J.
Ácrata
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44 min readDec 31, 2020

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O Que é Fascismo? Parte 2: Propaganda, Corrupção e Caos

“Um homem pequeno exige grandes presentes”, John Heartfield.

Introdução

Na primeira parte, falamos sobre as bases ideológicas do fascismo. Agora, falemos sobre alguns meios usados pelo fascismo para ganhar e exercer poder na sociedade em seus estágios iniciais. Porém primeiro é necessário superar alguns mitos sobre ele. Como dito na parte anterior, o horror do fascismo histórico nos faz pensar que todos os que apoiam e são coniventes de qualquer maneira com a ascensão do fascismo devem, necessariamente, ser monstros sedentos por sangue, e, com essa percepção, é difícil imaginar como o fascismo poderia ocorrer em qualquer lugar. Essa noção, no entanto, é um mito. Nas eleições alemãs de 1932, o partido nazista conseguiu 37% dos votos(1). Mais importante do que isso é o fato de ele ter passado de um partido minúsculo, que mal conseguia 3% dos votos, ao segundo maior partido da Alemanha em apenas dois anos(2). Esses eleitores, em sua maioria, não viam a si mesmos como extremistas movidos pelo ódio, mas haviam comprado a retórica ultranacionalista da ideologia. Eram pessoas vistas, por si mesmas e por aqueles de quem eram próximas, como “normais”, e isso torna ainda mais crucial a tarefa de identificar o fascismo quando ele aparece. Como Robert Paxton fala em “A Anatomia do Fascismo”, as imagens tradicionais do fascismo focam em grandes eventos e momentos de violência, mas os regimes fascistas:

[…] jamais teriam crescido sem a ajuda das pessoas comuns, mesmo das pessoas convencionalmente boas. […] Os excessos do fascismo no poder exigiam também uma ampla cumplicidade entre os membros do establishment: magistrados, policiais, oficiais do exército, homens de negócios. Para entender plenamente como funcionavam esses regimes, temos de descer ao nível das pessoas comuns e entender as escolhas corriqueiras feitas por elas em sua rotina diária. Fazer essas escolhas significava aceitar o que parecia ser um mal menor, ou desviar o olhar de alguns excessos que, a curto prazo, não pareciam tão nocivos, e que, isoladamente, podiam ser vistos até como aceitáveis, mas que, cumulativamente, acabaram por se somar em monstruosos resultados finais.” (A Anatomia do Fascismo, p. 34–35)

Concluir que o nazismo ou outras variantes do fascismo são formas de distúrbios mentais representa um duplo perigo: oferece um álibi para as multidões de fascistas ‘normais’ e nos deixa despreparados para reconhecer a extrema normalidade do fascismo autêntico.” (A Anatomia do Fascismo, p. 95)

Para entender o fascismo não basta olhar para suas ideias, para o que ele diz defender, também é preciso olhar suas atitudes práticas, sua forma de ação política, e o modo como ele se alastra na sociedade. O fascismo não chega ao poder de uma hora para outra, não ocorre um momento repentino em que o fascismo anuncia abertamente sua ditadura (Hitler chegou ao poder em 1933, a guerra foi iniciada em 1939, e o Holocausto começou a operar em sua totalidade apenas em 1941). Ele normalmente alimenta um processo de “fascistização” da sociedade, quando sua forma de ação política, sua intolerância, seu autoritarismo, sua agressividade em relação a minorias e outros aspectos ideológicos discutidos na primeira parte são normalizados e vistos como, se não “aceitáveis”, pelo menos “esperados”. Seu absurdo deixa de ser chocante. O fascismo se alimenta das ansiedades e frustrações de certas parcelas da população para avançar seu discurso ultranacionalista e procurar enraizar-se. É esse processo de normalização que possibilita que pessoas comuns apoiem atos absurdos e atrocidades. É necessário entender que o fascismo não é uma ideologia apoiada apenas por seguidores odiosos, é algo mais amplo do que isso, e grande parte de seu perigo está exatamente na possibilidade de apelo que ele possui às “pessoas comuns”, explorando seus preconceitos, utilizando-se de seus medos e lhes vendendo a ideologia fascista e as soluções fascistas para os supostos problemas da Nação.

Voltemos à definição do fascismo por um instante. O fascismo é, além de um sistema de crenças, uma forma de organização política. Uma definição mais elaborada, e, por isso, mais longa, que ilustra bem esse aspecto vem do próprio Paxton:

O fascismo tem que ser definido como uma forma de comportamento político marcada por uma preocupação obsessiva com a decadência e humilhação da comunidade, vista como vítima, e por cultos compensatórios da unidade, da energia e da pureza, nas quais um partido de base popular formado por militantes nacionalistas engajados, que operam em cooperação desconfortável, mas eficaz, com as elites tradicionais, repudia as liberdades democráticas e passa a perseguir objetivos de limpeza étnica e expansão externa por meio de uma violência redentora sem estar submetido a restrições éticas e legais de qualquer natureza.” (A Anatomia do Fascismo, p. 358–359)

Essa definição é especialmente útil, por ressaltar o caráter político do fascismo. O fascismo não é uma ideologia que existe no vácuo, tampouco é um movimento isolado que chega ao poder sozinho. Ele existe em um certo contexto político e precisa se relacionar com outras ideologias e movimentos. Como dito antes, o fascismo é um fenômeno político que toma conta de uma sociedade. A seguir, veremos alguns aspectos da atuação política e do discurso político que o fascismo usa para tentar conseguir apoio e poder em seus estágios iniciais. Como no caso dos aspectos ideológicos vistos na primeira parte, eles não são exclusivos do fascismo, mas é a confluência desses aspectos que primeiro dá indício à presença do fascismo em um determinado cenário.

Aspectos da Política Fascista:

1) “Antipolítica”

As estratégias eleitorais do fascismo são um tema que exigiria um texto próprio, mas uma extremamente presente é a postura antipolítica. Muitos eleitores iniciais do fascismo foram atraídos por sua postura supostamente “antissistema” (alguns movimentos fascistas, como os falangistas espanhóis, chegaram a se dizer um “antipartido”[3]), que apelava à insatisfação com o sistema político da época. Como Paxton diz, para o fascismo obter sucesso político:

Era preciso também oferecer um novo estilo político que atraísse eleitores que haviam chegado à conclusão que a política tinha se tornado suja e fútil. Posar de “antipolítico” muitas vezes funcionava com pessoas cuja grande motivação política era o desprezo pela política. Em situações em que os partidos existentes estavam restritos a demarcações de classe ou filiação doutrinária (…) os fascistas podiam exercer atração prometendo unir o povo, e não dividi-lo. (…) Em situações em que um único clã político vinha, há anos, monopolizando o poder, o partido podia se colocar como o único caminho não-socialista para a renovação e a instauração de uma nova liderança.” (A Anatomia do Fascismo, p. 105–106)

Mas, como veremos adiante, essa suposta “rebelião” do fascismo não passa do nível do discurso e da propaganda, que busca capitalizar a insatisfação política generalizada. Na prática, ele é um resultado direto do sistema político contra o qual discursa. Junto a isso, o fascismo também se apresenta, não necessariamente como uma ideologia, mas como algo acima das ideologias: os fascistas costumam acusar os partidos tradicionais de “dividirem” o povo, seja por classe, seja por posicionamento ideológico, e vender o fascismo não como um “partido” divisivo, mas como um projeto de “união e renovação nacional”[4]. Na prática, claro, ele divide a população em linhas de identificação étnica, cultural, religiosa e relacionadas a “lealdade à nação”.

2) Eleições e Alianças

É um mito comum crer que o fascismo costuma chegar ao poder por meio de um golpe de estado. Em maior parte, ele o conseguiu por vias “legais” (senão por vias aparentemente legais). Hitler, tendo falhado em suas pretensões golpistas, dependeu inicialmente do sucesso eleitoral do partido nazista e de sua nomeação como chanceler pelo presidente Hindenburg. O fascismo de Mussolini também se aproveitou do sucesso eleitoral e das coalizões para chegar ao poder:

Quando o primeiro-ministro Giolitti preparava novas eleições parlamentares para maio de 1921, lançando mão de todo e qualquer recurso que pudesse reduzir a grande votação alcançada em novembro de 1919 pelos socialistas e pelo Partido Popular Italiano (Popolari), ele incluiu os fascistas de Mussolini em sua coalizão eleitoral, lado a lado com os liberais e os nacionalistas. (…) esses resultados mostraram que Mussolini havia se tornado um elemento de importância vital na coalizão antissocialista italiana no âmbito nacional.” (A Anatomia do Fascismo, p. 114)

Giolitti nem era um ultranacionalista nem era um simpatizante ideológico do fascismo, era um negociador centrista tradicional; o que não o impediu de ser um instrumento crucial na chegada dos fascistas ao poder. Como nota o historiador Mark Bray:

Por isso, não é surpresa que a história mostre que as instituições republicanas nem sempre foram uma barreira ao fascismo. Pelo contrário, em diversas ocasiões, funcionaram como um tapete vermelho. Quando as elites econômicas e políticas do entreguerras se sentiram ameaçadas pela perspectiva da revolução, recorreram a figuras como Mussolini e Hitler para esmagar impiedosamente as dissidências e proteger a propriedade privada.” (O Manual Antifascista, p. 171)

