O Que É Fascismo? Parte 1: A Ideologia Fascista

J.
Ácrata
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18 min readJun 29, 2020
“Guerra e Corpos — A Última Esperança do Rico”, por John Heartfield

O termo “fascismo” entrou de vez no vocabulário político do Brasil. Desde então, por todos os lados voam como balas definições distintas desse termo. Porque, afinal, o que é o fascismo? Esse texto busca resumir isso e sugerir leituras para quem se interessar em aprofundar-se no assunto.

Existe uma razão pela qual o fascismo é tão estudado como fenômeno político desde que primeiro deu as caras no século XX: ele é um fenômeno complexo, que precisa ser analisado para ser entendido. Via de regra: desconfie de quem disser que pode defini-lo de forma simples demais. Esse texto não vai, de forma alguma, explicar tudo que se tem a explicar sobre o fascismo, mas vai, com sorte, explicar as bases gerais que o ajudarão a pensar sobre, analisar e identificar o fascismo ao vê-lo.

A Ideologia do Fascismo

A definição mais concisa do fascismo vem do estudioso Roger Griffin, que o define como “Ultranacionalismo Palingenético”. É um palavreado terrível, mas que contém os aspectos centrais da ideologia fascista: “palingenético” vem de “palingênese”, que significa “renascimento”. O fascismo não é uma ideologia que se assenta sobre bases racionais, ele não tem uma teoria central fundamentada na razão que crê estar correta. O centro da ideologia fascista é, ao invés disso, uma espécie de história, ou um “mito”: o do renascimento da nação, geralmente através de uma figura de autoridade, de um “líder forte”. O fascismo possui um sentimento central de humilhação e declínio da nação, a ideia de que a nação foi tomada por um inimigo, mas que, com a união nacional, por meio do movimento fascista, a nação “renascerá”, recuperará sua glória do passado, e isso a levará a uma glória futura.

Dessa forma, o fascismo tende a idealizar um passado mítico, que vê como o símbolo da glória da nação. Esse passado pode ser uma época específica, ou uma mistura de várias épocas: para o fascismo, pouco importa a realidade desse passado: importa mais o que ele simboliza, a glória passada da Nação, que foi destruída pela ação do Inimigo. Ele se apropria de símbolos que podem ser emblemáticos dessa época e de sua suposta glória nacional. No caso dos fascistas italianos, foram os símbolos do Império Romano. No nazismo alemão, tinham os símbolos do Império Alemão em seu auge. Nesse sentido, o saudosismo da Ditadura Militar brasileira parece ser extremamente popular. “Ultranacionalismo” também por isso: o fascismo põe ênfase extrema na nação e na ideia de identidade nacional. Por isso o fascismo tende a se atrair ao revisionismo histórico: qualquer fato histórico que contradiga a ideia de a Nação ser a maior que já existiu deve ser ou apagado ou minimizado, especialmente crimes e atrocidades que tenham sido cometidos pela nação. Por isso, movimentos neofascistas europeus põem tanta importância na negação do Holocausto, embora esta não seja a única forma em que se manifesta esse revisionismo histórico. Esses elementos, separados, não são exclusivos do fascismo, mas sua união é uma das características centrais da ideologia fascista.

