Na linha de frente da resistência, povos indígenas se articulam em Brasília

Acampamento Terra Livre (ATL) reuniu por três dias mais de 4 mil indígenas contra ataques do Governo Federal.

Mídia NINJA
Acampamento Terra Livre 2019

--

Foto: Mídia NINJA

A maior mobilização de povos indígenas do Brasil, o Acampamento Terra Livre (ATL), foi realizado na última semana de 24 a 26 de abril, em Brasília/DF, e se deu em meio a uma grande ofensiva de retirada de direitos, ameaças e violência contra lideranças, sucateamento dos órgãos responsáveis pelas políticas públicas indigenistas e a destruição do meio ambiente.

Mais de 4 mil indígenas de todas as regiões do país e de mais de 170 povos se mobilizaram para articular estratégias de luta e visibilizar a realidade brasileira, denunciando os constantes e crescentes ataques que vem sofrendo. Eles se instalaram na região próxima ao Teatro Nacional depois de uma ocupação do primeiro quadrante da Esplanada dos Ministérios.

Dentre as atividades realizadas, somam-se audiências públicas e homenagens no Congresso Nacional, debates, plenárias, reuniões com autoridades do governo, marchas e rituais. Além disso, ocorreram ações em outras regiões do país por grupos que não puderam estar presentes em Brasília, mas se reuniram em seus territórios, como os povos do Acre, Sul do Amazonas e Noroeste de Rondônia, e também eventos em 12 países.

Com as celebrações internacionais e a participação de lideranças brasileiras no Fórum Permanente sobre Questões Indígena das Nações Unidas, o 15º Acampamento Terra Livre se tornou a maior mobilização indígena do mundo.

Movimento em movimento

Durante três dias, a articulação interna do movimento foi tema importante dentre as inúmeras agendas. Com uma construção democrática e coletiva, as organizações que compõem a APIB (Articulação dos Povos Indígenas do Brasil) mostraram-se eficientes no alinhamento político entre os parentes e na representatividade das lideranças, que mantém um processo de atualização e consulta com suas bases.

Fotos: Mídia NINJA
Foto: Matheus Alves / Mídia NINJA
Fotos: Mídia NINJA

As mulheres se destacaram e puxaram a frente da próxima grande mobilização nacional, convocada para 9 a 12 de agosto, com um calendário de atividades que terá o encontro e Marcha das Mulheres Indígenas, culminando na participação da Marcha das Margaridas, em Brasília. Decidido em conjunto e votado em plenária, o tema da marcha será: “Território, nosso corpo, nosso espírito”.

A juventude e os comunicadores dos povos originários também marcaram presença e seguiram em plenária até altas horas, debatendo políticas públicas, acesso às universidades e participação social. Combatendo o preconceito, reforçaram o compromisso com a tradição e a resistência secular dos seus ancestrais.

Os comunicadores indígenas se articularam e pela primeira vez realizaram uma atividade durante a programação oficial do ATL, afirmando a necessidade de dar voz aos seus parentes através da ocupação dos meios de comunicação. Para eles, o conteúdo e a produção multimídia dos próprios indígenas deve ser prioridade para o próximo período, quando irão realizar oficinas, atividades de formação e se conectar com outras iniciativas e veículos para dar visibilidade às lutas locais e nacionais.

Fotos: Mídia NINJA

“O encontro foi o momento de mostrar o fortalecimento dos comunicadores indígenas, mostrar que nós podemos ser protagonistas da nossa própria história. Estamos ocupando os espaços e demarcando nosso território nas redes. Fazemos valer a nossa voz e as nossas lutas. Hoje temos a Mídia Índia, junto com outros comunicadores indígenas, para fortalecer ainda mais esse espaço, denunciando e mostrando que somos resistência e continuarmos na linha de frente.” contou Erisvan Guajajara, um dos coordenadores da Mídia Índia que também anunciou um novo encontro para os comunicadores indígenas a ser realizado ainda este ano.

Articulação institucional

Com apoio de parlamentares de diversos partidos do campo progressista, o movimento indígena mostrou que tem força e capacidade de articulação. Mais de 20 deputados e senadores participaram das atividades do acampamento e os ex-candidatos à presidência Guilherme Boulos, Marina Silva e Fernando Haddad também compareceram ao ATL.

Foto: Mídia NINJA
Fotos: Kamikia Kisedje, Juliana Pesqueira e Mídia NINJA
Fotos: Matheus Alves / Mídia NINJA
Foto: Mídia NINJA

Lideranças indígenas reuniram-se com os presidentes da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), e do Senado, Davi Alcolumbre (DEM-AP), e conseguiram que ambos declarassem que irão trabalhar para que a Medida Provisória 870, que retira a Fundação Nacional do Índio (Funai) da alçada do Ministério da Justiça e sua responsabilidade na demarcação de terras indígenas, seja modificada devolvendo ao órgão suas antigas atribuições, uma das principais reivindicações deste ano.

