença leva à morte do paciente. Curiosamente, apenas dois filmes fizeram referência a uma associação de pacientes (35%).
Pacientes e seus familiares
Os pacientes com doenças raras apresentados nos filmes eram predominantemente do sexo masculino (60%), brancos (80%) ou crianças (56%), que viviam em ambientes sociais bastante estáveis e eram cuidados por seus familiares em casa (60%) . A taxa de mortalidade para todos os vinte e cinco pacientes retratados nos filmes foi de 44%. Dos que morreram, 64% faleceram em casa. Além disso, enquanto 91% das mortes foram causadas pela própria doença, um personagem optou pelo suicídio assistido por médico.
Embora a maioria desses pacientes cinematográficos aceitasse sua doença e a visão da morte inevitável (84%), alguns também experimentaram emoções negativas como depressão (28%), negação (12%) ou raiva (4%). Os obstáculos médicos mais comumente descritos foram a falta de tratamento disponível (84%), o alto custo dos medicamentos e cuidados (40%) e a falta de conhecimento científico (24%). Setenta e dois por cento dos familiares dos pacientes mostraram amor e apoio aos que sofriam de doenças raras, embora alguns negassem a doença (16%), se culpassem por transmiti-la aos filhos (12%) ou fossem indiferentes (24%).
Imagens de médicos e cientistas
O típico médico retratado nos filmes também era branco (75%), de meia-idade (46%) e do sexo masculino (83%) . Enquanto 75% dos cientistas cinematográficos eram líderes ou médicos-chefes que trabalhavam em um hospital (92%), 25% eram assistentes.
De modo significativo, a maioria dos assistentes acima mencionados era do sexo feminino. Além disso, a maioria dos médicos envolvidos no processo de cuidar foram tanto enquadrados como médicos, cuidadores, e conselheiros benevolentes, altruístas, empáticos e comprometidos, que tanto lutavam para ajudar seus pacientes vulneráveis e auxiliaram suas famílias em suas angústias (75%) como combatiam a burocracia que impedia o acesso dos pacientes a novas opções de tratamento.
Questões psicossociais relacionadas às doenças raras
Ainda que haja esta série de problemas descritos na representação da verdadeira situação da pessoa que vive com uma doença rara, estes filmes parecem trazer alguma contribuição mais relevante, segundo o autor do estudo, no que se refere a estigma, discriminação e questões de saúde mental.
De acordo com Domaradzki, a grande maioria dos filmes destacou questões psicossociais relacionadas a doenças raras .
Assim, todos os pacientes lutaram com consequências sociais negativas de suas doenças, como redução das oportunidades de vida (60%), estigmatização (48%), isolamento/exclusão social (48%) ou discriminação (32%).
Enquanto as preocupações com o impacto negativo da doença na qualidade de vida e nas oportunidades de vida do paciente eram o tropo mais comum, muitos filmes se concentravam em como os pacientes com doenças raras e suas famílias são estigmatizados devido à natureza genética da doença.
Assim, alguns filmes enfatizaram que os pacientes com doenças raras sofrem estigma estrutural dentro das instituições sociais, ou seja, ambientes de saúde, locais de trabalho ou instituições educacionais.
Enquanto alguns filmes mostraram que os profissionais de saúde não têm conhecimento e as habilidades necessárias para gerenciar doenças raras (caso de O Homem Elefante e O óleo de Lorenzo), outros enfatizaram como empregadores, colegas de trabalho ou escolas se recusavam a atender as necessidades dos pacientes (este foi o caso de Marcas do Destino, Filhos da Escuridão e Extraordinário).
Outros filmes focaram no estigma interpessoal que ocorre nas interações dos pacientes com outros indivíduos, incluindo colegas ou vizinhos. Assim, ao mostrar a falta de compreensão dos outros, os filmes sugeriram que os pacientes com doenças raras sofrem não apenas com a falta de diagnóstico ou tratamento, mas também com a falta de apoio social (caso de Pequeno milagre, Marcas do destino e Sempre amigos).
Por fim, informam os pesquisadores, alguns filmes destacaram como os pacientes com doenças raras sofrem de um estigma percebido e como eles se acostumam de alguma forma a serem submetidos à discriminação dos outros. Assim, O menino na bolha de plástico, Marcas do destino, Sempre amigos, Filhos da escuridão, Extraordinário ou Ondine mostram como os pacientes com doenças raras , especialmente aqueles com sintomas visíveis, sentem vergonha de sua aparência ou comportamento por causa de sua doença rara.
Em suma, a maioria dos filmes estudados mostrou como a discriminação genética reduz as oportunidades de vida, contribui para a desigualdade social e afeta negativamente aqueles que carregam o traço estigmatizante.
Este é um aspecto bastante interessante da questão, na medida em que a Resolução da ONU sobre doenças raras, recentemente adotada por 193 países, enfatiza aspectos de discriminação e desigualdades em seu teor, alinhando-se desta forma com alguns dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) da Agenda 2030, objeto de meu projeto Academia de Pacientes 2030.
Caracterização distorcida não é exclusividade das doenças raras
Domaradzki, em seu artigo, observa que, em muitos filmes, as doenças raras são usadas apenas como “um dispositivo de enredo hollywoodiano de amor adolescente”. Segundo ele, ao se concentrar mais nos desejos dos pacientes por prazeres mundanos, tais filmes romantizam o caráter terminal de doenças raras. É o caso de Crystal Heart, Regras do Amor, Sol da Meia-noite ou A Cinco Passos de Você.
O autor destaca que a representação de doenças prevalentes também não é tão fidedigna na sétima arte.
É o caso do modo como são retratadas as pessoas com esquizofrenia, frequentemente apresentadas como “imprevisíveis, violentas, perigosas ou cometendo homicídio” e com um status socio-econômico irreal, quando comparado ao que se observa na realidade.
Também não escapam das distorções os transtornos do espectro do autismo (TEA). Neste caso “os filmes se concentram nas características extremas do autismo e reforçam os estereótipos negativos de pessoas com TEA como “aberrações”. ‘ ou ‘gênios’ que falam de maneira monótona ou rítmica e têm todos os tiques esperados”. Embora se constatem progressos na compreensão da epilepsia em muitos filmes, ela continua a ser associada ao sobrenatural nestas produções, segundo Domaradzki.
Apesar dos problemas, Domaradzki observa que, para pessoas que não têm contato com a ciência, os filmes costumam ser a única fonte de informação sobre doenças raras. “Embora seja evidente a necessidade de iniciativas educacionais mais robustas tanto para estudantes de medicina quanto para profissionais de saúde, a cultura popular, incluindo o cinema, também pode servir como ferramenta educacional nesse campo”, conclui.
Fonte: Domaradzki, J. Treating rare diseases with the cinema: Can popular movies enhance public understanding of rare diseases? Orphanet Journal of Rare Diseases, v. 17, n. 117, 2022.