O fascismo possui uma visão de mundo fundamentalmente hierárquica: é um ponto central do fascismo a ideia de que algumas pessoas, ou melhor, grupos de pessoas, são, naturalmente, mais “merecedoras” de poder que outras. No fascismo, isso se configura na forma de dois grupos muito bem definidos, de modo imutável: o “Nós” e o “Eles”. O “Nós” é o grupo que representa a Nação e a vontade da Nação, que é merecedor de estar no poder, e é impedido disso apenas por “Eles”. O “Eles” é definido como o grupo dos inimigos da Nação, seja um inimigo externo, prestes a invadir e tomar o controle da nação, seja um inimigo interno, trabalhando de forma conspiratória para impedir o “Nós”, o grupo “merecedor”, de chegar ao poder e retornar a Nação a sua glória passada. Pelo fato de o fascismo não se basear em uma análise racional da realidade, o “Eles” também é definido de forma contraditória: é um inimigo forte e poderoso que domina e humilha a Nação, mas que, ao mesmo tempo, é fraco, covarde, e pode ser facilmente derrotado com a união nacional. Por isso, na propaganda nazista, os judeus eram representados como uma subclasse “suja”, mas também como uma elite financeira e política internacional que dominava a nação alemã; e os comunistas eram representados como covardes, moralmente fracos e “degenerados”, mas também como um inimigo poderoso prestes a dominar a nação com ajuda da “conspiração judaica”. A ideia do inimigo interno e/ou externo cumpre uma certa função na ideologia do fascismo: a de explicar o atual estado das coisas. Porque, se você acredita que o “Nós” é naturalmente merecedor e destinado a ocupar a posição superior, como explicar que isso não é o que acontece? Essa explicação é dada pela suposta existência de uma conspiração inimiga secreta e poderosa que age por trás das cenas, para “subverter” a “ordem natural”. Por essa razão o fascismo tende ao conspiracionismo e precisa dele, para legitimar-se, seja com a conspiração do “judaísmo internacional”, do “marxismo cultural”, seja, hoje, com a do “globalismo”. Por essa razão os nazistas alemães usavam de falsificações, como o “Protocolo dos Sábios de Sião”, para sustentar a ideia de uma suposta conspiração judaica.


Nota de advertência importante: a centralidade do “Nós e Eles” do fascismo não se refere simplesmente ao ato de eleger aliados e inimigos políticos. Toda ideologia política, sem exceções, divide grupos em aliados e inimigos políticos. O fazem de formas diferentes, sim, e, por isso, é importante frisar que esse conceito se refere à forma como o fascismo, em especial, faz isso, descrita anteriormente, e a centralidade que essa divisão tem nas crenças do fascismo.

É importante notar que, embora não seja assentado em bases racionais, o fascismo, como diz o autor Kenneth Burke, adora usar o slogan da razão, como propaganda. Por não se assentar em bases racionais, o fascismo depende muito da propaganda. “Propaganda”, nesse sentido, refere-se não necessariamente a toda propaganda política, mas a um tipo específico de propaganda política. O autor Jason Stanley, estudioso do fascismo e de sua propaganda, a define como tendo o objetivo de criar uma “sobrecarga afetiva”, ou seja, fazer a audiência chegar a um ponto onde suas emoções se tornam tão fortes que se sobrepõem a suas faculdades críticas. A propaganda fascista, por esse motivo, tende a, do ponto de vista lógico, não dizer muita coisa, dizer coisas absurdas, ou mesmo dizer coisas contraditórias. Mas, para o fascismo, isso tem pouca importância, pois a mensagem é o sentimento que a propaganda busca transmitir. Esse sentimento pode ser medo, ansiedade, repulsa, diante do poder e da degeneração do inimigo e seu ataque iminente; mas também pode ser orgulho e fervor patriótico, feito para a audiência mergulhar no sentimento de grandiosidade da nação e do líder. Os filmes da propaganda nazista alemã, por exemplo, tendem a mostrar a suposta grandiosidade das marchas militares nazistas, a “grandeza” de Hitler como líder, e a relacionar imagens de grandeza e herança cultural (prédios e esculturas clássicas, igrejas medievais, por exemplo) ao fascismo.

Essa forma de propaganda não é exclusiva do fascismo (a propaganda de governos em tempos de guerra, por exemplo, tende a seguir esse modelo. O “Manifesto dos 93”, usado como propaganda a favor da Primeira Guerra Mundial, ligava ao esforço da guerra a “defesa” do “legado cultural” de figuras como Beethoven, Goethe e Kant), e toda propaganda política tende a buscar afetar tanto as ideias quanto os sentimentos da audiência, mas o uso extensivo desse tipo de propaganda é uma das práticas principais do fascismo, especialmente após chegar ao poder. Historicamente, os fascistas sempre souberam como manipular os meios de comunicação para fazê-los servirem a seus interesses. Os nazistas alemães criaram programas para a difusão em massa de suas propagandas para o rádio e investiram grandes orçamentos na produção de filmes de propaganda como “O Triunfo da Vontade”. A exploração dos meios de comunicação é algo tão central à difusão das ideias fascistas que Joseph Goebbels, o ministro da propaganda nazista, disse: “Essa sempre será uma das maiores piadas da democracia, que ela tenha dado a seus inimigos mortais os meios pelos quais foi destruída.”

