Lucas Rubio Ayres
Adeptos & Apaixonados
11 min readDec 23, 2017

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(Ilustração: Lucas Ayres)

André Carlos Zorzi é um rapaz inquieto. A curiosidade jornalística e a desconfiança lusitana lhe caem bem. O autor de “Para Nós És Sempre O Time Campeão”, livro-reportagem publicado de maneira independente em julho deste ano, sobre a Portuguesa vice-campeã do Campeonato Brasileiro de 1996, tem 23 anos e apenas oito deles como torcedor da Lusa.

O curto tempo de torcida rende uma invejável memória detalhista sobre os números, fatos e dados da Portuguesa na última década, e as pesquisas para o livro deixaram os confrontos de anos anteriores meticulosamente mapeados na cabeça.

Não é um vira-casaca, pois antes não torcia para ninguém. Mal conhecia ou sequer dava alguma importância ao futebol até 11 anos atrás. Quando criança, acreditava que o Corinthians jogava a Copa do Mundo e que o São Caetano tinha a grandeza do Santos, em decorrência do protagonismo do time do ABC no início dos anos 2000, vice-campeão brasileiro e da América, enquanto até 2002 a equipe praiana amargava dezoito anos sem títulos.

No dia em que o Brasil conquistou o penta, em 2002, a mãe o colocou à frente da televisão juntamente do resto da família. Todos sofreram, riram e choraram com os dois gols de Ronaldo no temido goleiro alemão Oliver Kahn — menos André, que deu mais atenção à pequena corneta de plástico verde e amarela que deram para a sua mão.

O que faltava de interesse em futebol ao pequeno paulistano sobrava em geografia, em especial sua parte mais curiosa, como países distantes, bandeiras alternativas e os significados de suas cores e símbolos. Por isso que resolveu assistir à Copa de 2006, na Alemanha, atrás da infinidade de nações, flâmulas e outras informações culturais e geográficas que costumam vir à tona na época da competição.

Nenhuma seleção o cativou mais do que a do Togo. Talvez por ser estreante no torneio, talvez pelo craque da equipe, o carismático atacante Adebayor, recém-contratado pelo Arsenal e primeiro togolês a jogar na Inglaterra, ou pela polêmica ameaça de abandono antes da partida contra a França, a última da fase de grupos.

O primeiro e único gol de Togo em Copas do Mundo, por Mohammed Kader

O fato é que a participação do país da costa oeste africana (três derrotas, um gol marcado e seis sofridos), de algum jeito, fez com que André se aproximasse do futebol e, principalmente, da sua torcida. A magia da Copa do Mundo fez o resto. De repente, aos doze anos, o garoto diferente, que gostava de mapas e de saber a densidade demográfica dos países do leste asiático, era mais um moleque apaixonado pelo esporte mais popular do planeta. Mas sem um clube do coração.

- Comecei a gostar de futebol sem time para torcer, só depois eu fui atrás de um. Eu passei a me interessar por seleções, a assistir jogos do Brasil e aí sim, o futebol brasileiro.

Nos anos seguintes, entre o selecionado togolês e as equipes nacionais, foi buscando um time para chamar de seu. Tentou o São Paulo, que empilhava títulos nacionais: nada. Tentou o Palmeiras, campeão Paulista: nada. Santos, São Caetano, nenhum o fazia sentir o que ele achava que um torcedor deveria sentir. Até assistir a Portuguesa.

Entre as centenas de usuários da estação de metrô da Barra Funda, de diversos tamanhos, formatos, cores e valores, surge a figura de André Carlos, um homem gordo, de pele clara e estatura mediana. Usava uma camisa azul clara com finas listras azul-marinho quando me encontrou. Tinha calça social preta e sapatos também pretos, de bico quadrado, embora suas bordas puxassem para o marrom, devido ao uso frequente.

O visual, combinado com a calvície avançada na parte de cima da cabeça, a barba cheia, comprida em uns quatro centímetros mais os óculos de armação fina colocavam pelo menos sete anos a mais na sua aparência.

O traje é o favorito para o trabalho no prédio da Avenida Professor Celestino Bourroul, sede do jornal O Estado de S. Paulo, no bairro do Limão. André é jornalista da seção de personalidades, para não chamar de fofoca. Entra de manhã e sai às 20h, pega o ônibus Jardim Paulistano e desce na Barra Funda, de onde segue viagem até a estação de trem da Vila Olímpia. Nos dias de jogo, porém, vai direto para a estação Portuguesa-Tietê, da qual faz uma caminhada de 20 minutos em direção ao estádio Doutor Oswaldo de Teixeira Duarte, o popular Canindé.

- Nesses anos, se teve cinquenta torcedores da Portuguesa que foram em mais jogos do que eu, é muito. No Canindé, em oito anos, devo ter perdido seis ou sete partidas.