Essa passagem também mostra outro aspecto central da política fascista: ele sempre chega ao poder por meio da colaboração com as elites tradicionais [5], e, por extensão, com liberais e conservadores tradicionais. O “desprezo pelos valores liberais” da ideologia fascista limita-se ao valores formais do liberalismo político: a tolerância, a igualdade legal, e a própria legalidade; pois vê esses valores como impedimentos, obstáculos, que tornam o governo fraco e incapaz de acabar com seus inimigos. Como Paxton diz, para o fascismo:

A esquerda socialista e internacionalista era o inimigo, e os liberais eram o cúmplice do inimigo. Com seu governo não-intervencionista, sua crença no debate aberto, seu pouco controle sobre a opinião das massas e sua relutância em recorrer ao uso da força, os liberais, aos olhos dos fascistas, eram guardiões da nação culposamente incompetentes no combate à luta de classes desencadeada pelos socialistas.” (A Anatomia do Fascismo, p. 43–44)

E motivos similares — o medo em relação à ascensão da esquerda e do socialismo — levavam os liberais a cooperarem com os fascistas. Paxton continua:

Os próprios liberais de classe média, temerosos quanto à ascensão da esquerda, ignorando o segredo do apelo às massas, e tendo que enfrentar as impalatáveis escolhas a eles apresentadas pelo século XX, com frequência estiveram tão dispostos quanto os conservadores a cooperar com os fascistas.” (A Anatomia do Fascismo, p. 44)

Mesmo no caso de liberais e conservadores que se sentiam desconfortáveis com certos aspectos do fascismo, como seu discurso inflamado e sua política de massas, os mesmos receios os levaram à cooperação:

A maioria dos conservadores, entretanto, estava convicta de que o comunismo era pior. Se dispunham a trabalhar com os fascistas caso a esquerda mostrasse ter a possibilidade de triunfar. (…)Os fascismos que conhecemos chegaram ao poder com o auxílio de ex-liberais amedrontados, tecnocratas oportunistas e ex-conservadores, e governaram conjuntamente com eles, em um alinhamento mais ou menos desconfortável.” (A Anatomia do Fascismo, p. 48–49)

Essas alianças não se limitavam ao campo eleitoral. Um dos primeiros sucessos políticos de Mussolini foi o de colocar sua violenta milícia, os squadristi, também chamados de “Camisas Negras”, pela cor de seu uniforme, a serviço dos proprietários de terras da região italiana do Vale do Pó, ao ponto em que eles “eram vistos como o braço armado dos grandes proprietários de terras”[6]. Junto aos proprietários de terra, as autoridades estatais também estiveram frequentemente felizes em colaborar com a violência extrajudicial dos fascistas. Paxton continua:

A polícia local e os comandantes do exército emprestavam a eles armas e caminhões, e alguns dos integrantes mais jovens de seus quadros juntavam-se às expedições. Alguns chefes de polícia locais, ressentidos com as pretensões dos novos prefeitos socialistas e de suas câmaras municipais, fechavam os olhos a essas incursões noturnas, chegando até a fornecer veículos.” (A Anatomia do Fascismo, p. 111)

O elemento da colaboração é crucial para o crescimento dos movimentos fascistas e para que estes se tornem movimentos políticos relevantes:

O sucesso fascista dependia tanto dos seus aliados e cúmplices quanto das táticas e qualidades do movimento em si. A ajuda prestada aos squadristi de Mussolini, no Vale do Pó, por elementos da polícia, do exército e das administrações municipais já foi mencionado. Sempre que as autoridades públicas fechavam os olhos às ações diretas dirigidas contra os comunistas e socialistas sem se preocupar muito com questões de escrúpulos, uma porta se abria para o fascismo.” (A Anatomia do Fascismo, p. 148)

Os nazistas alemães também não ignoravam a necessidade dessas alianças, e, desde suas campanhas eleitorais, essas alianças lhes foram centrais para sua chegada ao poder. Em The Nazi Voter (“O Eleitor Nazista”), o historiador Thomas Childers diz:

Durante 1931, entretanto, enquanto as exigências financeiras do partido aumentavam, Hitler começou a se aproximar de representantes da comunidade dos industriais. Impressionados com o antimarxismo militante do NSDAP [o partido nazista], mas preocupados com sua retórica vagamente ‘socialista’, os líderes industriais haviam, com algumas exceções notáveis, permanecido alheios ao partido. Em janeiro de 1932, contudo, Hitler foi convidado para discursar no influente Clube Industrial de Düsseldorf, e seu sucesso lá sinalizava uma importante conquista para o NSDAP. Apesar dos líderes industriais continuarem a preferir os mais previsíveis partidos burgueses, os Nazistas foram dali em diante reconhecidos como uma alternativa plausível, mesmo que problemática, ao DNVP e o DVP [partidos nacionalistas alemães tradicionais]. Até que dimensão a indústria contribuiu para a força financeira do partido em 1932 ainda é uma questão controversa, mas a visita de Hitler foi certamente calculada para aumentar a respeitabilidade do partido e enfatizar sua utilidade como um bastião confiável contra a esperada ascensão da esquerda.” (The Nazi Voter, p. 196)

E o sucesso eleitoral, no fim, foi um instrumento central na estratégia do partido nazista:

O sucesso eleitoral de Hitler — muito maior que o de Mussolini — permitiu-lhe uma maior autonomia nas barganhas com os políticos estabelecidos, de cujo auxílio eles precisavam para chegar ao poder.” (A Anatomia do Fascismo, p. 162)

Essa colaboração também é responsável por outro aspecto presente na política fascista: o oportunismo.

3) Oportunismo

É importante saber que, embora hajam medidas em comum que governos fascistas buscam tomar ao chegarem ao poder, o fascismo não tem um programa de governo bem definido de início, somente “paixões mobilizadoras” e um discurso ideológico inflamado. Historicamente, o fascismo nunca tentou esconder a ausência de um programa. Como Paxton nota, Mussolini até mesmo se gabava de não possuir um programa de governo. Certa vez, em entrevista a um jornal, disse: “Os democratas do Il Mondo querem saber qual o nosso programa? O nosso programa é quebrar os ossos dos democratas do Il Mondo. E quanto antes melhor.”[7]. Em outro momento, disse: “Eles perguntam qual o nosso programa. Nosso programa é simples: queremos governar a Itália”[8]. Hitler também ridicularizava os que exigiam os detalhes de seu programa, dizendo que se recusava a aparecer diante do povo e fazer “promessas baratas”[9]. Para o fascismo, em primeiro lugar vêm o poder e a ação, e, em segundo lugar, a doutrina. Em um discurso na cidade de Udine, em 1922, Mussolini disse:

Eles nos pedem um programa, mas já existem muitos programas. Não são programas que são necessários para a salvação da Itália, mas homens e determinação!”[10].

A ausência de um programa específico também mantém o território aberto para que o fascismo adote programas oportunistas para atrair aliados: Mussolini nunca foi liberal por princípio, mas, para atrair o apoio dos grandes industriais italianos, designou Alberto De Stefani, um político liberal com uma “forte tendência pró-empresariado”[11], como seu Ministro das Finanças em 1922. Seu discurso também adaptou-se à adoção desse programa, o que se ilustra por trecho da mesma fala de Mussolini em Udine em 1922:

É por isso que queremos retirar do Estado todos os seus atributos econômicos. Já chega do ferroviário estatal, do carteiro estatal e do segurador estatal. Já basta do Estado operando às custas de todos os contribuintes italianos e agravando as exauridas finanças do Estado italiano. Que permaneça a polícia, que protege os cavalheiros dos ataques de ladrões e delinquentes; que permaneçam os mestres educadores das novas gerações; que permaneça o exército, que garante a inviolabilidade da Pátria; e que permaneça a política externa.

É comum afirmarem que esse programa de “redução” do Estado seria impossível e contraditório ao fascismo, pelo suposto caráter “estatista” da ideologia, citando a frase “tudo ao Estado, nada contra o Estado, nada além do Estado”, de Mussolini. Mas essa visão é simplista (senão desonesta) e não entende qual o interesse do fascismo no Estado. Mussolini já esclarece parte disso no trecho seguinte de seu discurso:

Não deve ser dito que um Estado assim reduzido estará muito pequeno. Não! Ele estará grande, pois permanece todo o domínio espiritual, abdicando apenas do domínio material.

O que interessa no Estado, para Mussolini, não é sua atuação econômica, mas seu simbolismo nacionalista, o Estado tornado um símbolo do ideal fascista de nação. Jason Stanley escreve que “o fascismo busca substituir o Estado pela Nação”[12]. Por isso, em seu programa de “redução” do Estado, coloca ênfase na permanência das instituições úteis para colocar em prática seu programa autoritário e ultranacionalista: a polícia e o exército, para “garantir a inviolabilidade da Pátria”, e as formas ideologicamente aprovadas de educação, das quais falamos na primeira parte desta série. Essa ênfase fica explícita na seguinte passagem:

Toda a estrutura socialista-democrática deve ser destruída.
Nós devemos ter um Estado que irá simplesmente dizer: ‘o Estado não representa um partido, o Estado representa a coletividade nacional, ela inclui todos, excede todos, protege todos, e luta contra todos que tentem prejudicar sua soberania inviolável.