O fascismo também tende a ser extremamente anti-intelectualista. Jason Stanley, em Como Funciona o Fascismo, escreve: “A política fascista procura minar o discurso público, atacando e desvalorizando a educação, a especialização e a linguagem. (…) Quando a educação e as divisões linguísticas são solapadas, restam somente o poder e a identidade tribal.” O papel da educação, no fascismo, deve ser o de representar o único ponto de vista considerado legítimo: o da Nação idealizada. A função da educação passa então a ser apresentar o passado mítico da Nação e sua grandiosidade, reforçando a ideologia do “Nós”. As universidades, por serem locais de dissenso e questionamento científico, costumam ser o principal alvo do fascismo, atacadas como “ninhos de comunistas” e potenciais traidoras da Nação. Stanley, mais uma vez: “A política fascista busca solapar a credibilidade das instituições que abrigam vozes independentes de dissensão até que elas possam ser substituídas pela mídia e universidades que rejeitem essas vozes.” As escolas também entram em sua mira. Umberto Eco, eu seu texto “Ur-Fascismo”, diz: “Os textos escolares nazistas ou fascistas baseavam-se em um léxico pobre e em uma sintaxe elementar, com o fim de limitar os instrumentos para um raciocínio complexo e crítico.” O problema de livros escolares terem “muita coisa escrita” é a possibilidade de incentivarem o raciocínio crítico e a dissenso. Para o fascismo, o dissenso é traição. Professores e intelectuais são atacados e vistos como inimigos. Conforme a influência fascista cresce, o anti-intelectualismo pode escalar até a censura e a perseguição oficializada pela lei. Na peça “Schlageter”, do escritor nazista Hans Johnst, encenada no aniversário de Hitler em 1933, esse sentimento é resumido pela fala de um personagem: “Quando ouço falar em Cultura… destravo a minha pistola.”

Aliás, o fascismo, em linha com seu “tradicionalismo”, é uma ideologia extremamente patriarcal. Essa é a manifestação do impulso autoritário e hierárquico no campo do gênero e da sexualidade. O fascismo ataca o feminismo como parte de uma conspiração que busca subverter a ordem e destruir a família, retirando a mulher de sua “natural” função reprodutiva e subserviente. Citando a historiadora Charu Gupta, Stanley escreve: “Os nazistas acreditavam que o movimento das mulheres fazia parte de uma conspiração judaica internacional para subverter a família alemã e, assim, destruir a raça alemã.” Gupta descreve que o fascismo vê valores aos quais se opõe (como o pacifismo e a democracia) como “femininos”, valores que retiram a “virilidade” da Nação. Essa desconfiança e aversão do fascismo ao que é visto como “feminino” se manifesta na misoginia, mas também na homofobia, transfobia e na oposição geral às pessoas que não se encaixam nos padrões de gênero que defende. Ela também se manifesta, como Eco aponta, no culto compensatório de uma hipermasculinidade “forte” e “viril”, em que seus líderes costumam ser vistos como uma personificação dessa masculinidade, e que, quando não é manifestada no campo sexual, é manifestada por meio do culto da guerra e das armas. Em momentos de crise econômica, quando o papel de “provedor” associado à masculinidade está ameaçado, o culto compensatório hipermasculino do fascismo tende a ser ainda mais sedutor. Sobre isso Stanley escreve: “Aqui o político fascista intencionalmente distorce a fonte da ansiedade. (Um político fascista não tem intenção de abordar as causas básicas das dificuldades econômicas). A política fascista distorce a ansiedade masculina, acentuada pela ansiedade econômica, transformando-a em temor de que sua família esteja sob ameaça existencial por parte daqueles que rejeitam sua estrutura e suas tradições”.