“A MP 870 desmantelou todo o órgão indigenista federal, a Funai. Ponderamos que essa medida é uma estratégia para retirar o direito dos indígenas às suas terras. Ela é absurda e inconstitucional. É inadmissível que prospere”, afirmou Joênia Wapichana, primeira deputada indígena da história do Brasil, durante a audiência pública sobre a MP 870.

Por mais de 7 horas de debate, diferentes lideranças mostraram seus pontos de vista e contrapuseram com propriedade alguns parlamentares presentes a partir de experiências pessoais, argumentos científicos e jurídicos. Os representantes dos povos originários criticaram o esvaziamento da Funai e a visão “integracionista” do governo, que defende abrir seus territórios ao grandes empreendimentos econômicos, legalizando seu arrendamento, venda e exploração.

Na sessão especial em homenagem aos povos indígenas no Senado, Marcos Xucuru lembrou do papel dos parlamentares comprometidos em assegurar direitos constitucionais. “Muitas lideranças estão ameaçadas de morte, sem poder sair de seus territórios simplesmente por defenderem nossos direitos. Nosso país é pluriétnico, essa casa precisa ser capaz de defender os direitos dessa população”, lembrou a liderança da Articulação dos Povos e Organizações Indígenas do Nordeste, Minas Gerais e Espírito Santo (Apoinme).

Representantes do Ministério da Justiça e do Ministério da Saúde também receberam as lideranças, que protestaram contra a municipalização da saúde indígena e para que a Funai e todas as suas atribuições sejam vinculadas ao Ministério da Justiça, com a dotação orçamentária e corpo de servidores necessários para o cumprimento de sua missão institucional de demarcação e proteção das terras indígenas e dos direitos dos seus povos.

Participação

As notícias sobre a atuação da Força Nacional na Esplanada, as transmissões ao vivo do presidente Jair Bolsonaro (PSL) sobre o tema e a crescente conscientização de parte da sociedade sobre o papel dos povos indígenas para o planeta, fizeram com que esta edição fosse marcada por grande apoio social. Além da arrecadação recorde de quase 140 mil reais no financiamento coletivo, receberam ainda doações de mantimentos, colchonetes, cobertores, roupas, água e outros itens de higiene, distribuídos entre os parentes.

Foto: Mídia NINJA

Cerca de 100 voluntários também colaboraram nas funções de logística, relatoria, acompanhamento, segurança e comunicação, e atuaram na base das lideranças indígenas de forma harmônica. Apesar da participação, toda a coordenação foi feita com o protagonismo indígena.

Nádia Nadila, mediadora do banco de tempo do DF e responsável por mobilizar parte dos voluntários comentou como se deu o apoio “Nós não indígenas temos que saber o lugar que ocupamos como apoiadores, não somos protagonistas da luta, não estamos presentes para tutelar o movimento indígena. Estávamos ali para apoiar e fortalecer a luta, então é sempre importante nos colocarmos nessa posição, servir. Sou imensamente grata por conhecer e partilhar experiências com pessoas maravilhosas.”

Manifestação pacífica

Com o objetivo de lutar pelos seus direitos, os povos foram armados com a força e a proteção dos seus ancestrais. O caráter pacífico e ordeiro foi importante diante do avanço da violência, do clima de insegurança e das manifestações de ódio recorrente nas ruas. Após uma negociação com a Polícia Federal do DF, o acampamento mudou de lugar e durante os três dias de programação todas as atividades aconteceram sem nenhum incidente policial.

Fotos: Mídia NINJA

Marcha, rituais, cantos, danças e jogos marcaram a grande marcha que tomou a Esplanada dos Ministérios na sexta-feira, 26, um emocionante retrato da cultura dos encantados e da cosmovisão dos povos sobre como se fazer política no país. “Esse é um momento pacífico, de reivindicação, de assegurarmos os nossos direitos que estão garantidos na Constituição Federal. Estamos de pé e não vamos recuar frente às políticas injustas e fascistas que querem impor para nossos povos.”, afirma Sônia Guajajara, coordenadora da APIB, durante coletiva de imprensa de abertura.

Repercussão internacional

Paralelo ao ATL, aconteceu em Nova York o Fórum Permanente sobre Questões Indígena das Nações Unidas (ONU), onde Erileide Domingues Guarani Kaiowá denunciou o atual governo e fez um apelo: “eu peço em nome do povo Guarani Kaiowá que olhem para nós, nos ajude. Do governo brasileiro já não temos mais atenção ou esperança de seguir as nossas vidas com a nossa tradição”. Jair Bolsonaro foi descrito pela Guarani Kaiowá como um “cego que enxerga como um animal”.

Mais de 30 veículos de imprensa nacional e internacional participaram da coletiva de imprensa. Fotos: Matheus Alves / Mídia NINJA

De olho nas ameaças aos povos e principalmente nas riquezas naturais do país, a imprensa internacional também marcou presença durante todo o acampamento entrevistando lideranças e visibilizando a sua realidade no Brasil.

--

--