Lucas Rubio Ayres
Adeptos & Apaixonados
10 min readDec 22, 2017

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Os cabelos presos são tão escuros como o conjunto adidas, de calça e agasalho. Apressada, Nayara Perone entra com seus 1,68 m na Padaria Palma D´Ouro. Localizada no centro de São Paulo, é longe de sua casa no Jaçanã, mas próxima à agência onde trabalha como webdesigner.

O encontro no estabelecimento servia para resolver questões práticas, como sua falta de tempo entre os vários freelas e a reunião marcada logo depois da entrevista, no mesmo local. A falta de jogos na semana e o fato de curtir ir ao estádio sozinha também eram fatores preponderantes.

Aos 30 anos, de camiseta branca e tênis e mochila pretos, apresentava-se quase inteiramente alvinegra, salvo seus grandes olhos verdes. O balanço de cores consegue não tão acidentalmente mimetizar seu balanço clubístico, corintiana da cabeça aos pés, mas com uma pequena herança familiar palmeirense, mesmo que não reivindicada.

Reconhecida mesmo é a influência do avô, grande responsável por sua “corintianice”. Um cara fanático, apegado a seus juízos e valores, e com tamanha lealdade com a ideia de um time que quando se deu conta que o seu trocou de “identidade”, de Palestra para Palmeiras, respondeu na mesma moeda ao mudar a torcida para o Corinthians. Ok, tinha dez anos na época, mas o fato de assim continuar justificando até suas idades de avô fala muito de suas convicções.

Emílio Perone era convicto também de que futebol se assistia no estádio, e nas gerais. Lá se manteve até literalmente não poder mais. As marcas que carregou da violência das torcidas nos anos noventa foram grandes demais para sua família, que o proibiu de retornar. Também, não é toda casa que leva na boa um pisoteio e a surdez em um dos ouvidos de um de seus mais antigos membros.

Impedido de ir ao Pacaembu, trouxe a cultura de arquibancada para a sala de casa. Adaptou-a, na verdade, à sua única companheira de bola e torcedora alvinegra, em meio ao mar alviverde imponente de sua família. Sim, Nayara.

- Meu vô só me deixava assistir ao jogo com ele se eu acertasse uns 90% das perguntas que ele fazia sobre o time, a escalação, a posição na tabela. Virei uma nerd de futebol por causa dele.

À neta, ensinou as alegrias e responsabilidades do torcedor de futebol, a dedicação de corpo, mente e alma. Do corpo, os gritos ininterruptos, da mente, o conhecimento do jogo e de seus personagens. Da alma, a devoção religiosa ao Corinthians.

No dia 23 de maio de 2012, às 19:30, Nayara saía da mesma agência no centro rumo ao Pacaembu para assistir Corinthians x Vasco, jogo de volta das quartas-de-final da Libertadores. No caminho, pensava que aquele poderia ser tanto o melhor quanto o pior dia de sua vida.

O empate em 0 x 0 na ida tornava o jogo contra o vice do Brasileiro e campeão da Copa de Brasil de 2011, time de Juninho Pernambucano e companhia, deveras tenso. Uma vitória era um passaporte às semifinais; um empate sem gols os levava à temida disputa de pênaltis; qualquer outro resultado significava o fim do sonho da América.

Absorver tudo isso no dia em que Emílio faria 70 anos, seu primeiro aniversário desde que foi ter uma visão do campo bem mais do alto, tornava tudo ainda mais tenso. Os sete segundos que separaram o chute interceptado de Alessandro do chute de Diego Souza, salvo milimetricamente por Cássio, suspenderam a respiração de Nayara, e por apenas um momento, não pensou no Corinthians.

- Eu só pensava que se perdesse, seria o pior dia da minha vida.

O momento de “egoísmo” na torcida, justo no primeiro dia em que estava verdadeiramente sozinha, apesar de desacompanhada há sete anos, foi como uma emancipação de sua identidade torcedora. Sem a sombra dos convictos ensinamentos do avô, adicionou sua subjetividade, sua maneira de torcer.

Em meio à metamorfose de sua racionalidade, porém, a cabeçada de Paulinho. Como se erguido por Seu Emílio, parou no ar igual a Dadá Maravilha e mandou a tensão para os infernos, e todas as novas sinapses de Nayara para lá do morro da Major Natanael, ingrata subida do Pacaembu em direção à Avenida Paulista. A bola ele mandou para o fundo das redes mesmo.

- Depois do gol do Paulinho, eu não vi mais nada, não entendi mais nada.

Na volta para casa, reencontrou sua sanidade ali pela Doutor Arnaldo, avenida-chave para o acesso ao Pacaembu via transporte público. Depois de um dos jogos mais passionais da história do time — e da sua também — encontrou a distância certa do campo para pensar e ser Corinthians. Um pequeno refresco durante os noventa minutos de gritos, uma pequena fuga no pensamento do jogo, e uma devoção agora compartilhada, entre o time e o avô.