O “Nós” do fascismo, por ser definido por qualidades supostamente inatas e essenciais, tende a adquirir um caráter racial, e, por consequência, o Inimigo, o “Eles”, também. Assim, surge o aspecto racista do fascismo. O exemplo mais claro disso é, com certeza, a perseguição e extermínio nazista contra o povo judeu. O antissemitismo também cumpria um papel central no fascismo italiano. Mas o fascismo, por ser um movimento que busca adesão da massa, também adapta-se ao contexto em que emerge: o fascismo e o neofascismo europeu tendem a ter a supremacia branca como um aspecto central. Versões históricas asiáticas e latino-americanas do fascismo, por razão de contexto, não faziam o mesmo, embora também tivessem um componente racial. É difícil resumir a questão racial do fascismo sem ser extremamente simplista, especialmente no caso do complexo legado do antissemitismo na cultura europeia e do racismo colonialista na América Latina. Uma questão importante, porém, é como o fascismo busca malear suas crenças para ser mais aceito na política em geral. O historiador Mark Bray nota em “Antifa: O Manual Antifascista” que, desde os anos 70, vários movimentos neofascistas e supremacistas brancos europeus passaram a ser mais “tolerantes” com judeus, incluindo-os como “brancos”, pois o antissemitismo explícito os tornaria párias políticos. Mas essa “inclusão” é condicional: enquanto faz coalizões, o fascismo pode aparentemente adotar membros de fora de seu “grupo”, mas, conforme ganha influência, a tendência é que a hierarquia volte a ser restrita.


Junto a isso, o fascismo é militantemente anticomunista. Ele vê nas pretensões igualitárias do comunismo uma degeneração que ameaça as tradições da Nação. O anticomunismo também interliga-se a outras crenças do fascismo: ao longo do livro Mein Kampf, Hitler repetidamente denuncia a “doutrina judaica” do marxismo, e os nazistas frequentemente associavam o comunismo a uma conspiração judaica. Unido ao anti-intelectualismo, o anticomunismo cria a teoria do “marxismo cultural”, inicialmente chamada de “bolchevismo cultural”, em referência aos comunistas bolcheviques russos. Jason Stanley escreve: “Sempre que o fascismo ameaça, seus representantes e facilitadores denunciam as universidades e escolas como fontes de “doutrinação marxista”, o bicho-papão clássico da política fascista. (…) A perspectiva dominante é muitas vezes deturpada, sendo apresentada como a verdade, a ‘história real’, e qualquer tentativa de permitir um espaço para perspectivas alternativas é ridicularizada como ‘marxismo cultural’”. Na ideologia nazista alemã, anticomunismo, antissemitismo e anti-intelectualismo se uniam por meio do conspiracionismo, como mostra um discurso de Joseph Goebbels de 1935: “O Bolchevismo não é apenas antiburguês, mas também anticultural. Ele significa, mas últimas consequências, a destruição absoluta de todos os avanços econômicos, sociais, políticos, culturais, e civilizatórios feitos pela civilização ocidental para benefício de uma cabala desenrraizada e nômade de conspiradores internacionais, que encontraram sua representação no judaísmo.” Além do conspiracionismo, o fascismo vê o discurso de internacionalismo e de união em torno da classe, do comunismo, como a principal ameaça política a sua ideologia de nacionalismo extremo e divisão em linhas de raça, gênero, religião e cultura. É assim também que o fascismo atrai o apoio das elites tradicionais: George Orwell, em sua resenha de Mein Kampf, de Hitler, escrita em 1941, nota que Hitler recebeu apoio e financiamento dos grandes industriais, pois estes viam nele “o homem que iria esmagar o socialismo e o comunismo”.

Esses aspectos são, em um nível ou outro, todos manifestações da mentalidade hierárquica do fascismo. Uma ideologia que põe tanto peso em hierarquias sociais dificilmente aplica esse pensamento a somente um aspecto da sociedade: ele tende a se manifestar em questões de cultura, religião, gênero, raça, sexualidade etc. Alguns leitores talvez tenham notado que muitos aspectos do fascismo, como essa ideologia de autoritarismo, patriarcalismo, supremacia racial e dominação e extermínio dos “inferiores”, não são algo totalmente novo: essa é a ideologia do processo de colonização. Isso não é coincidência, o fascismo realmente tem ascendência no colonialismo, e não só ideologicamente: muitas leis racistas e segregacionistas adotadas nos Estados Unidos após a abolição da escravidão inspiraram diretamente leis racistas do nazismo alemão, mas com seu alvo sendo os judeus em vez dos negros. É por essa ligação que alguns autores anticoloniais (como Aimé Cesaire) descrevem o fascismo europeu como “colonialismo trazido para casa”. Por isso é de se esperar também que, em ex-colônias, o fascismo herde grande parte da ideologia e da política colonialistas, e que seu “passado mítico” e sua concepção de “povo”, do “Nós”, esteja ligada a uma ideologia colonial. O fascismo não inventou o tipo de ideologia e violência autoritária da qual se beneficia, assim como o nazismo alemão não inventou o antissemitismo, que já perseguia os judeus havia séculos na Europa, mas, apoderando-se dele, o radicalizou até atrocidades como o Holocausto se tornarem possíveis, coisa que o fascismo também faz com a ideologia colonial. O fascismo, enquanto ideologia e política, é algo próprio, mas bebe em fontes anteriores a ele.