O que Mussolini abomina no Estado, pelas mesmas razões, são todos os seus aspectos democráticos e seus aspectos potencialmente democráticos, que ele vê apenas como brechas que podem ser exploradas pelo socialismo.

Essas políticas, no fim, tornam-se o ponto do governo fascista ao redor do qual se reúnem os seus aliados oportunistas: aqueles que podem não ter uma afinidade ideológica, a princípio, com o movimento fascista, mas têm grandes interesses na sua chegada ao poder. Stefani, o Ministro das Finanças de Mussolini, citado anteriormente, atraiu muitos industrais ao governo fascista. Eles acreditavam piamente em todos os pontos da doutrina de Mussolini? Talvez sim, provavelmente não, mas isso não importa. O que importa é que viram no fascismo uma forma útil de avançar seus interesses na política, e esse tipo de aliança é sempre um dos pontos centrais do fascismo. A questão é menos no que acreditam dentro de sua cabeça e mais quais são as consequências reais de suas ações e decisões políticas.

No caso da Alemanha, a situação não foi tão diferente. Os nazistas foram primeiro vistos pelas elites políticas conservadoras como uma boa forma de atrair apoio da população:

Schleicher [o então Chanceler] acreditava que havia chegado a hora de abandonar a constituição de Weimar e estabelecer um regime autoritário apoiado pelo exército. Tal regime teria o apoio da indústria e da agricultura, enquanto o problemático NSDAP, Schleicher argumentava, poderia ser ‘domado’ e usado para trazer apoio popular ao novo caminho autoritário do governo.” (The Nazi Voter, p. 202)

E apesar de, durante as eleições, preferir os partidos nacionalistas mais tradicionais, o empresariado alemão se tornou uma das principais bases de apoio aos nazistas na chegada destes ao poder. Hitler nomeou um ministro das finanças conservador, Lutz Graf Schwering von Krosigk[13], e contou com amplo apoio do empresariado alemão:

Os empresários contribuíram com imensas quantias para as recém-empossadas autoridades nazistas e passaram a se acomodar a um regime que viria a recompensar ricamente muitos deles, com contratos de venda de armamentos, e a todos eles, ao quebrar a espinha do movimento trabalhista [laboral] organizado na Alemanha.” (A Anatomia do Fascismo, p. 170)

A ideia de “quebrar a espinha do movimento trabalhista” nos leva ao próximo aspecto.

4) Antissindicalismo

Lendo o título desta seção, alguns leitores podem pensar: “Antissindicalismo? Mas Mussolini não obrigou todos os trabalhadores a se filiarem a um sindicato?”

Ele realmente obrigou os trabalhadores a se filiarem a um sindicato dirigido pelo governo, mas fez isso como parte de uma estratégia para controlá-los e submetê-los aos interesses do governo fascista: os sindicatos fascistas passaram a ter o monopólio da representação trabalhista, ao mesmo tempo em que entraram em vigor outras medidas de concentração de poder, como a censura a jornais e a programas de rádio e a dissolução de partidos opositores[14]. Como Paxton diz:

A erradicação das organizações trabalhistas autônomas permitiu aos regimes fascistas tratar com os trabalhadores no nível individual, não mais de forma coletiva. Não tardou para que esses últimos, desmoralizados pela derrota de seu sindicatos e partidos, se dispersassem, privados de seus locais costumeiros de socialização com medo de confiar em quem quer que fosse.” (A Anatomia do Fascismo, p. 227)

O fascismo, como dito na primeira parte, via nas organizações de classe — especialmente naquelas influenciadas por ideologias internacionalistas — os maiores inimigos para seu projeto ultranacionalista. E, convenientemente, esses sindicatos também eram os inimigos econômicos das elites tradicionais com as quais os fascistas precisavam colaborar para chegar ao poder. Nesse caso, a frase sobre “nada além do Estado” de Mussolini pode até ser útil. Vimos que seu interesse no Estado não era neste como ator econômico, mas como símbolo de união nacional. Dessa maneira, faz sentido que os fascistas, além de proibirem todos os sindicatos independentes, criem os seus próprios sindicatos, “higienizados” de qualquer ideologia opositora e internacionalista e totalmente subordinados ao “projeto nacional” fascista.

Para que o fascismo fosse bem-sucedido em fazer uma “política de massas” nacionalista, ele necessitava que os trabalhadores da Nação se voltassem contra outros trabalhadores, os pertencentes aos grupos considerados “indesejáveis”, e se unissem às elites aliadas do fascismo em torno da identidade nacional, ao invés de se juntarem a outros trabalhadores, além de linhas tribais, em uma luta por direitos comuns à classe. Isso, como também vimos no primeiro texto, faz parte da estratégia fascista de distorcer as fontes da ansiedade econômica e usá-la para gerar raiva contra alguma minoria:

Stanley: “Como o fascismo prospera em situações de incerteza econômica, onde o medo e o ressentimento podem ser mobilizados para colocar os cidadãos uns contra os outros, os sindicatos de trabalhadores se protegem contra a possibilidade de a política fascista criar um ponto de apoio para se desenvolver”. (Como Funciona o Fascismo, p. 110)

Os sindicatos, na época, eram os principais obstáculos à infiltração do fascismo na classe trabalhadora, e sua influência precisava ser combatida.

Os nazistas também não ignoravam essa necessidade. Como Stanley escreve, Hitler “pede que os sindicatos sejam adaptados para servir à nação e não aos interesses de classe.”[15].

Hitler escreve na primeira parte de Mein Kampf que ‘o marxismo forjou o sistema de sindicatos, transformando-o num instrumento para sua própria guerra de classes. O marxismo criou a arma econômica que o judeu internacional emprega para destruir a base econômica dos estados nacionais livres e independentes, para arruinar sua indústria e seu comércio nacional.’” (Como Funciona o Fascismo, p. 109)

E Hitler, em seu julgamento pela tentativa de golpe nazista de 1923, reclama da “politização dos sindicatos”[16]. Em The Nazi Voter, Thomas Childers aponta:

“‘Os administradores e os trabalhadores’, os nazistas enfatizavam, devem se tornar conscientes de que estão ‘unidos por interesses similares e pela possessão em comum do sangue Alemão.’” (The Nazi Voter, p. 106)

Isso mostra outra parte do interesse dos fascistas em relação aos sindicatos. Além da neutralização da “ameaça” das políticas de classe, o fascismo também vê, na subordinação dos sindicatos a seu “projeto nacional”, uma oportunidade de fazer o que é chamado de “nacionalização das massas”[17] . O fascismo não quer simplesmente excluir as “massas” da política, quer mobilizá-las e domá-las em prol de objetivos fascistas. Conclui-se logicamente, então, que ele teria um interesse em dominar o movimento sindical, um dos maiores meios de mobilização massiva de sua época, e usá-lo para seu projeto. Não por acaso os sindicatos em que os nazistas tiveram mais facilidade de inserção foram exatamente aqueles que eram instituídos em bases puramente nacionalistas, e não classistas, como o DHV, um sindicato antipacifista que defendia o expansionismo imperial e negava filiação a mulheres e judeus[18]. Uma exposição explícita desse projeto é a seguinte passagem do discurso de Mussolini:

Nós tivemos que adotar o sindicalismo, e o estamos fazendo. Eles dizem: ‘seu sindicalismo vai acabar sendo em todas as formas assim como o sindicalismo socialista; e vocês terão, por necessidade, que promover a guerra de classes’. (…)Mas o nosso sindicalismo difere dos outros, porque nós não permitimos greves em serviços públicos sob qualquer pretexto. Nós somos favoráveis à cooperação de classes, especialmente em um período de aguda crise econômica como o presente. Nós tentamos fazer essa concepção penetrar os cérebros dos nossos sindicatos.

Não é surpresa, então, que o resultado da política fascista tenha sido o “reforço do ‘poder privado’ dos empregadores sob a autoridade do Estado”[19].

