Lucas Rubio Ayres
Adeptos & Apaixonados
10 min readDec 22, 2017

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(Ilustração: Lucas Ayres)

Se rir fosse um exercício, estar com Larissa Nigro seria uma academia. O bom timing cômico e o irremediável costume de completar suas falas com gracinhas de todo o tipo formam todo um “jeitão” engraçado e um eterno sorriso no rosto dos que a encontram.

Na profundidade de seus grandes olhos castanhos, na fala mansa, apesar da voz estridente , na postura que flutua entre o desleixo e a acomodação, além das já ditas brincadeiras, Larissa consegue falar dos mais espinhosos assuntos, das contradições do dinheiro no futebol a suas discriminações, e mesmo assim passar a impressão que tudo está bem, inclusive seu atraso de mais de hora no local da entrevista.

Antes de tudo, porém, Larissa é são-paulina. Não sabe se dizer por gente sem o São Paulo Futebol Clube para torcer. Rata de estádio, consumidora voraz de transmissões esportivas mas sem muito apego a nomes e datas, combina a alma tricolor com seu inerente bom humor num tipo específico de torcedora.

- Eu sou uma torcedora festiva. Quando é dia, acordo pensando ‘ai que legal, tem jogo’ — ela se define, enquanto agita os braços e afina a voz como uma menininha.

Mas vê-la no estádio ou durante as transmissões de quarta e domingos, é testemunhar uma personalidade diametralmente oposta à menina que insinua parecer. Vale lembrar que tem 29 anos de idade.

- Eu grito muito, xingo muito. Minha mãe quando vê fica até assustada.

Dona Maria do Carmo teve Larissa em 1988, depois de ter colocado no mundo Leandro e Luciana. Ela não criou a caçula para ser necessariamente uma princesa, mas também não esperava uma enciclopédia de palavrões e uma fanática por futebol, do tipo agressivo, que joga coisas na parede e no chão. Bancos, cadeiras, controle de televisão, nada escapa da fúria de sua filha durante o jogo do São Paulo. O alvo mais recente foi um celular.

- É que, mano, eu odeio muito o Dênis — ela dispara, em caixa alta e espaçada.

O ano era 2016, o jogo era da primeira fase da Libertadores, e a falha foi do substituto de Rogério Ceni contra o The Strongest. Nem a altitude de 3600 metros de La Paz aliviou a raiva de Larissa, que arremessou o Samsung Galaxy S6 à uns duzentos quilômetros por hora e a um metro e setenta do chão. A sorte foi que o jogo terminou em 1 x 1.

A agressividade física — mas na maioria das vezes só verbal mesmo — nos dias de jogo contrasta com o que beira o desinteresse nos outros dias chatos da semana. Larissa não é de entrar em portais para descobrir escalações ou fazer discussões clubísticas nas redes. Nunca teve vontade de conhecer o CT da Barra Funda, programa que “trocaria por um hambúrguer”, se pudesse.

- Eu não sou aquele tipo de pessoa que deixa de fazer coisas para ver jogo.

Nos dias de ação do tricolor paulista ocorre a sua transformação. Logo cedo, o grupo no Whatsapp com as amigas Di, Thams e Fer, todas sãopauliníssimas, vibra e apita em referência à partida de mais tarde. Do pré ao pós jogo, trocam informações, soam cornetas, listam xingamentos. É ali que se mantém atualizada com o time do coração. O contato veio por mediação da namorada, corintiana fanática.

- Eu só namorei corintiana, e desde então o São Paulo só decaiu. Teve um dia que eu parei, pensei e comecei a chorar, falando para ela que a gente nunca mais ia ganhar nada, que íamos ficar que nem o time dela por minha culpa.

Fora as meninas do zap, não tem mais amigas e amigos boleiros, salvo o amigo Caio, da faculdade, o que talvez explique o relaxamento da torcedora nos dias vazios do calendário futebolístico.

Outra teoria que pode explicar a aparente incompatibilidade entre sua paixão pelo esporte, devoção ao time e indiferença ao seu dia a dia, é a de que conserva algumas de suas maneiras de criança. Afinal, não é estranho ao filho caçula manter uma leveza da infância, em contraponto ao amadurecimento dos irmãos mais velhos.

Quando ainda pequena, mas já são-paulina, Larissa era uma típica menina de rua, de molecada do bairro, dedão topado no asfalto e toque de recolher junto ao pôr do sol. São Paulo era a cidade e o tricolor só existia às quartas e domingos na televisão.

Tudo mudou quando sua irmã “que não era porra nenhuma” decidiu levá-la ao Morumbi. Saiu da escola, que ficava à poucos metros do estádio, e foi assistir a um dos jogos da campanha tricampeã da Libertadores em 2005. O jogo, não tem jeito, ela não lembra. Podia ser contra a Universidad do Chile, Quilmes ou o mesmo The Strongest, adversários da fase de grupos. O que lembra é de estar no setor azul e que uma amiga corintiana foi junto.