É difícil exaurir o assunto da ideologia fascista em um único texto, essas são somente algumas características centrais. Esses aspectos não são exclusivos do fascismo: diversas ideologias políticas podem adotá-los individualmente. Mas é a confluência dessas características que primeiro alerta para a presença do fascismo, especialmente porque os diferentes aspectos da ideologia fascista ligam-se para formar a visão de mundo fascista: anti-intelectualismo, nacionalismo extremo, anticomunismo, antifeminismo etc interligam-se de modo a criar uma explicação total da realidade pela ótica fascista, geralmente unidas pela ideia da “conspiração” do inimigo.

Por causa da conotação extremamente negativa dada ao termo desde o século XX, o fascismo, hoje, quase nunca refere-se a si mesmo como explicitamente fascista, mas sim com eufemismos, normalmente por trás de ideologias mais facilmente aceitas: alguns partidos neofascistas alemães afirmam-se “nacional democratas”. Dessa forma, o fascismo frequentemente se beneficia de confundir o discurso e esvaziar o significado das palavras. Porém o problema do fascismo não são seu nome, seus termos, e sua estética. O que define o fascismo enquanto política não são suásticas e fascios italianos: é possível haver fascismo sem fazer referência explícita ao nazifascismo histórico. O que o define são suas bases ideológicas e políticas e suas consequências sociais. Por isso, esses são os aspectos aos quais deve-se estar atento ao identificá-lo.

O próprio horror do fascismo às vezes nos impede de analisá-lo pelo que é. Os fascistas não chegaram ao poder afirmando que iriam praticar dominação brutal e extermínio. Eles chegaram com discursos de fervor nacionalista, de retorno a um passado glorioso e de culpabilização de minorias e “inimigos internos” pelos supostos problemas da Nação. Ao retornar, o fascismo dificilmente falaria em tentar refazer a Marcha sobre Roma ou reabrir os campos de concentração, mas sim repetiria seu discurso de renascimento nacional. Também, embora grupos marginais o façam, dificilmente iria adotar símbolos vistos como exóticos e estrangeiros por sua população. O fascismo busca ser um movimento de massa e, para isso, adota símbolos associados a glória nacional. Aqui convém citar, extensamente, “A Anatomia do Fascismo”, de Robert Paxton, publicado em 2004:

“De qualquer forma, um fascismo do futuro — uma reação de emergência a alguma crise ainda não imaginada — não teria que ter uma semelhança perfeita com o fascismo clássico, em termos de seus signos e símbolos externos. Algum movimento futuro disposto a ‘abrir mão das instituições livres’ a fim de desempenhar as mesmas funções de mobilização de massas, tendo como meta a reunificação, a purificação e a regeneração de algum grupo prejudicado decerto daria a si próprio um outro nome, e usaria símbolos novos. Isso não o tornaria menos perigoso.