Esse interesse de “dominação e domesticação” não se restringia aos sindicatos, se estendia a todas as organizações civis, desde clubes de jovens até associações profissionais[20]. Isso, junto à tendência a prosperar em situações de incerteza econômica, também gera a oposição às organizações de classe que não são sindicatos, especialmente aquelas instituídas por seus inimigos políticos socialistas. Para citar um exemplo: uma das principais ações dos squadristi de Mussolini na região do Vale do Pó, citadas anteriormente, era o ataque violento a organizações de camponeses sem-terra e trabalhadores rurais, as chamadas “Bolsas de Mão-de-Obra”, entre outras. Paxton faz um histórico dessa destruição:

Faltando-lhes ajuda das autoridades públicas, os grandes proprietários de terras do Vale do Pó voltaram-se para os Camisas Negras para proteção. Felizes por terem agora uma desculpa para atacarem seus antigos inimigos pacifistas, as Squadre fascistas, em 21 de novembro de 1920, invadiram a prefeitura de Bolonha, onde as autoridades socialistas haviam içado uma bandeira vermelha. Seis pessoas foram mortas. Dali, o movimento rapidamente se espalhou por toda a rica região agrícola do baixo delta do Rio do Pó. Squadristi vestidos de camisas negras lançavam ataques noturnos às Bolsas de Mão-de-Obra e às repartições socialistas locais, que eram saqueadas e incendiadas, e espancavam e intimidavam os organizadores socialistas. (…)
Nos seis primeiros meses de 1920, os esquadrões destruíram 17 jornais e gráficas, 59 Casas do Povo (as sedes socialistas), 119 Câmaras de Trabalho (as agências de emprego socialistas), 107 cooperativas, 83 Ligas de Camponeses, 151 Clubes Socialistas, e 151 organizações culturais. Entre 1° de Janeiro e 7 de abril, 102 pessoas foram mortas: 25 fascistas, 41 socialistas, 20 policiais e 16 outras.
” (A Anatomia do Fascismo, p. 110)

E, de modo similar aos sindicatos, os fascistas também criaram suas próprias organizações de trabalho agrícola, devidamente “higienizadas” de ideologias “perigosas” e submetidas a seus próprios fins[21].

5) Discurso “Anticorrupção”

O discurso “anticorrupção” é uma das principais armas retóricas do fascismo. A acusação de corrupção contra adversários é uma de suas formas mais frequentes de propaganda. Como Jason Stanley escreve:

Divulgar falsas acusações de corrupção enquanto se envolve em práticas corruptas é típico da política fascista, e as campanhas anticorrupção estão frequentemente no centro dos movimentos políticos fascistas.” (Como Funciona o Fascismo, p. 23)

A ironia vem do fato de, frequentemente, a corrupção ser um elemento central nos governos fascistas[22]. Stanley cita o historiador Richard Grugenber:

A corrupção era, de fato, o princípio organizador do Terceiro Reich, e, no entanto, muitos cidadãos não apenas ignoravam esse fato mas também, na verdade, consideravam os homens do novo regime como austeramente dedicados à probidade moral.” (citado em Como Funciona o Fascismo, p. 24)

Esse discurso tende a ter um aspecto central porque, como Paxton diz, uma vez que forjou as alianças que o levam ao poder, o fascismo:

Num prazo mais longo, deveria angariar o apoio das massas para a defesa da sociedade nacional, visando unificar, regenerar, rejuvenescer, ‘moralizar’ e purificar a nação que muitos viam como fraca, decadente e poluída.” (A Anatomia do Fascismo, p. 194)

É importante frisar que, embora a corrupção possa ser um problema real em um governo, o fascismo não tem interesse em acabar com as origens reais da corrupção (a influência do dinheiro na política, as relações entre representantes políticos e empresários etc). Em vez disso, o fascismo associa a corrupção não a um problema estrutural, mas a um “inimigo interno”, que tomou conta do Estado, o corrompeu, e passou a utilizá-lo para humilhar a Nação. Combater a corrupção, portanto, não é combater suas causas reais, mas combater o inimigo interno. Assim, conforme o fascismo ganha influência, “combater a corrupção” se torna sinônimo de “combater o comunismo”, “combater os judeus”, por exemplo; em outras palavras, “combater” qualquer que seja o inimigo interno escolhido pelo movimento fascista em questão. Como Stanley diz:

Corrupção, para o político fascista, consiste em corrupção da pureza, e não da lei. Oficialmente, as denúncias de corrupção do político fascista soam como uma denúncia de corrupção política. Mas essa conversa pretende evocar a corrupção no sentido da usurpação da ordem tradicional.” (Como Funciona o Fascismo, p. 24)

Esse discurso anticorrupção também cumpre uma certa função prática na política do fascismo, que é a de servir de justificativa ideológica para sua concentração de poder, vendida como necessária em nome do “combate à corrupção”:

Os Estados fascistas concentram-se em desarticular o Estado de Direito, com o objetivo de substituí-lo pelos ditames de governantes individuais ou chefes de partido. É padrão na política fascista que as duras críticas a um poder judiciário independente ocorram na forma de acusações de parcialidade, um tipo de corrupção, críticas que, então, são usadas para substituir juízes independentes por aqueles que empregarão cinicamente a lei como um meio de proteger os interesses do partido no poder. […] Em nome de erradicar a corrupção e a suposta parcialidade, os políticos fascistas atacam e diminuem as instituições que, de outro modo, poderiam cercear seu poder.” (Como Funciona o Fascismo, p. 25)

6) “Populismo”

“Populismo” é um termo usado de forma tão vaga que é um ótimo candidato à lista de termos políticos que passam a significar absolutamente nada.

“Populismo” é usado aqui para se referir ao apelo do fascismo à “massa”, o fato de ele frequentemente invocar “o povo” no seu discurso. Isso é o que Umberto Eco chama de “populismo qualitativo” em seu texto “O Fascismo Eterno”. Eco diz:

Para o Ur-Fascismo, os indivíduos, enquanto indivíduos, não têm direitos, e ‘o povo’ é concebido como uma qualidade, uma entidade monolítica que exprime ‘a vontade comum’. (…) Tendo perdido seu poder de delegar, os cidadãos não agem, são chamados apenas pars pro toto, para assumir o papel de povo.” (O Fascismo Eterno, p. 10)

“O povo”, no discurso fascista, é sempre uma entidade vaga e abstrata, nunca é um grupo bem definido. Quando o fascismo diz “o povo”, “a vontade do povo” e que o “poder vem do povo”, com “povo” ele não quer dizer um certo segmento, uma certa classe, uma certa parcela realmente existente da população. Isso é porque, com “o povo”, ele quer dizer seus próprios seguidores. No fascismo, o líder e seus colaboradores estabelecem uma certa prioridade, seus seguidores a repetem, enquanto “massa”, e isso é usado pelo líder como evidência da “vontade do povo”. Assim, para o discurso fascista funcionar, os seguidores leais não precisam ser a maioria, mas precisam ser os mais barulhentos, porque uma narrativa contrária sobre a vontade da população (real) ameaçaria sua propaganda. Eco continua:

O povo é, assim, apenas uma ficção teatral. Para ter um bom exemplo de populismo qualitativo, não precisamos mais da Piazza Venezia ou do estádio de Nuremberg. Em nosso futuro desenha-se um populismo qualitativo de TV ou internet, no qual a resposta emocional de um grupo selecionado de cidadãos pode ser apresentada e aceita como a ‘voz do povo’.” (O Fascismo Eterno, p. 10)

De modo similar ao uso que faz do termo “povo”, o fascismo pode se dizer opositor a uma “elite” ficcional. Quando fala das “elites”, do “establishment” e de outras entidades abstratas, o fascismo também não quer dizer uma certa classe, tampouco qualquer outro tipo de segmento real da população. Também não quer dizer a parcela mais rica da população, porque, como vimos, essa é a parcela que o financia. Com “as elites” ele geralmente quer dizer “o inimigo interno”. Como vimos na primeira parte, o fascismo ao mesmo tempo representa o inimigo como muito forte e como muito fraco, como uma grande força conspiratória e dominadora, mas ao mesmo tempo, como um grupo de indivíduos preguiçosos e covardes. Assim, uma maneira óbvia de representar o inimigo como muito forte é dizer que ele é uma elite que controla a sociedade, independentemente de qual inimigo interno seja o eleito da vez. Isso pode levar a afirmações como a de que “os comunistas controlam o sistema financeiro”, que, do ponto de vista da lógica, são absurdas, mas representam perfeitamente a visão de mundo fascista, porque o fascismo não tem medo de proferir contradições lógicas: como Stanley nota, os nazistas alemães representavam os judeus ao mesmo tempo como uma elite financeira e como uma massa de mendigos e indigentes, chegando a planejarem tornar essa visão real ao expulsarem a população judaica de suas fronteiras como refugiados. Os nazistas também acreditavam que os comunistas eram financiados por uma elite financeira judaica, para “destruir a Nação” tanto politicamente quanto culturalmente (através do “bolchevismo cultural” e da “arte degenerada”).

Na retórica do fascismo, “o povo” e “as elites” não são grupos específicos, tampouco são categorias bem definidas de análise social. São dois personagens em uma história que ele conta para si mesmo e para seus seguidores, de uma luta heroica dos salvadores nacionalistas contra a conspiração corrupta dos inimigos interno e externo. Isso, como vimos na primeira parte, constitui o “mito” na base da ideologia fascista.

7) Culto ao Líder

Um mito comum, que é resultado direto da própria propaganda fascista, é o do líder fascista isolado, comandando por si só, com todo seu governo dependente de sua vontade. Mas o fascismo não é uma simples criação de um líder individual, e, como veremos depois, esse líder não governa sozinho. Esse mito cria o risco de desviar o foco das pessoas, aliados e instituições que auxiliaram o fascismo, e atribuir toda responsabilidade à figura individual do líder[23].

Também é um mito a ideia de que todos os líderes fascistas seriam estrategistas natos e eficientes. Os líderes fascistas, mesmo tendo alguma habilidade tática, tendem a ser figuras narcisistas e bem menos “estrategicamente calculistas” do que se costuma pensar. Embora Mussolini se dedicasse à tarefa monótona de governar, Hitler era notoriamente indolente, e, até o início da guerra, dedicava o mínimo de tempo possível a suas tarefas de governo, chegando a negligenciar tarefas urgentes, enquanto “fazia jantares com monólogos que iam até a meia-noite”[24].