André e Canindé são quase a mesma coisa. (Foto: Lucas Ayres)

Em oito anos, foi ao Canindé aproximadamente 180 vezes, o que dá uma média de um jogo a cada dezesseis dias. As partidas da Lusa são seu ponto alto do dia, da semana, do mês. Só as perde se estiver fora de São Paulo ou por algum compromisso extremamente importante, como um casamento, enterro ou outro evento dessa magnitude. Não faltam oportunidades em que foi a contragosto de familiares, paqueras ou médicos.

- Na minha cabeça, se eu não estiver baleado no hospital, eu tenho que ir ao jogo. Os pesadelos que eu tenho no meu sono, eu juro, são que tem jogo e eu esqueço ou não posso ir.

Essa paixão intensa pela arquibancada, esse hábito que beira o vício, começou no dia três de novembro de 2009, quando tinha quinze anos e a mãe o levou para assistir Portuguesa e ABC de Natal. O placar foi favorável ao time da casa: dois a um.

- Foi minha primeira vez no estádio (do Canindé), foi sensacional. Já tinha ido ao Morumbi, ao Parque Antártica , mas nenhum conseguiu se comparar ao que senti no Canindé.

Se naquele dia conectou-se ao estádio da zona centro-norte de São Paulo, já havia se ligado ao clube que lá se instala algumas semanas antes. O dia era dezessete de outubro, o jogo era contra o Atlético Goianiense, em Goiânia, pela Série B.

- Era um fim de semana e o jogo tinha transmissão da Rede TV. Eu já tinha uma simpatia pelas cores, pela bandeira da Lusa, mas naquele dia eu me senti torcedor como nunca tinha sentido antes. Tive a mesma sensação de quando assisti à seleção de Togo.

Naquele dia, a Portuguesa superou o time goiano por um a zero, assim como dali um tempo superaria o Togo no coração de André. Não seria apenas uma curiosidade ou cumprimento de uma demanda social e cultural, de que é necessário torcer por um time. Era paixão, uma conexão, algo tão forte que precisou ser extravasado nas páginas de um livro.

Tempos depois, André lançava “Para Nós És Sempre O Time Campeão”. Não há esse dado, mas provavelmente tornou-se o torcedor com menos tempo de clube a publicar uma obra em sua homenagem.

O trabalho de André em mais de 500 páginas. (Foto: André Carlos/Divulgação)

Na temporada de 1996, a Portuguesa de Desportos disputou 59 partidas, marcou 93 gols e sofreu 64. Todos estão relatados no livro de André Carlos, que cobre a equipe que foi terceira colocada no Campeonato Paulista e vice- campeã do Campeonato Brasileiro, o melhor desempenho da história do time na competição nacional.

Durante quatro meses, André entrevistou dezenove dos vinte e cinco jogadores que compuseram o elenco principal da Lusa naquela temporada, além de diversos jornalistas e atletas adversários. Analisou fichas de jogo, matérias de jornais e revistas, assistiu videotapes. Organizou tudo isso em 564 páginas.

Recheado de informações de bastidores, de relatos emocionados e emocionantes e de uma louvável precisão histórica, a obra resgata em suas folhas parte da glória de um dos clubes mais tradicionais do país, antes de ser soterrada pelos recentes e numerosos fracassos. É um afago na torcida, machucada pela triste realidade do clube.

Mas, na época em que o livro era finalizado, a Portuguesa atingia um recorde negativo, caindo para a Série D do Brasileirão, um duro golpe em todos os lusitanos, em especial em André, que foi arrancado abruptamente de sua imersão nas glórias passadas.

- No começo, fazer o livro tinha um ar de resistência, como se eu falasse “o clube está acabando e não podemos deixar isso acontecer”. Mas depois isso acabou ficando em segundo plano em relação a essa história de se decepcionar com o time.

Àquela altura, a decepção com a Portuguesa, por incrível que pareça, era novidade para o jovem jornalista. Afinal, começou a torcer para o time rubro-verde ao final de uma Série B de Campeonato Brasileiro em que não conquistou o acesso, em 2009.

Fora que se acostumou com o patamar mais baixo. Viu a Lusa na elite do futebol brasileiro por somente dois anos, e teve como maior momento a conquista da segunda divisão nacional em 2011, a temporada em que os treinados pelo técnico Jorginho ganharam a alcunha de “Barcelusa”, devido ao jogo bonito e ofensivo.

- Eu não sinto tanto o clube perder a pompa de elite, porque eu já peguei na segunda divisão, e já são 15 anos nesse sobe-e-desce.

Também não teve a influência de pais, familiares ou outros torcedores mais antigos, que poderiam fazê-lo ver a Portuguesa sob uma ótica mais tradicionalista, saudosista até. Pelo contrário, criou um certo distanciamento crítico do calvário lusitano.

André é ponderado quanto ao momento da Lusa. (Foto: Lucas Ayres)

- Para muitos, é inadmissível a Portuguesa não brigar lá em cima. Mas o tempo passou, os campeonatos mudaram. Se antes eles tinham 40 times, a Lusa com certeza estava no meio. Agora, com 20, há mais times que merecem estar na elite do que vagas. Se falar que temos lugar cativo, então Bahia, Vitória, Sport, Atlético Paranaense o Coritiba também merecem, e aí já deu o número de vagas.