Por exemplo, um novo fascismo teria que, necessariamente, demonizar algum inimigo interno ou externo, mas esse inimigo não teria que ser o povo judeu. Um fascismo norte-americano autenticamente popular seria religioso, anti-negros e, a partir do 11 de Setembro, também anti-islâmico. Na Europa Ocidental, ele seria secular e, provavelmente, mais anti-islâmico que antissemita. Na Rússia e no Leste Europeu, seria religioso, antissemita, eslavófilo e antiocidental. Os novos fascismos provavelmente dariam preferência aos trajes típicos e patrióticos de seu país em vez das suásticas e fascios estrangeiros. O moralista britânico George Orwell observou, em 1933, que um fascismo autenticamente britânico viria tranquilizadoramente vestido com as sóbrias roupas inglesas.
(…)
A linguagem e os símbolos de um fascismo autenticamente americano, é claro, teriam pouco ou nada a ver com os modelos europeus originais. Como sugerido por Orwell, teriam que parecer tão familiares e reasseguradores quanto a linguagem e os símbolos do fascismo original eram familiares e reasseguradores para muitos italianos e alemães. Hitler e Mussolini, afinal de contas, não tentavam parecer exóticos a seus concidadãos. Num fascismo americano não haveria suásticas, mas sim estrelas, listras e cruzes cristãs, e não haveria saudações nazistas, mas sim a recitação do Juramento de Lealdade. Esses símbolos, em si, não contêm sequer um sopro de fascismo, é claro, mas um fascismo americano os transformaria num teste obrigatório para a detecção do inimigo interno.
(…)
Concluindo, se aceitarmos uma definição do fascismo que não se limite à cultura do fim-de-século Europeu, a possibilidade de um fascismo não-europeu não é menor que a que existia na década de 1930, e, talvez, seja ainda maior, devido ao grande aumento no número de experiências fracassadas de implantação da democracia e do governo representativo ocorridas desde 1945.
(…)
Os colecionadores de parafernália nazista e neonazistas de linha dura são capazes de provocar violência destrutiva e polarização. Enquanto eles permanecerem excluídos das alianças com o “establishment”, necessárias para que ingressem na corrente central da vida política ou dividam o poder com outros partidos, continuarão sendo mais um problema policial do que uma ameaça política. São os movimentos de extrema-direita que aprenderam a moderar sua linguagem, a abandonar o simbolismo do fascismo clássico e a parecerem “normais” que têm uma probabilidade muito maior de virem a exercer influência.

É entendendo de que forma o fascismo do passado funcionava, e não checando as cores de suas camisas, ou procurando por ecos da retórica dos nacional-sindicalistas dissidentes do início do século XX, que nos tornaremos capazes de reconhecê-lo. Os bem-conhecidos sinais de advertência — propaganda de nacionalismo extremado e os crimes de ódio — são importantes, mas não bastam. Sabendo o que sabemos hoje sobre o ciclo fascista, podemos encontrar sinais ainda mais funestos em situações de impasse político diante de uma crise, em que os conservadores ameaçados procuram por aliados brutais, dispostos a abrir mão do devido processo legal e do estado de direito, tentando angariar o apoio das massas por meio de demagogia nacionalista e racista. Os fascistas se aproximam do poder quando os conservadores começam a tomar emprestado suas técnicas, apelar a “paixões mobilizadoras” e a tentar cooptar suas hostes.

Armados de conhecimento histórico, estaremos capacitados a distinguir as imitações desprezíveis, mais isoladas, de hoje em dia, com suas cabeças raspadas e tatuagens de suásticas, dos autênticos equivalentes funcionais do fascismo, na forma de alianças maduras entre fascistas e conservadores. Se prevenidos, podemos nos tornar capazes de detectar a verdadeira ameaça quando ela surgir.”
— A Anatomia do Fascismo, capítulo 7.

Fontes e referências

A seguir, estão as referências usadas para a construção da primeira parte desse texto, e leituras adicionais para melhor entender o fascismo e o antifascismo.

Livros

Em português

Robert Paxton — A Anatomia do Fascismo

A análise mais completa e, por isso, mais longa, dessa lista. Paxton analisa desde os fundamentos ideológicos do fascismo até a forma como o fascismo chega ao poder e busca concentrá-lo em suas mãos. Os capítulos finais são dedicados à definição do fascismo e às condições para o ressurgimento do fascismo no século XXI.

Jason Stanley — Como Funciona o Fascismo

Texto curto e objetivo. Stanley busca, especialmente, analisar elementos da política fascista na política atual. O texto é muito focado na política estadunidense e na europeia, e, às vezes, a terminologia é indicativa disso (por exemplo, o termo “liberal”, que, na política dos EUA, designa algo próximo a um centrista, é traduzido como “liberal”, que, na política do Brasil, se refere ao liberalismo econômico). Ainda assim, é uma introdução bem didática a alguns dos principais aspectos do fascismo.