Entretanto, o líder fascista é sempre uma figura de culto por parte do movimento. Como Paxton diz, sobre o apelo dos líderes fascistas ao “carisma”:

Esse carisma é semelhante ao ‘estrelato’ das celebridades da era da mídia, elevado a uma potência mais alta por sua capacidade de ditar a guerra e a morte.” (A Anatomia do Fascismo, p. 209)

Pode ser difícil diferenciar esse culto de celebridade do líder fascista de outros líderes quaisquer em uma era em que toda a política institucional é dominada pela mídia e tem um certo aspecto de “celebridade”. Mas o culto ao líder fascista se torna mais característico em união com os outros aspectos ideológicos do fascismo: o conspiracionismo, a crença no inimigo interno e no “renascimento da nação” etc. Entre as “paixões mobilizadoras” do fascismo, Paxton lista:

- A necessidade da autoridade de chefes naturais (sempre do sexo masculino), culminando num comandante nacional, o único capaz de encarnar o destino histórico do grupo.
- A superioridade dos instintos do líder sobre a razão abstrata e universal.
” (A Anatomia do Fascismo, p. 360)

O fascismo prospera no seu apelo às suas massas de apoiadores não com mudanças substanciais, tampouco com o reconhecimento dos direitos desses seguidores, mas com a identificação desses seguidores com o líder. O máximo de expressão política que é permitida à massa seguidora do fascismo é a de “participar” da “glória” do líder. Até porque, no momento em que fizerem questionamentos, são “traidores” em potencial. Logo, tudo que for uma vitória para o líder deve também ser uma vitória para os seguidores, mesmo que isso em nada melhore sua situação social concreta.

Pelo fato de a ideologia depender tanto desse investimento psicológico na figura do líder, a tendência é que ela se afaste da realidade o quanto for necessário para preservar essa identificação. Com o tempo, o raciocínio do fascismo tende a virar: “Se isso fosse verdade, o líder teria falhado. Já que o líder é infalível, aquilo não pode ser verdade.” O partido nazista, após chegar ao poder, espalhava pôsteres com a frase “O Führer tem sempre razão”[25]. Além disso, antes dos nazistas, os fascistas italianos repetiam que Mussolini “tem sempre razão”[26].

Unida ao anti-intelectualismo e à desqualificação da ciência e da educação, o resultado é o estreitamento ideológico:

Quando a política fascista é mais bem-sucedida, o líder é considerado pelos seguidores como o único confiável.” (Como Funciona o Fascismo, p. 50)

Assim, o culto ao líder pode gerar sua própria forma de conspiracionismo: o fascismo, para manter o ímpeto de seus seguidores e justificar seu discurso triunfalista, precisa de realizações cada vez mais ousadas[27]. Se essas realizações não vêm, pode-se culpar o inimigo interno, mas pode-se também inventá-las por meio de novas teorias da conspiração. Assim, questionamentos sobre a situação política podem ser sanados simplesmente com apelos a “confiar no líder” e naqueles mais próximos a ele.

8) Negação da Realidade

A mentira, as falsificações e a negação da realidade são uma parte central tanto da ideologia do fascismo quanto de sua propaganda e estratégia política. Como ele tende a apelar mais à emoção fanática do que à razão, o fascismo precisa fabricar mentiras que sirvam para atacar seus oponentes políticos e para gerar investimento emocional em seus seguidores. Nesse sentido, Jason Stanley escreve:

A política fascista substitui o debate fundamentado por medo e raiva. Quando é bem-sucedida, seu público fica com uma sensação de perda e desestabilização, um poço de desconfiança e raiva contra aqueles que, segundo foi dito, são responsáveis por essa perda. (…) Mentiras óbvias e repetidas fazem parte do processo pelo qual a política fascista destrói o espaço da informação. Um líder fascista pode substituir a verdade pelo poder, chegando a mentir de forma inconsequente. Ao substituir o mundo por uma pessoa, a política fascista nos torna incapazes de avaliar argumentos com base num padrão comum. O político fascista possui técnicas específicas para destruir os espaços de informação e quebrar a realidade.” (Como Funciona o Fascismo, p. 42)

Esse investimento emocional gerado nos seguidores é a razão pela qual apelos à evidências e análises racionais das mentiras fascistas tendem a não surtir tanto efeito, porque a crença nessas invenções tende a operar mais no nível da “sobrecarga afetiva” da qual falamos na primeira parte, do que no de uma crença sustentada por evidências. E essas crenças, no geral, são aquelas que reforçam o mito central de humilhação e renascimento nacional do fascismo. O fascismo mente, mas ele mente com um certo objetivo.

Uma das principais formas tomadas pelas mentiras fabricadas pelo fascismo é a da teoria da conspiração. Stanley continua:

As teorias da conspiração não atuam como informações comuns; elas são, afinal, muitas vezes tão estranhas que dificilmente se pode esperar que as pessoas acreditem nelas literalmente. Sua função é, antes, levantar suspeitas gerais sobre a credibilidade e a decência de seus alvos.

Os nazistas alemães tinham teorias da conspiração no centro de sua ideologia e sua propaganda política, uma das principais sendo os “Protocolos dos Sábios de Sião”[28]. Os “Protocolos” são uma falsificação antissemita do começo do século XX, cujo texto foi, em boa parte, plagiado de textos anteriores, mas que foi propagada como um documento real produzido pelos supostos líderes de uma conspiração judaica mundial. Ele foi amplamente difundido nos anos 20 e 30, com o industrial Henry Ford chegando a financiar a impressão de 500.000 cópias para serem distribuídas nos EUA.

No texto, os supostos líderes da suposta conspiração descrevem um plano para “destruir o mundo ocidental” por meio da infiltração no sistema financeiro e nos governos, da militância comunista, do controle da mídia e da destruição da religião e dos valores morais, com o objetivo de instituir um “governo judaico global”. Os “protocolos” são uma mentira óbvia, sem evidências, cheia de contradições (os judeus são descritos simultaneamente como banqueiros internacionais e como comunistas). Porém o seu objetivo não era parecer uma verdade razoável, era servir de pretexto para culpar os judeus por todos os problemas que afetavam a Europa (quando foi publicado em um jornal russo, recebeu o subtítulo de “As Raízes da Desintegração Europeia”). Na verdade, algumas coisas que apontavam para o fato do documento ser falso, como sua linguagem vaga e a ausência de descrições precisas de datas e indivíduos, só serviram para reforçar a crença na conspiração, porque possibilitavam que qualquer um em qualquer lugar usasse o documento como “prova” e o adaptasse a seu contexto.

O inimigo interno escolhido nesse caso eram os judeus. Mas, independente de qual seja o inimigo interno do movimento em questão, as teorias da conspiração fascistas seguem a mesma linha de pensamento: começam com a conclusão de que o inimigo interno é o culpado e de que o líder representa o bem da nação. As falsificações, então, cumprem a função de servir de justificativa para as crenças que os seguidores já têm: elas funcionam como apoio de uma visão preconcebida da “realidade”. Por esse motivo, apelos à evidência e à razão tendem a surtir pouco (senão nenhum) efeito, porque o objetivo da teoria da conspiração não é servir de evidência para uma análise razoavelmente correta da realidade, mas acabar com essa realidade de vez.

O psicólogo Robert Altemeyer descreve que seguidores de ideologias autoritárias tendem a aceitar qualquer argumento que possua uma conclusão com a qual eles concordem, mesmo argumentos sem sentido: no pensamento dos seguidores autoritários, não é o raciocínio que leva a uma conclusão, mas a conclusão que justifica o raciocínio[29]. A negação da realidade praticada pelo fascismo eleva essa tendência ao seu máximo grau.

Essas teorias, por vez, formaram uma das bases das campanhas eleitorais nazistas:

A República de Weimar, de acordo com a literatura Nacional-Socialista, era controlada pelo socialismo internacional e pelo capital financeiro judaico. Juntas, essas forças haviam ‘destruído a classe média e a roubado de seu papel no Estado e na economia.’”(The Nazi Voter, p. 152)

Outra teoria conspiratória extremamente popular nos círculos nacionalistas da época, e amplamente usada pelos nazistas, era o mito da “Punhalada nas Costas”, segundo o qual a derrota alemã na Primeira Guerra Mundial havia sido resultado de uma “traição” de políticos republicanos e judeus que apunhalaram o exército pelas costas ao assinarem o armistício que deu fim à guerra, o que levava antissemitas a se referirem à República de Weimar como uma “república judaica”[30]. A teoria também era baseada em mentiras (o exército alemão já estava colapsando no momento da rendição), mas isso nem impediu os nazistas de a utilizarem em suas campanhas, nem impediu Hitler de:

Vangloriar-se repetida e vingativamente de que havia chegado ao poder para corrigir a traição da Alemanha pelos ‘criminosos de novembro’, os políticos que assinaram o armistício/rendição de novembro de 1918.” (Explaining Hitler, p. 53)

O objetivo do fascismo, enquanto se consolida, é ir transformando suas mentiras e teorias da conspiração em política de Estado: depois da chegada dos nazistas ao poder, suas teorias da conspiração começaram a ser adotadas nas escolas, e os livros escolares passaram a repetir a ideia de uma conspiração antinacional judaica e marxista, assim como o mito da Punhalada nas Costas.

