Contra o Economicismo

J.
Ácrata
Published in
5 min readAug 1, 2017

“Os políticos da Antiguidade falavam sem cessar de costumes e de virtude. Os nossos só falam de comércio e dinheiro.” — Jean-Jacques Rousseau

Todos sabem como isso acontece. Você lendo sabe como acontece. Assim que o sistema econômico dá qualquer sinal de que irá entrar em uma de suas clássicas crises, a população vai ser a primeira a sofrer com as consequências disso. Economistas e políticos mostram as caras nas telas de todo o país para informar como as medidas que serão tomadas são necessárias “para o bem da economia”. É a velha arte de prejudicar a população em nome do bem da população.

Ou quando é mostrada uma solução alternativa a um problema, e é dito que ela não é “economicamente viável”, ou poderia “prejudicar a economia”. A economia é como uma situação de refém em larga escala. Muitas vezes “prejudicar a economia” significa prejudicar os lucros daqueles que pagam para os políticos terem o cargo que têm.

O discurso do reducionismo econômico se tornou tóxico na política. Todas as alternativas aos caminhos ortodoxos são criticadas como “idealistas” e que não possuem base econômica. O cálculo econômico é o princípio e fim de toda política, e qualquer outra abordagem é descartada como inútil. É a velha doutrina (neo)liberal do Homo economicus, que calcula tudo em função de sua “utilidade” econômica.

Mas como chegamos nesse ponto?

O sistema econômico capitalista, sobretudo o capitalismo de “livre-mercado” é um sistema totalizante, isto é, um sistema que busca invadir todos os aspectos das relações sociais e reduzí-los a sua função econômica.

É comum se pensar que a economia seria alheia à política, pertencente exclusivamente ao setor privado, e que o papel da esfera pública seria unicamente de permitir o funcionamento natural do sistema econômico. Mas, ao contrário do que prega essa visão, a economia é parte fundamental da política. A economia é a gestão dos recursos presentes em uma sociedade, recursos necessários para a sobrevivência humana, e a gestão da sociedade é a função da política. A economia é política.

Mas quando se pensa no sistema econômico como alheio ao público, enquanto o sistema econômico tem vastos poderes como o sistema capitalista, dominado por corporações e pela grande propriedade, a tendência é que a economia domine a política. Um debate político se resume a debates sobre a administração da economia. O mercado, antes subserviente ao sistema político, se tornou seu mestre.

Mas o que há de errado, então — alguém há de perguntar — na política se centrar na economia, quando a economia é parte fundamental da sociedade atual?

O problema é que, como dito antes, nosso sistema político atual é subserviente às forças do mercado, forças impessoais e autoritárias as quais o povo não possui qualquer maneira de influenciar democraticamente. Suas vidas passam a ser controladas pelas instáveis e abstratas “flutuações da economia”. Nem mesmo os proprietários das grandes empresas têm controle sobre isso, pois suas ações são determinadas, em grande parte, pelas leis e tendências do mercado, que estão além de seu controle. E, quando se tem uma política dominada pela economia, tudo passa a ter seu valor determinado pela sua “utilidade” econômica. Pessoas são “mão-de-obra” e “eleitores”, o meio ambiente é “matéria-prima”. Tudo é destituído de qualquer valor alheio àquele que possa servir ao propósito principal do mercado: o lucro.

Assim, todo tipo de medida ou atitude destrutiva pode ser justificada através do discurso econômico: medidas violentas de austeridade econômica, destruição ambiental, consumismo desenfreado etc. Não é mistério algum que o crescimento ilimitado e o consumismo estão destruindo o Planeta, mas o sistema econômico necessita deles para continuar funcionando. Temos uma economia que depende de nosso mal-estar e da destruição do planeta para continuar existindo.

Mas nós não precisamos nos curvar ao discurso economicista do status quo. Podemos usar um exemplo histórico disso. Em seu clássico livro “Capitalism And Slavery”, o historiador Eric Williams cita exemplos de discursos anti-abolicionistas na Inglaterra dos séculos XVIII e XIX. Apesar da escravidão ter sido uma instituição estruturada no racismo, nem todo discurso anti-abolicionista era baseado em bases puramente racistas. Países inteiros tinham suas economias baseadas na escravidão e no tráfico de escravos. Assim, grande parte do discurso contra a abolição da escravatura se baseavam no fato de que a abolir seria ruim para a economia destes países.

A escravidão foi, apesar de tudo, largamente abolida por bases econômicas. Mas nosso primeiro impulso, hoje, seria de achar absurdo a tentativa de justificar a escravização de milhões de seres humanos se baseando na “eficiência econômica” dessa escravização. Como Proudhon escreveu, a afirmação de que “a escravidão é um assassinato” é aceita com quase nenhuma controvérsia.

Hoje, não estamos diante de uma instituição tão abertamente brutal como a escravidão, mas é de se estranhar que aceitemos um argumento de bases puramente éticas e morais, e sobretudo “anti-econômicas”, contra as injustiças do passado, mas aceitemos calados o discurso economicista que busca justificar as injustiças do presente.

A economia não é uma lei imutável da natureza que funciona independentemente dos seres humanos. A economia é um sistema construídos por nós, em sociedade. E, assim como a construímos, podemos alterá-la.

Tampouco é a Economia, enquanto área de estudo, uma ciência exata que descreve uma realidade imutável. A maioria esmagadora do discurso economicista que intoxica a política atual é baseado na doutrina neoliberal e na economia neoclássica, teoria essa que movimentos como o Kick It Over buscam combater.

Não só democracia política, precisamos também de democracia econômica. Só assim a economia pode voltar a cumprir aquela que deveria ser sua função: servir às necessidades da sociedade, e não ditar as regras de como a sociedade deve se organizar.

Já existem em grande quantidade defensores do discurso economicista e do sistema econômico atual. Então gostaria de fazer uma contra-proposta: se temos um sistema econômico que precisa que a população seja prejudicada para que ele continue funcionando, está na hora de acabar com esse sistema.

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