Risco o fósforo pra cá

Jéssica Motta
Aconteceu comigo
Published in
4 min readJul 13, 2013

E daí que é sexta-feira.

Aquela música veio como um tapão na minha cara. Cícero consegue me definir como poucos. Primeira vez que ouvi essa música, entrou pelos ouvidos e arrastou todas as minhas mágoas tão eminentes pra fora. De uma vez. Plena sexta. A música parou toda… e disse “desculpa”.

Há um tempo atrás, comecei a montar armários nos sótãos de mim. Todos os armários que eu construí, tive que plantar uma árvore pra coletar a madeira e fazer cada prateleira. Comprei pregos na Ferragem Villa Branca. Lixa, tinta e tudo que precisou. Tirei de mim tudo isso, me rasgando pra conseguir colocar tudo em pé. Fui guardando lá, todo dia, as coisas que lembro mas quero tirar da vista.

Nas prateleiras de cima, vão as que devem ficar mais longe. As boas lembranças, as sensações que não posso mais me permitir ter. Estou de mãos atadas. E as correntes que me atam, também vão lá pra cima. Quem sabe se eu esquecer que tudo isso não foi escolha minha, chegue a pensar que eu um dia pensei que fosse melhor assim.

Pro meio das prateleiras pensei em colocar as coisas péssimas, e sensações horríveis, que são consecutivamente coisas que quero tirar da vista. Mas sou baixinha e, mesmo nas prateleiras não tão altas, não consigo colocar muita coisa. Sobram leviandades pra colocar. E jogo todas elas.

Pro meio ficou o telefone da tia fina. O meu ursinho rosa. As fotos. 25g de maconha. As minhas unhas vermelhas. O telefone do CFC Carlão. Minhas piadas pelo caminho. Minhas histórias pra dormir. Meu nariz quadrado, torto do Del Rey. O Rio de Janeiro. A Chapúria. Um fone de ouvido.

O que sobra são as dores. As mentiras. A espera pra nada. A promessa quebrada. A minha raiva. A raiva que passa e a saudade que fica… quando a música fala “desculpa”. Deu quase pra ouvir a intonação daquela velha voz de choro no telefone, pedindo desculpa; e esse tapa, Cícero, eu passava sem. Um tapa que desencadeia um choro compulsivo. No fim das contas isso precisaria ir lá pra cima, mas não cabe. A coisa mais dolorida, por incrível que pareça, é ter quase que me assistido de fora, querendo sempre perdoar, acreditando sempre, e no fim, ver que o perdão não era mais necessário. Como se desculpa alguém que não quer mais ser desculpado? Não se desculpa. Se deixa ir. Finge que a raiva é suficiente. Eu finjo muitíssimo bem esse tipo de coisa. Não por muito tempo, mas antes isso do que não fingir desde o segundo dia.

O pior eu sempre acabo, por uma razão ou outra, deixando mais à mão. Pra que eu possa alcançar mais facilmente e tenha ódio. Funciona às vezes. Dependendo do que eu alcanço na prateleira, me dá asia. Eu que não to concorrendo pra Madre Teresa, longe disso, mas não faço imbecilidades gratuitas, como que fui ficar tão presa a ser vítima delas? Tão presa. E absurdas, se eu contar não dá pra acreditar. Por isso não conto pra ninguém. Guardo em prateleiras.

O problema, e ao mesmo tempo vantagem, das prateleiras é que sozinha nem sempre eu alcanço as coisas, mas Clarice Falcão é mais alta do que eu. Cícero, pelo jeito, também, e foi direto no ponto crítico e jogou pra cima.

Na prateleira bem de cima, quase caindo, estava aquele bilhete escrito “desculpa”, Cícero já devia saber, ele estava lá enquanto eu plantava as árvores e comprava os pregos. Sabe onde coloquei cada coisa.

Eu só queria rasgar esse bilhete de merda. Atear fogo em todo esse armário. Aparentemente a vida é um jogo de GTA em que eu preciso passar de certas fases pra conseguir moedas, e assim, ir lá trocar por fósforos. Desses da cabeça vermelha, que só eu no mundo risco pra cá, e não pra lá.

Só queria outras sextas-feiras, as próximas, depois de 5 ou 10 ou 35 fases do GTA que forem necessárias pra eu comprar fósforos o suficiente pra incendiar sozinha todo os armários do mundo.

Tem vezes que procuro algum tipo de bônus com alguém, pra me ajudar na vaquinha dos fósforos, e não tenho muito sucesso. Talvez esteja procurando nos alguéns errados, nem todo mundo tem bônus sobressalentes. Tudo bem. Bônus, é só um bônus.

Espero o dia que a Gaduzica (sempre ela) tenha essa mesma força, de pegar alguma coisa dos meus armários e jogar em mim; outros armários que não seja esse. Não aguento mais esse.

Olho pra ele e tem tantas prateleiras, olho pra minhas gavetas e tem tão poucos fórforos. É tanta saudade que eu tenho vergonha de ainda ter, me estufa o peito e dá falta de ar. Só respiro falta e queria muito conseguir respirar outra coisa. Ar, por exemplo.

Vou tentar Hélio, quem sabe me humorizo, me acho engraçadíssima, e caio na risada.

Qualquer dessas sextas-feiras bestas, eu quero ouvir Cícero dizer “Entra pra ver como você deixou o lugar, e o tempo que levou pra arrumar
aquela gaveta. Entra pra ver, mas tira o sapato pra entrar, cuidado que eu mudei de lugar algumas certezas pra não te magoar” e não cobrir a cabeça, sabendo que minhas prateleiras foram abaixo. Quando essa sexta-feira chegar, não vai ser tão besta. Vai ser digna de espera-la desde segunda.

Toda sexta-feira agora vou publicar imagens de bebês e cachorros no facebook, aguardando essa sexta-feira específica.

A sexta em que eu mesma vou até São Paulo visitar Cícero, dar um tapão na cara dele, de igual equivalência aos que ele me dá, e dizer: “desculpa…”.

Depois, peço autógrafo, ninguém é de fósforo. Digo, ferro.

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