Outro método usado pelo fascismo para eliminar a realidade é o uso do cinismo e da “ironia”. Um exemplo disso vem do livro Hitler’s Table Talk, uma coleção de transcrições das conversas pessoais de Hitler em seu bunker durante a guerra, registradas por um estenógrafo, com sua autorização, a pedido de um conselheiro próximo. Mas, claro, essas falas não são totalmente espontâneas: ele sabia que o que dizia estava sendo registrado. Dito isso, em uma conversa com Himmler, o líder da SS, e com o general Heydrich, registrada no livro, Hitler diz:

Aquela raça de criminosos tem em sua consciência os dois milhões de mortos da primeira Guerra Mundial, e agora centenas de milhares de mais. Não deixe ninguém me dizer então que não podemos estacioná-los nas partes pantanosas da Rússia! Quem está pensando nos nossos soldados? Não é uma má ideia, inclusive, aquele rumor público que atribui a nós um plano para exterminar os judeus. O terror é algo salutar.” (Hitler’s Table Talk, p. 93)

Esse “rumor público” a que ele se refere é o Holocausto, que já estava em curso quando essa conversa aconteceu, em 1941. Ainda por cima, aqueles com quem ele estava conversando não só sabiam perfeitamente sobre o Holocausto, mas também eram alguns de seus principais arquitetos. Então falar de um “rumor” e dizer que só estão “estacionando” os judeus “nas partes pantanosas da Rússia” é uma ironia, e, mesmo que acredite que o que faz é “necessário”, Hitler tem tanta noção do crime que comete que o “esconde” por trás do cinismo. Como ele sabe que suas palavras são registradas, intencionalmente tenta incluir falsidades no registro histórico.

Comentando essa passagem, o jornalista Ron Rosenbaum escreve:

Isso é um homem tão convencido de sua criminalidade que ele deve negar que o crime está acontecendo (é só um “rumor” que, apesar de “salutar”, não é real); um homem que deve cercar essa negação desonesta com desinformação (nós estamos simplesmente “estacionando” os judeus nas partes conquistadas do território russo, não os assassinando em massa e enterrando-os em fossas); um homem que deve introduzir essa desinformação com uma justificativa para o ato sendo negado (“aquela raça de criminosos tem em sua consciência os dois milhões de mortos” — e, portanto, se o “rumor” fosse real os assassinatos seriam justos). É talvez a suprema falsificação hitleriana.
Pode-se imaginar os olhares que Hitler, Himmler e Heydrich trocaram durante a preparação dessa farsa elaborada para o estenógrafo, talvez até a risada silenciosa. Os três perpretadores do holocausto aqui tornam-se os primeiros negacionistas do holocausto, estabelecendo o padrão para os “revisionistas” que seguiriam: ‘o Holocausto não aconteceu, mas, se aconteceu, os judeus mereceram’.
” (Explaining Hitler, p. 73)

Essa tensão entre informação e desinformação, entre honestidade e ironia, e entre o que deve ser “levado a sério” e o que não deve ser “levado a sério” é um aspecto do ambiente criado pela propaganda fascista. Não se deve simplesmente encarar de forma literal e acrítica o que a propaganda fascista diz, mas a ideia de se poder simplesmente “não a levar a sério” pode causar erros enormes. Em How Propaganda Works, Jason Stanley relata uma conversa que o professor judeu alemão Victor Klemperer teve com um de seus estudantes, que estava apoiando o partido nazista:

- Você viveu na minha casa por vários anos, você sabe o jeito que penso, e você tem frequentemente dito que aprendeu conosco e que seus valores morais estão de acordo com os nossos — como, considerando tudo isso, você pode apoiar um partido que, por causa de minha origem, nega a mim qualquer direito de ser um alemão, ou mesmo um ser humano?”
- Você está levando isso a sério demais, Babba… todo o papo e alarde sobre os judeus está lá só por propaganda. Veja só, quando Hitler estiver no comando ele vai estar ocupado demais para insultar os judeus.

(citado em How Propaganda Works, p. 43–44)

9) Violência ExtraJudicial e Paramilitarismo

O fascismo tende a criar forças paramilitares, organizações armadas que atuam em paralelo às instituições regulares do Estado. Às vezes isso envolve a cooptação de forças paramilitares preexistentes, por exemplo: grande parte da SA, a primeira força paramilitar nazista, foi composta por membros das Freikorps, uma organização paramilitar nacionalista e anticomunista surgida logo após o fim da Primeira Guerra. A própria SA, e, posteriormente, a SS, além dos Camisas-Negras, também chamados de “squadristi”, de Mussolini, são os exemplos mais famosos de grupos paramilitares fascistas. Essas forças paramilitares também costumam ser usadas para pressionar as instituições do Estado normativo a cederem mais espaço e poder ao movimento fascista em questão.

É curioso notar, entretanto, que essa violência extrajudicial, incluindo o próprio paramilitarismo, nem sempre está sob controle total do líder. Eram frequentes os conflitos de Hitler e Mussolini com alguns dos elementos mais radicais de seus partidos, especialmente quando esses elementos cometiam atos de violência em momentos inoportunos para o governo[31], chegando a fazer Hitler expulsar centenas dos membros mais intransigentes da SA.

O paramilitarismo é uma face da tendência do fascismo à violência extra-judicial. Outra face dessa tendência é o fato de o fascismo criar, entre os seguidores do movimento, as condições para que essa violência ocorra. Em seu artigo On Gun Registration, The NRA, Adolph Hitler and Nazi Gun Laws, o cientista político Bernard Harcourt analisa as leis nazistas sobre o controle de armas. Como um resultado dos termos do Tratado de Versalhes, o governo da República de Weimar possuía leis bem restritas sobre o comércio e o licenciamento de armas, que culminaram em uma lei levemente mais relaxada em 1928. Essas leis permaneceram em vigor até 1938, quando as leis nazistas proibiram a aquisição de armas por parte dos judeus e outros considerados “não confiáveis” pelo regime, mas relaxaram consideravelmente as regulações de armamentos sobre a população geral (tornando as licenças obrigatórias apenas no caso de revólveres e pistolas), e, entre membros do partido e setores considerados “leais” ao regime, o armamento era encorajado[32]. Não é por coincidência que, após a chegada do partido ao poder, sua filiação foi aberta a todos os simpatizantes ideológicos, chegando a crescer em 1,6 milhões de membros[33], e logo depois os membros do partido foram tornados isentos da necessidade de uma licença para armamento[32].

Esse aspecto de “agitar” os seguidores cumpre um papel importante na violência extrajudicial do fascismo. O psicólogo Robert Altemeyer, em suas pesquisas sobre os seguidores de líderes autoritários, mostra que estes se tornam mais propensos a um certo tipo de violência se acreditam que as autoridades estão do seu lado. Segundo Altemeyer, os seguidores autoritários:

[…] cometem agressão quando acreditam que o Direito e o Poder estão do seu lado. “Direito” para eles significa, mais que qualquer coisa, que a sua hostilidade é (na cabeça deles) apoiada pela autoridade estabelecida, ou dá apoio a essa autoridade. “Poder” significa que eles têm uma grande vantagem física sobre seu alvo, em armamento, por exemplo, ou em números, como em um linchamento. É impressionante o quão frequentemente a violência autoritária acontece de forma sombria e covarde, no escuro, por covardes que mais tarde farão de tudo o que puderem para evitar responsabilidade pelo que fizeram. (…) Ainda mais impressionante, os agressores tipicamente se sentem moralmente superiores às pessoas que estão atacando em uma luta injusta.” (The Authoritarians, p. 21)

A “normalização” do discurso e das posições fascistas e essa crença na legitimação pela autoridade também podem levar pessoas “comuns” a cometerem atos de violência, como é o caso da Kristallnacht, também chamada de “Noite dos Vidros Quebrados” alemã, em 1938, quando ocorreram ataques a lojas e casas, incêndios criminosos em sinagogas e linchamentos de judeus. A ação foi em boa parte orquestrada e executada por autoridades nazistas, mas teve grande adesão de alemães “de bem” e “comuns”. Hugh Greene, o correspondente do jornal britânico “The Daily Telegraph”, que testemunhou o ataque, escreveu:

Eu vi vários ataque antissemitas na Alemanha durante os últimos cinco anos, mas nunca algo tão nauseante quanto isso. Ódio racial e histeria pareciam ter tomado controle completo de pessoas normalmente decentes. Eu vi mulheres em roupas da moda batendo palmas e gritando alegremente, enquanto mães respeitáveis de classe média levantavam seus bebês para ver a ‘diversão’.”[34]

O discurso do líder, portanto, a cada vez que dá espaço a uma potencial legitimação de algum tipo de violência, em especial contra o “inimigo interno” escolhido, pode ser visto como um “chamado às armas” pelos seus seguidores mais leais. E, mesmo entre aqueles que não participariam diretamente da violência, a complacência e a aceitação se tornam generalizadas. Uma parte essencial disso é também a propaganda fascista e a crença de que “o inimigo” é pior. Como Paxton escreve:

A violência fascista não era aleatória e não era indiscriminada. Portava um conjunto de mensagens codificadas: que a violência comunista estava em ascensão, que o Estado democrático vinha reagindo a ela de forma inepta, e que apenas os fascistas eram fortes o suficiente para salvar a nação do terrorismo antinacional. Um passo essencial na marcha dos fascistas para a aceitação e o poder foi persuadir os conservadores e os integrantes da classe média, defensores da lei e da ordem, a tolerar a violência como um mal necessário ante as provocações esquerdistas. Ajudava, é claro, o fato de que muitos cidadãos comuns nunca temeram que essa violência se voltasse contra eles próprios, por terem sido convencidos de que ela era reservada aos inimigos nacionais e aos ‘terroristas’ que faziam por merecê-la.” (A Anatomia do Fascismo, p. 145)

10) Caos Institucional

Na mesma linha do mito do líder todo-poderoso, existe o mito de que, uma vez instalado no poder, o fascismo governa sozinho, sem restrições internas, e com o Estado Legal totalmente abolido.