- Ela ficou mais no alto, mais quieta. Eu fiquei no meio da muvuca, toda ‘eeee, sou são-paulinaa’ — lembra, imitando novamente a menina que certamente não era, aos dezessete anos.

É preciso fazer uma pequena explicação. Aos 17, Larissa não era a mesma moleca de rua de quando tinha seus sete, oito anos de idade. Ali pelos 10, uma “mudança socioeconômica” mudou-a de casa, de amigos, de postura, de gostos. Ainda, claro, longe de ser a lady que Maria do Carmo de fato nunca quis, mas também não reclamaria se fosse.

A nova rotina na nova realidade se baseava em “escola, The Sims, e tevê.” Mais reclusa, teve a incrível (e improvável) marca de assistir todos os seriados dos anos noventa. No fim das contas, o consumo exorbitante do modelo norte americano de televisão lhe aproximou do mais brasileiro dos produtos.

- Gosto de futebol porque tem esse quê de mistério. Não é que nem um filme ou uma série que você saca o roteiro e já sabe o final.

Por esse e por outros motivos, como a oportunidade de gritar e xingar — aparentemente duas grandes paixões — Larissa se afeiçoou pelo esporte tanto quanto pelo São Paulo. Assiste tanto as partidas do tricolor quanto qualquer outra que esteja passando.

Os pais certamente não ajudaram. Somente com dezesseis anos foi descobrir que o pai era corintiano. Larissa descreve o pai como um sujeito quieto, as vezes desligado. E irmão mais novo de outros sete. Os quatro mais velhos torciam para o Corinthians enquanto os mais novos torciam para o São Paulo. Ou pelo menos era isso que a família pensava.

Talvez por ter dito uma vez quando era pequeno, imitando os irmãos, ou por aparecer em alguma foto na casa de alguma tia com a camisa do são paulo, todos pensavam que ele era são-paulino. O fato é que o quieto Pascoal não falou mais sobre isso. Mas ao invés da sempre suposta torcida para o tricolor, era corintiano, igual a todos seus irmãos mais velhos.

- Pera, quê? — indagou a mãe, chocada com a descoberta depois de vinte e sete anos de casamento.

- Ah é, esqueci de falar, sou corintiano — respondeu o pai, nem aí.

- Que aleatório — pensou alto a filha

Não que mudasse alguma coisa. A revelação pouco alterou a dinâmica da casa, em que a filha assistia ao jogo, a mãe lamentava os seus xingamentos e o pai, bom, o pai não ligava muito mesmo.

O que realmente alterou as coisas foi a ausência de Seu Pascoal, que foi para um lugar onde pouco importa se é corintiano ou são-paulino, e na verdade, nem é preciso se importar com qualquer coisa. Larissa então passou a assistir aos jogos junto da mãe, que mais aproveitava a sua companhia do que sofria com o seu palavreado chulo.

- Eu adoro ir ao estádio com a minha mãe porque ela é ainda mais escandalosa do que eu. Grita mais, chora mais, só não xinga. Quando um jogador erra, ela fala ‘tadiiinho’ — relata, às risadas, a filha.

Larissa descobriu na mãe e em Rafael ótimas companhias para os jogos. O encontro com as amigas do Whatsapp no Morumbi é difícil, e ela não quer, não gosta e nunca foi sozinha ao estádio.

Mais do que uma opção ou um gosto, é uma realidade de sua condição. Primeiro porque entende a arquibancada como um lugar de sociabilidade, amizade, parceria. Segundo, por ser mulher.

- Logo na primeira vez que fui ao Morumbi com o meu irmão, na entrada do setor azul, um mano passou a mão na minha bunda. Aí eu vi que talvez o estádio fosse um lugar hostil.

Mulher e homossexual, Larissa sofre uma dupla discriminação na arquibancada. Além das desventuras de gênero, não é fácil engolir a eterna homofobia, como os gritos de “bicha!”, entre outras manifestações. Nesse caso, a companhia é útil para impedi-la de criar maiores confusões.

Certa vez, no São Paulo x Atlético-MG, pela fase de grupos da Libertadores de 2013, teve de ser contida pelo irmão após um cara qualquer tentar fazê-la de plateia para um piada sobre o meia Richarlyson, jogador tricampeão brasileiro pelo clube paulista e com um extenso histórico de ofensas por sua suposta homossexualidade. Por trás da raiva, no entanto, a desilusão.

- É uma coisa que me incomoda muito, machuca muito, porque eu não sei quando e se vai mudar.

A postura derrotista não é devido apenas a seu indesejado conhecimento de causa, mas também por um saber teórico, vindo do curso de Ciências Sociais na Unicamp. Apesar de hoje não seguir a carreira, segue com os estudos frescos na cabeça, e percebe muito bem os reflexos da sociedade no “micromundo” do esporte.