O auge da simbiose entre torcedora e time seria dois anos mais tarde, no amistoso entre Corinthians e Corinthians Casuals (time inglês, inspiração do time paulista, hoje na oitava divisão inglesa), jogo-ode à história e identidade do clube, inalterada desde sua origem, bem aos gostos de Seu Emílio.

- Ver o time que deu origem ao nosso em campo, e o caras totalmente vislumbrados, foi um dos dias mais legais de estádio. Fora que né, Corinthians contra Corinthians.

Pertencer à história do clube, se sentir parte dela, é um dos grandes prazeres do ser torcedor. E ver essa história ser sistematicamente descolada daqueles que a viveram e presenciaram, aqueles que a mantém, uma agonia sem fim.

Apenas três meses depois, o Timão estreava sua nova Arena, contra o Figueirense, pelo Campeonato Brasileiro. O sonho da casa própria, um estádio moderno, antenado às tendências mundiais, futuro palco da estreia da Seleção Brasileira na “Copa das Copas” e ainda por cima localizada em Itaquera, um dos maiores centros corintianos do País, tornava-se realidade, e mostrava um futuro brilhante à frente.

O gol de Giovanni Augusto, do Figueira, o único do jogo, foi como um aviso, que Nayara entendeu.

- A Arena Corinthians é o caixão do futebol.

Talvez referindo-se à arquitetura, que conhece em detalhes depois de três anos frequentando-a regularmente — sempre que possível, na verdade — mas com certeza falando de seu efeito na torcida e na equipe, Nayara é uma das maiores críticas da Arena.

Para uma pessoa criada sob os valores das gerais, emancipada nos acessíveis concretos das arquibancadas amarelas do Pacaembu, o projeto elitista de estádio (Arena, perdão), justo na Zona Leste, é motivo de raiva, e origem de uma enorme rejeição.

- Eu odeio a Arena Corinthians. Nunca vai chegar aos pés do jogo mais tonto do Pacaembu.

Antes fosse somente um ranço pelo modelo moderno, seus preços pouco acessíveis e incoerentes com o lugar e a identidade histórica da massa corintiana, e a consequente lenta e torturante mudança de perfil que tem ocasionado.

O que a machuca é ter um estádio que não pulsa como deveria, com uma “geral” sufocada pelos setores caro e mais caro ainda (Leste e Oeste), com uma separação física tão demarcada que impede qualquer manifestação generalizada do lugar, que não pressiona como deveria, que não dá medo como deveria, não reage como deveria. Não como seu avô ensinou que deveria.

- Se o time toma dois gols, aquela torcida não tem capacidade de carregar o time para um 3 x 2.

Realmente, a Arena coleciona algumas eliminações em seu pouco tempo de vida, como para o Palmeiras no Paulista, Guarani-PAR e Nacional-URU na Libertadores e Santos, na Copa do Brasil. Mas há também momentos memoráveis, como a recente vitória contra o Palmeiras por um a zero, gol de Jô; a recente goleada por seis a um no São Paulo, logo após o hexa do Brasileirão; e como não falar do título Paulista deste ano, o primeiro da Arena, quarenta anos depois do fatídico título de 77, contra a mesma Ponte Preta.

- Foi realmente especial. Eu não era viva em 1977, mas eu estava na final deste ano, e consigo sentir tudo o que representou há quarenta anos.

Para ela, o espírito que entrou na Arena na final do Paulista, que vaga pela torcida desde 1977, é o que é capaz de unir um estádio tão segmentado, tão marcado pelas classes, tão desesperado por uma alma.

- É o que consegue unir todo mundo, esse apoio ao time quando ele está mal.

Se este “pacto” da torcida em meio a “luta de classes” da Arena é um alento, o momento recente do segundo turno no Brasileiro já a deixa preocupada. Apesar de ser líder com folga, depois de fazer o melhor turno da história da competição, já não há o mesmo brilho nos olhos, a mesma garra, a mesma gana que no primeiro semestre, que foi capaz de criar uma ponte (sem trocadilho) com o time de Wladimir, Zé Maria e Basílio.

O momento é um lembrete que o processo de alteração da identidade corintiana continua de vento em popa. Mas, dessa vez, não é somente o processo elitista pelo qual o clube e o futebol brasileiro atravessam. Ocorre em Nayara também um processo modificador. Liberta-se mais e mais de um assunto que há anos abafa, dado as dificuldades de pesar na balança a racionalidade e a emoção: ser mulher no mundo do futebol.

Certo dia, Nayara foi a Barueri para assistir a um jogo do Audax/Corinthians, o feminino. Nada de novo. Se a paixão não bastasse, a colaboração com “dibradoras”, um site de futebol “por e para mulheres” do qual é cofundadora, lhe colocara bem próxima ao esporte das minas.

Naquele dia, viu na torcida uma menina toda uniformizada, das chuteiras ao arco nos cabelos, de Audax/Corinthians, o feminino. A visão lhe rendeu uma visão um pouco mais otimista da questão da representatividade feminina no futebol.

- Foi muito legal ver a menina se espelhando numa jogadora, querendo ser ela. Geralmente, você cresce jogando bola e querendo ser o jogador, é uma coisa complexa.