Já vimos anteriormente que o fascismo costuma chega ao poder não por vias golpistas, mas por vias “legais”, em aliança com elites políticas e econômicas já estabelecidas. Sendo assim, ao instalar-se no poder, o fascismo não governa sozinho, mas em conjunto com esses aliados. O governo fascista italiano chegou a ser descrito como uma “dupla ditadura”, de Mussolini e do Rei, e o governo nazista, a ser descrito como “um cartel formado pelo partido, pela indústria, pelo exército e pela burocracia.”[35].

Mesmo com essa coalizão, enquanto não chega ao estágio de completa dominação institucional, que veremos à frente, o governo fascista ainda reúne elementos diferentes, e por isso é muito mais parecido com uma “queda de braços” entre o líder, seus seguidores mais radicais, os aliados conservadores, e o Estado legal já estabelecido[36]. Assim, a governança fascista tende a ser caótica: os seguidores mais radicais querem realizações ousadas e o cumprimento das promessas do líder, os aliados conservadores querem o avanço dos próprios interesses, e o líder precisa agir como um mediador, tentando não perder o ímpeto dos seguidores, mas também tentando não desagradar os aliados mais “moderados”, enquanto tenta manobrar a legalidade. Às vezes esses interesses confluem em uma causa comum, mas, quando não confluem, as tensões internas ao governo se manifestam, com o líder tendo que “resistir aos desafios lançados pela elite e pelos fanáticos do partido”[37]. Essa coalizão com pontos de desconforto é o motivo pelo qual não se pode ver o exercício fascista do poder como “estático”, como se a natureza do governo não mudasse uma vez que estivesse estabelecido.

Ao contrário, a história desses regimes que conhecemos foi repleta de conflitos e tensões.” (A Anatomia do Fascismo, p. 199)

Isso frequentemente leva a conflitos com instituições do Estado Legal já estabelecido, como na nomeação de Ribbentrop, por Hitler, para a diplomacia, quando:

[…] os diplomatas alemães foram submetidos à humilhação de ver sua altiva corporação passar a ser controlada pelo líder da organização paralela do partido, Joachim von Ribbentrop, um homem cuja principal experiência internacional, antes de 1933, havia sido a de vender champanhe alemã falsificada na Grã-Bretanha.” (A Anatomia do Fascismo, p. 216)

Outro resultado comum, especialmente no caso de Mussolini, é a oscilação do líder entre esforços de radicalização, agradando aos seguidores radicais do partido, e esforços de “normalização”, agradando aos aliados “moderados”. Um caso emblemático dessa oscilação foi a nomeação de Roberto Farinacci, um membro bastante radical, como secretário do Partido Fascista:

A nomeação de Farinacci parecia sinalizar uma escalada da violência voltada contra os adversários, da intromissão do partido no serviço público, e da adoção de políticas radicais nas áreas social, econômica e de política externa. Farinacci, contudo, foi demitido apenas um ano depois. Novas erupções de violência, como oito outros assassinatos ocorridos em Florença, em outubro de 1925, “na frente dos turistas”, foram vistos como intoleráveis e, além disso, veio a público que a tese de Direito apresentada por Farinacci havia sido plagiada.” (A Anatomia do Fascismo, p. 220)

Os secretários seguintes foram mais “moderados” e, mais importante, foram mais subordinados aos mandos de Mussolini.

É difícil resumir o conflito inerente ao governo fascista em um texto tão curto, mas o importante é, principalmente, o reconhecimento da natureza de “crise permanente” do governo, enquanto ele busca consolidar o poder e perseguir seus objetivos, e do fato de que, ao contrário da imagem popular, o governo fascista não é um Estado super organizado e extremamente eficiente. Como Paxton diz, “a Alemanha Nazista não era uma máquina azeitada de funcionamento impecável”[38]. Hitler, com a atitude indulgente descrita anteriormente, ao invés de dedicar-se ao trabalho burocrático:

Proclamava suas visões e seus ódios em discursos e cerimônias, e permitia que seus ambiciosos subordinados procurassem pela maneira mais radical de pô-los em prática, numa competição darwiniana por atenção e por recompensas. Seus lugares-tenentes, conhecendo bem suas visões fanáticas, ‘trabalhavam em direção ao Führer’, que, basicamente, só precisava arbitrar entre eles.” (A Anatomia do Fascismo, p. 255)

11) Fechamento de Regime e Repressão

Pode soar absurdo dizer, mas o fascismo nem sempre é abertamente ditatorial desde seu início. Seu discurso é sempre abertamente autoritário, mas, ao chegar ao poder, pelo menos de modo inicial, ele evita atentar abertamente contra a legalidade, em especial para não correr o risco da perda de seus aliados mais “moderados”. Isso é especialmente verdade no caso de Mussolini, que, por um tempo, contentou-se com os poderes comuns de primeiro-ministro:

Durante quase dois anos, Mussolini, aparentemente, conformou-se em governar como um primeiro-ministro comum num regime parlamentarista, em coalizão com nacionalistas, liberais e alguns poucos Popolari. Seu governo seguia políticas conservadoras convencionais na maioria das áreas, tais como a deflação e o equilíbrio orçamentário ortodoxos postos em prática pelo ministro das finanças Alberto de Stefani.” (A Anatomia do Fascismo, p. 183)

Quinze anos após a Marcha Sobre Roma, o governo de Mussolini ainda possuía muitas características do Estado Liberal, ao ponto de ser chamado de “um governo liberal administrado por fascistas”[39]. Hitler também buscou não atentar abertamente contra a legalidade e o “Estado normativo” em seus anos iniciais de governo:

Hitler nunca aboliu formalmente a constituição redigida em 1919 para a República de Weimar, e nunca chegou a desmontar por completo o Estado normativo na Alemanha, embora se recusasse a se deixar cercear por ele.” (A Anatomia do Fascismo, p. 201)

Dentro do governo nazista, Hitler tomou o que podemos considerar como poderes ditatoriais após o incêndio do Reichstag (o parlamento alemão), quando foi aprovada a “Lei Capacitadora”, que o dava poderes emergenciais quase ilimitados para lidar com o “terror comunista”. Mesmo depois disso, o regime ainda tentava manter uma aparência de “legalidade”:

Ele parecia querer acobertar sua ditadura sob o verniz legalista que a Lei Capacitadora conferia às arbitrariedades do regime.” (A Anatomia do Fascismo, p. 182)

A violência fascista ideal está sempre no limite da legalidade, sem explicitamente ultrapassá-lo. O elemento fascista do governo e seus aliados tendem a agir por meio de uma “cooperação conflituosa, embora mais ou menos competente”, o que faz com que o governo fascista funcione através de “uma mistura bizarra de legalismo e de violência arbitrária.”[40].