- É muito difícil dissociar qualquer coisa que fazemos, produzimos ou assistimos com o que ocorre ao redor de nossas vidas, em nossa sociedade.

Quando no “ao redor” se vê cada vez mais ódio, em meio a uma onda agitada, confusa, que parece cada vez mais com o próprio mar, é realmente difícil de não demonstrar uma atitude pessimista. Mesmo assim, é difícil abalar o jeitão de Larissa, que consegue encontrar uma combatividade bem humorada em meio a tanta desilusão.

- Eu falo que sou bambi mesmo, que vou no Panetone, que sou sapatão sim. Não sei se é o certo, mas é o que eu faço.

A aceitação com esse jeito de ver o mundo, de encarar a vida, é um tanto recente. Por vezes, a molecagem lhe parecia uma prisão, uma fonte de dúvidas.

Pode ser que tenha sido esse um dos motivos pelo qual decidiu abandonar o Morumbi, período convicto de sua vida que durou mais de um ano. O hiato, todavia, parece mais relacionado a coisas do coração.

- As coisas vão acontecendo na vida de tal forma que você se apega a certos lugares, e às vezes deve deixá-lo. Então falei ‘não vou mais ao estádio’. Me remetia a muitas coisas que eu não conseguia lidar na época. Passei 2014 inteiro sem ir. Simplesmente não vi nada.

Foi dura a ausência do Morumbi. De repente, se viu sem um dos laços mais fortes com quem era, ou com quem desejava ser. Brincar na rua não dava mais, tampouco queria voltar a assistir seriados, se é que restou algum para assistir.

Um ano depois, entretanto, renovada e de coração remendado, estava pronta para encarar as mazelas e as memórias do estádio. Não pensou duas vezes: acionou a mãe, comprou o primeiro ingresso disponível na internet e foi. Sentou no incomum (e caro) setor das cadeiras e absorveu o retorno.

- É, tô em casa.

Neste dia, o São Paulo colaborou, e goleou o Danúbio por quatro a zero, pela Libertadores de 2015. Já nessa época, o torcedor são-paulino entortava a cara para o momento do time.

Nos dois anos que se passaram do seu regresso ao Morumbi, o São Paulo avançou na má fase. Em 2017, passou quase todo o ano no calvário da luta contra o descenso. No pior desempenho de sua história do Brasileirão de pontos corridos, entre crises futebolísticas, administrativas e financeiras, o clube passa por uma crise também de identidade.

O “diferenciado” repete neste ano os mesmos erros crassos que costumam marcar as campanhas rebaixadas. Desmanche do elenco, crise política infinita, brigas de egos inflamados e decisões amadoras, todos já foram riscados na lista de tarefas da degola. Um afronte para quem se intitula “soberano”, com pessoas dentro do clube que continuam empinando o nariz, mesmo com a água no pescoço.

- É essa atitude que mata o time, e que vem tomando há anos, que passa uma falsa imagem de que está tudo bem, mas agora essa máscara caiu. E eu nem gosto dessa palavra, ‘soberano’, não me identifico. É claro que tenho orgulho pra cacete do meu time, sabe? Vai se foder, olha toda essa merda que a gente conquistou, mas não porque somos soberanos. Isso traz uma carga meio classista, na real.

A volta de Larissa à arquibancada veio sob outros termos. O momento do clube atiçou um lado mais corneteiro, mas também trouxe análises mais profundas sobre a equipe, a torcida e seu lugar nisso tudo.

- Eu sempre cresci com essa ideia de que o São Paulo é um time de elite, uma imagem formada numa junção do motivo de sua criação e as histórias que foi acumulando em sua trajetória.

Time de elite, soberano, diferenciado, Larissa não se sente representada com esse retrato cultuado por parte da torcida, a quem compete parte integrante do todo de um clube. Sendo assim, com quem se identifica?

Ela só sabe com quem não fecha, e está tudo bem. Numa abordagem antropológica da coisa, da identidade por oposição, da qual do alto de seu bacharel conhece bem, e concorda, deixa os opostos conferirem a ela o status de ser.

Sabe que não é soberana, nem elitista; que não sabe absolutamente tudo do time; que não deixa de fazer suas coisas para assistir aos jogos; que não vai ao estádio sozinha; que não é daquelas torcedoras que só ligam para a Libertadores; que não é daquelas que ligam para jogadores…

- Não personaliza sua relação com o time?

- Não.

- Só odeia forte os jogadores.

- EU ODEIO MUITO FORTE OS JOGADORES!

Muito amor de Larissa por essa imagem (Foto: São Paulo Futebol Clube/Reprodução)

Dênis, Jádson, Wesley (de quem hoje tem mais dó do que ódio), Michel Bastos, a lista de desafetos é extensa. É uma corneteira, como se define. Se define também como festiva, como escandalosa, que gosta do imponderável… e não é que dá certo?

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