Umberto Eco — Ur-Fascismo

Caso parecido com o de Stanley. Eco, em alguns pontos, corre o risco de adotar uma visão quase não histórica do fascismo, ou de representá-lo de forma excessivamente “psicanalítica”, mas ainda é um texto curto e didático que introduz vários dos principais aspectos do fascismo.

Mark Bray — Antifa: O Manual Antifascista

O título é levemente enganoso. O livro não é exatamente um “manual” prático de ação antifascista, é mais sobre a história dos movimentos fascistas e antifascistas e que lições podem ser extraídas dessa história. Muito recomendando para quem busca entender o antifascismo em particular.

George Orwell — Resenha: Mein Kampf

Resenha do livro Mein Kampf, de Hitler, escrita por Orwell em 1941, que fala sobre as reações iniciais à ascensão de Hitler e os meios que o ajudaram a chegar ao poder.

Em inglês

Roger Griffin — The Nature of Fascism

Livro onde é descrita a ideia de “ultranacionalismo palingenético”. Uma das maiores vantagens de Griffin, junto com Paxton, é a de não ater-se somente ao fascismo europeu, mas também analisar versões não-europeias do fascismo.

Kenneth Burke — The Rhetoric of Hitler’s “Battle”

Análise da retórica nazista pelo crítico literário Kenneth Burke, focada especialmente em Mein Kampf, de Hitler, em que o autor analisa coisas como a divisão entre “Nós” e “Eles”, na ideologia fascista, e a ideia do “renascimento mítico” da nação.

Discurso de Goebbels sobre o “bolchevismo cultural”: https://encyclopedia.ushmm.org/content/en/film/goebbels-claims-jews-will-destroy-culture

Vídeos

Philosophy Tube — A Filosofia do Antifascismo [Legendas em Português]

https://youtu.be/bgwS_FMZ3nQ

Philosophy Tube — Steve Bannon [Legendas em Português]

https://youtu.be/wO6uD3c2qMo

Three Arrows — Como o “Marxismo Cultural” Se Tornou o Bode Expiatório da Extrema-Direita [Legendas em Português]

https://youtu.be/qlrpSpwxgWw

Fontes Problemáticas

Esses são textos populares e podem ter análises interessantes, mas são controversos, e, por isso, devem ser lidos com uma atenção crítica especial.

Wilhelm Reich — Psicologia de Massas do Fascismo

Reich busca aplicar suas teorias dissidentes da psicanálise na análise do fascismo. Um problema disso, porém, é a tendência que o autor tem a, frequentemente, reduzir o fascismo a uma criação da repressão sexual. Como Paxton nota, isso é pouco útil para a análise das condições sociais objetivas que levaram ao surgimento do fascismo, pois a repressão sexual na Alemanha de Weimar não era muito diferente da que estava presente em outros países europeus.

Hannah Arendt — Origens do Totalitarismo

O livro de Arendt tem análises interessantes, mas também um grande número de problemas. Alguns que cabem destacar são: a discussão de Arendt sobre o antissemitismo, em que ela afirma que o ataque era aos que estavam em posição de poder econômico, e, por uma suposta grande presença de judeus nessa posição, eles se tornaram o foco do ódio anti-semita. O problema dessa tese é o fato de ela não explicar por quê apenas os judeus foram atacados, e não todos os indivíduos em posição de poder econômico. Por isso, o antissemitismo já deveria ser anterior a esse ataque. O problema se torna maior com o fato de Arendt citar autores nazistas para comprovar essa suposta presença forte de judeus em posições de poder, e a autora chega a atribuir certa “responsabilidade parcial” dos judeus sobre sua perseguição (!). Ela também atribui o surgimento do totalitarismo (e, logo, do fascismo) à fragmentação das massas modernas. A sociedade alemã de Weimar, entretanto, era extremamente estruturada e não tão fragmentada quando a massa descrita por Arendt. O terceiro problema é o de que a categoria de “totalitarismo” tende a conjurar a ideia de uma ditadura super eficiente e organizada, algo que só era realidade na propaganda nazista, que representava o partido como um grupo de soldados extremamente organizados e disciplinados. Na realidade, como veremos na parte 2 desse texto, suas estruturas eram notoriamente corruptas, caóticas e cheias de conflitos internos.

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