O fascismo, necessariamente, cresce dentro da democracia liberal, explorando brechas enquanto busca expandir sua influência, e o faz de maneira parecida com a que usa para poluir o discurso: primeiro testando os limites da política estabelecida para, depois, ultrapassá-lo. Uma forma de expandir sua influência é tomar controle sobre instituições-chave, como a polícia:

A polícia alemã não tardou a ser retirada da esfera do Estado normativo e trazida para a área de influência do Partido Nazista, por via da SS. Himmler, que contava com o apoio de Hitler em suas disputas com os rivais e com o Ministério do Interior, foi promovido (…) a chefe de todo o sistema policial alemão, em junho de 1936. Esse processo foi facilitado pela hostilidade que muitos policiais alemães sentiam pela República de Weimar, com sua ‘indulgência com os criminosos’, e pelos esforços do regime em melhorar a imagem da polícia aos olhos da população. (…) Ela desfrutava de um papel privilegiado, estando acima de qualquer lei e atuando como o árbitro máximo de sua própria espécie de ‘justiça policial’ ilimitada.” (A Anatomia do Fascismo, p. 221)

E, junto à polícia:

Um outro instrumento de importância central ao exercício do poder era o judiciário. Embora, em 1933, poucos juízes fossem membros do Partido Nazista, a magistratura alemã era esmagadoramente conservadora. Ao longo da década de 1920, ela já havia estabelecido para si um sólido histórico de penas mais duras para os comunistas que para os nazistas. Em troca de uma invasão relativamente limitada em sua esfera profissional, os juízes não evitaram em fundir suas associações a uma organização nazista e aceitaram entusiasticamente o poderoso papel conferido a eles pelo novo regime.” (A Anatomia do Fascismo, p. 222)

Ao longo desse processo, conforme novos impasses e conflitos são usados para conseguir mais poder, a cumplicidade dos seus aliados “moderados” é de suma importância, mesmo quando o regime chega a um ponto ditatorial:

Em inícios de 1927, a Itália havia se convertido numa ditadura de partido único. Os conservadores, de modo geral, aceitaram o golpe interno de Mussolini, porque as alternativas pareciam ser a continuação do impasse ou a admissão da esquerda no governo.” (A Anatomia do Fascismo, p. 185)

Hitler, como vimos logo atrás, recebeu apoio para aprovar a Lei Capacitadora que lhe garantiu poderes ditatoriais, mas os aliados do regime também estiveram dispostos a tolerar a violência extrajudicial se a considerassem vantajosa:

Seus cúmplices conservadores estavam dispostos a fazer vista grossa à ‘revolução de baixo para cima’ [sic], posta em ação em caráter não-oficial, na primavera de 1933, por ativistas do Partido Nazista contra judeus e marxistas, e até mesmo ao estabelecimento do primeiro campo de concentração em Dachau, próximo a Munique, em março de 1933, destinado aos inimigos políticos, contanto que esses atos ilegais fossem cometidos contra os ‘inimigos do povo’.” (A Anatomia do Fascismo, p. 182)

Nos seus esforços de concentração de poder, o objetivo do fascismo é chegar à “radicalização”, à completa dominação institucional, quando os atos de violência arbitrária podem se tornar irrefreados. O regime de Mussolini realizou alguns atos de radicalização, como a guerra de agressão na Etiópia, mas, com o tempo, a divisão de poder com outras instituições levou seu governo a permanecer em um estado ditatorial e autoritário, mas “estável”. O único exemplo que temos do que seria um estado de completa radicalização do fascismo é a Alemanha Nazista.

Conclusão:

Por causa do tema desse texto — a busca e conquista de poder político pelos movimentos fascistas — e por questões de tamanho, a maior parte dele trata dos seus exemplos mais famosos e bem sucedidos: o fascismo italiano e o nazismo alemão. Porém, apesar de nem todos os fascismos surgirem igualmente, e de cada um ser formado conforme a realidade de seu país de sua época, ainda existem aspectos em comum e padrões que podem ser observados. As condições exatas que gestaram o fascismo no início do século XX não existem mais, elas estão intrinsecamente ligadas à época e ao lugar em que ocorreram. No entanto, nada impede que condições análogas, de crise da democracia liberal, gestem um fenômeno muito parecido:

O colapso do Estado liberal foi, em certa medida, uma questão independente da ascensão do fascismo. Este explora a brecha, apesar de não tê-la causado.” (A Anatomia do Fascismo, p. 194)

Como Paxton escreve:

Não somos obrigados a acreditar que os movimentos fascistas só possam chegar ao poder numa reedição exata do cenário enfrentado por Mussolini e por Hitler. Tudo o que é necessário para se encaixar nesse modelo é polarização, impasse, mobilização de massas contra inimigos internos e externos e cumplicidade por parte das elites existentes.” (A Anatomia do Fascismo, p. 193)

Como vimos no fim da primeira parte, um movimento oportunista, em um momento de crise de uma democracia liberal, que chega ao poder com uso da mesma retórica aqui descrita e apoiado pelas elites políticas e econômicas tradicionais, organizado ao redor do culto a um líder, com “paixões mobilizadoras” similares, e aliado a liberais e conservadores amedrontados por uma possível chegada da esquerda ao poder, e apelando a um passado mítico de uma “glória nacional” autoritária não é uma possibilidade menos remota em uma democracia liberal frágil de hoje do que era na primeira metade do século XX. Um fenômeno assim só precisa do terreno certo onde possa germinar e lançar raízes.

Como diz a frase normalmente atribuída a Mark Twain: “a história não se repete, mas, às vezes, ela rima.”

Notas

[1] A Anatomia do Fascismo, p. 120; The Nazi Voter, p. 209
[2] The Nazi Voter, p. 3
[3] A Anatomia do Fascismo, p. 105
[4] A Anatomia do Fascismo, p. 129; mas essencialmente todo o capítulo 2.
[5] A Anatomia do Fascismo, p. 168
[6] A Anatomia do Fascismo, p. 111
[7] A Anatomia do Fascismo, p. 40
[8] A Anatomia do Fascismo, p. 114
[9] A Anatomia do Fascismo, p. 41
[10] Todas as citações do discurso de Mussolini referem-se ao mesmo link
[11] A Anatomia do Fascismo, p. 250
[12] Como Funciona o Fascismo, p. 102
[13] A Anatomia do Fascismo, p. 254
[14] A Anatomia do Fascismo, p. 185
[15] Como Funciona o Fascismo, p. 110
[16] citado em The Nazi Voter, p. 52
[17] Anatomia do Fascismo, p. 136
[18] The Nazi Voter, p. 89
[19] A Anatomia do Fascismo, p. 251
[20] A Anatomia do Fascismo, p. 203
[21] (Anatomia do Fascismo, p. 110–111)
[22] Falange, p. 238; A Anatomia do Fascismo, p. 184
[23] A Anatomia do Fascismo, p. 23
[24] A Anatomia do Fascismo, p. 212; p. 255
[25] https://www.marshallfoundation.org/library/posters/der-fuhrer-hat-immer-recht-the-380/
[26] The Nature of Fascism, p. 109
[27] A Anatomia do Fascismo, p. 245

[28] Como Funciona o Fascismo, p. 43; Explaining Hitler, p. 55
[29] The Authoritarians, p. 77
[30] Explaining Hitler, p. 54, 263
[31] A Anatomia do Fascismo, p. 220
[32] On Gun Registration…, p. 23
[33] A Anatomia do Fascismo, p. 208
[34] https://ejewishphilanthropy.com/a-night-in-november-remembering-the-9th-of-november-1938-kristallnacht/
[35] A Anatomia do Fascismo, p. 198
[36] A Anatomia do Fascismo, p. 196
[37] A Anatomia do Fascismo, p. 200
[38] A Anatomia do Fascismo, p. 255
[39] A Anatomia do Fascismo, p. 199

[40] A Anatomia do Fascismo, p. 201

Fontes e referências

As obras sem comentários foram comentadas na primeira parte.

Em português

Jason Stanley — Como Funciona o Fascismo

Robert Paxton — A Anatomia do Fascismo

Mark Bray — Antifa: O Manual Antifascista

Umberto Eco — O Fascismo Eterno

Em inglês:
As citações em inglês estão aqui em tradução nossa, mas podem ser conferidas na língua original.

Discurso de Mussolini em Udine em 1922: http://bibliotecafascista.blogspot.com/2012/03/speech-at-udine-september-20-1922.html?m=1


Robert Altemeyer — The Authoritarians

Estudo do psicólogo experimental Robert Altemeyer sobre a mentalidade do autoritarismo. As observações de Altemeyer são baseadas nos dados apresentados, mas não são uma palavra final sobre o assunto. O livro é mais uma fonte de indícios e evidências do que uma fonte de conclusões definitivas.

Thomas Childers — The Nazi Voter

História das campanhas eleitorais da Alemanha de 1919 até 1933, quando os nazistas chegaram ao poder. Narra as estratégias de campanha e as ações não só dos nazistas, mas de todos os partidos da época, além de suas relações entre si.


Stanley G. Payne — Falange: A History of Spanish Fascism

Título auto-explicativo: história do falangismo, o fascismo espanhol.


Ron Rosenbaum — Explaining Hitler

Livro onde o jornalista Ron Rosenbaum entrevista diversos autores sobre o nazismo, que tentam “explicar” como Hitler tornou-se o ditador genocida que conhecemos. As visões pessoais de Rosenbaum são questionáveis, mas o valor maior do livro vem de suas entrevistas e dos documentos históricos que reúne.

Henry Picker (ed.) — Hitler’s Table Talk

Coleção das conversas e dos monólogos paranóicos de Hitler em seus jantares. Foi comentado no texto.

Robert Evans — The War on Everyone

Genealogia dos movimentos neofascistas americanos feita pelo jornalista Robert Evans, começando no fim da Segunda Guerra até os dias atuais.

Gilmer W. Blackburn — Education in The Third Reich

Obra do historiador Gilmer Blackburn descrevendo a política nazista na educação escolar, frequentemente citando os próprios livros usados em escolas na época.

Jason Stanley — How Propaganda Works

Livro onde Stanley examina não exclusivamente a propaganda nazista, mas a propaganda usada com fins antidemocráticos em geral, focando especificamente em como a propaganda busca usar a democracia contra ela mesma.

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