Nos espectros restantes do segmento, não há muito espaço para sorrisos. Na CBF, o caso da demissão da treinadora Emily Lima, após dez meses no cargo, escancarou a antes silenciosa crise do futebol feminino na instituição. Os subsequentes abandonos da seleção por diversas atletas, como a artilheira Cristiane, falam por si só. Nos clubes, o desinteresse.

- Falta boa vontade dos clubes em geral. São poucas camisas pesadas com times femininos, que só vão fazer times femininos pela regulamentação do ProFut.

Na mídia, além da rasa cobertura, com um pequeno leque de pautas e de transmissões, o machismo nas redações e estúdios. Nayara relata a recusa de um repórter da SporTV em noticiar o futebol das mulheres. “Não falo disso aí”, ele teria dito. O nome ela não fala porque tomar “processinho” com o País desse jeito ninguém merece.

Tudo isso, claro, não passa de uma reprodução do dia a dia da sociedade, que teima em manter um pensamento arcaico e de uma época antiga, de um povo que nem chutar bola era capaz.

Mas, ainda que as mulheres enfrentem a má-fé da CBF, a má-vontade dos clubes e o machismo da mídia, resistem, e por hora trazem objetivamente o debate ao meio esportivo, e subjetivamente uma mudança no paradigma das torcedoras, pelo menos como foi para Nayara.

- O futebol feminino traz ao Corinthians certas coisas que o masculino jamais vai conseguir trazer. Primeiro que há muitas jogadoras que são também torcedoras do time, do tipo que vibra e chora com o jogo delas e dos homens. As meninas são mais próximas da torcida, vão na arquibancada para comemorar ou se lamentar depois dos jogos.

Depois de torcer, vibrar e sofrer com as mulheres, passou a ver o jogo dos homens com outros olhos, ainda que continuem apaixonados. A relação entre a entrega das jogadoras e as condições em que jogam, num paralelo com o desempenho e os luxos dos jogadores, a deixaram um tanto mais ácida.

- Se você ganha 300 mil e não dá um carrinho, não acerta um cruzamento, tem que, sei lá, queimar o seu carro.

Mais do que cornetar (e ameaçar) marmanjos milionários e mimados, o distanciamento crítico do futebol masculino lhe rendeu uma aproximação afetiva maior com a instituição, uma noção maior de Corinthians. Tanta é sua consciência e clareza das ações de jogadores, de comissão técnica, da diretoria, do clube, tanto é seu entendimento de Corinthians, que foi convidada a escrever sobre ele.

Num ano, são mais ou menos trinta jogos em que o Sport Club Corinthians Paulista atua como mandante. Numa média, Nayara comparece a 27, 28. Desde 2009 é sócia-torcedora do clube, aderindo ao “Fiel Torcedor” logo que o programa foi lançado. Sabe de cabeça detalhes e preços de cada setor da Arena Corinthians, e sua equivalência no Pacaembu. Uma pessoa verdadeiramente dedicada à arquibancada.

Também, desde pequena lhe era contada suas maravilhas, ao mesmo tempo em que lhe era negada a experiência. A primeira vez no estádio foi somente aos 14 anos. Não bastasse a maioria palmeirense na família, o exemplo negativo do vô, ainda tinha de enfrentar os impedimentos de gênero.

Em 2001 pode ir ao Pacaembu graças ao marido corintiano da tia. Continuou indo esporadicamente até 2005. Com 18 anos e já alguns freelas de webdesign nos contatos, arrebentou com as amarras e passou a frequentar regularmente as amarelas do Paulo Machado de Carvalho, sozinha.

Entre alguns perrengues que lhe fizeram enxergar a posição contrária da família e outras muitas ótimas experiências que lhe davam a razão, foi se acostumando a fazer as coisas de seu jeito. Gosta mesmo é de ir ao estádio sozinha, de pensar criticamente o futebol, mas vivê-lo de forma irracional e passional. Não gosta da mídia esportiva “obsoleta, que têm que acabar e renascer”, que é “a maior inimiga do Corinthians” e que é “viciada”. Não gosta de ler a opinião dos outros, prefere emitir a sua própria.

Sua conta no Twitter, dedicada quase inteiramente à futebol e devotada ao Corinthians, tem quase seis mil seguidores. Sua relativa popularidade no microblog, somado ao bom trabalho no dibradoras lhe renderam um convite para manter um blog no ESPN FC, o “Corintiá”.

Ainda que no domínio de um dos grandes veículos esportivos que são alvo de sua fúria, o espaço digital tem um viés alternativo, um tanto independente editorialmente, clubístico até. E de mídias alternativas Nayara Perone entende.

São elas as grandes fontes para se informar sobre o time e principalmente sobre o futebol em geral. Além do eterno desgosto com a mídia esportiva tradicional, tem apreço pelas pautas incomuns, e uma crença de serem certas para uma torcedora incomum como ela.

O torcedor comum, “que assiste mais para zoar seus adversários” que fique com seus “Globo Esportes” e “jogos abertos”. Ela continua do jeito dela, séria, alternativa, crítica. E completamente apaixonada pelo Corinthians.

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