André entende que é esse pensamento, essa visão conservadora que atrapalha uma possível retomada da equipe. Ele, ao contrário, se vê mais “lúcido”, por ter raízes mais curtas que o torcedor comum.

- Generalizando, há nos torcedores e dirigentes uma crença de que a Portuguesa vai subir com a camisa, mas não é assim. Acham um absurdo os outros times de orçamento de cinquenta mil reais subirem e a gente não, mas têm que saber o que fazer com esses cinquenta mil. Precisamos reconhecer nosso apequenamento para podermos depois voltar a crescer.

O olhar sereno de quem sabe seu lugar na torcida. (Foto: Lucas Ayres)

Apesar da maneira distinta de enxergar a Portuguesa, André não se sente diferente. Sente-se parte do clube, da família da arquibancada do Canindé. Ainda assim, reconhece a trajetória incomum na torcida, apesar de não ver nenhum demérito. Tem uma visão bastante liberal do que é ser um torcedor da Portuguesa. Não vê mal em simpatizantes — ao contrário da ala mais tradicionalista –, não acha que os filhos devem ser coagidos a torcer para o time dos pais.

No entanto, parece correr atrás do tempo perdido. Tenta compensar as histórias que não ouviu quando era criança pelas novas que o próximo jogo no Canindé tem para contar; os relatos das jogadas dos craques com as entrevistas com os próprios; viver os momentos de glória com um livro sobre eles.

- Antes de fazer o livro, eu via os campeonatos clássicos e me perguntava o que os circundava, o que acontecia ao seu redor — o que falavam os jornais, os rivais, os torcedores. Eu queria “reviver”, sentir o campeonato de 1996. Quero fazer o mesmo com o paulista de 1973, também.

André em seu lugar favorito. (Foto: Lucas Ayres)

Eram 697 os torcedores que foram ao Canindé assistir ao embate entre Portuguesa e XV de Piracicaba nos dia dois de outubro, válido pela 3ª rodada da segunda fase da Copa Paulista, competição da Federação Paulista que dá ao vencedor a escolha entre uma vaga na Copa do Brasil e uma na quarta divisão do Campeonato Brasileiro.

Para a Lusa o torneio valia a sobrevivência futebolística nos certames nacionais em 2018, já que fora eliminada da Série D em junho. A torcida, porém, não parecia lá muito empolgada, vide o público, espaçadamente espalhado pelas gerais, no lado do estádio mais próximo da Marginal Tietê. Havia uma maior concentração atrás do gol sul, conhecido como “Gol do Caldo Verde”, defendido pelo time da casa, e na ponta direita do ataque lusitano, próximo à marca de escanteio. Era ali que estava sentado André Carlos, rente à linha de fundo.

Tinha aparado três centímetros da barba e trocado a camisa social por uma polo da Portuguesa, toda vermelha com uma larga faixa branca e uma fina faixa verde nas mangas. Usava a mesma calça do outro encontro e parecia ter dado um trato nas bordas marrons dos sapatos.

O brilho nos olhos que apresentava ao adentrar no Oswaldo Teixeira Duarte cessou logo aos onze minutos de jogo, quando o meia Bruninho pegou o rebote de um escanteio batido pela esquerda e chutou no canto para abrir o placar para os visitantes piracicabanos. Mesmo assim, tentou manter o bom humor, trocando piadas e provocações com o amigo Mário, que apesar de não torcer para a Portuguesa, o acompanhava naquela noite.

As graças mostravam costume com o revés, mas na página dois pareciam tentar esconder a frustração de um torcedor que, apesar de realista com a situação do clube, se diz um otimista quanto ao futebol da equipe.

Outra situação que aparentava ser uma autodefesa contra as decepções lusitanas era seu declarado desconhecimento do elenco — salvo o veteraníssimo Marcelinho Paraíba e o atacante Guilherme Queiroz –, que contrastava com a total noção da classificação do grupo da Portuguesa, capaz de enumerar pontos, saldo de gols, vitórias e resultados dos adversários.

Encerrado o primeiro tempo, migrou com parte da torcida para o gol que passaria a ser atacado pela Lusa. Apesar de estar junto da “Leões da Fabulosa”, ilustre torcida organizada, manteve a mesma postura blasé, variando apenas as piadas. Até ensaiou encostar no alambrado, tornou a sentar-se e remoer-se secretamente pelo resultado.

Mas, aos 25 minutos, transformou-se. O goleiro do XV, Mateus Pasinato, perdeu a bola para Guilherme Queiroz quase na intermediária. O atacante chutou no ato, e, enquanto a redonda fazia a parábola em direção ao gol, André perdia as estribeiras, assistindo a ela cair mansamente no lado esquerdo da meta de Mateus, que ainda chegava à pequena área.

No momento do Gol. (Fotos: Lucas Ayres)

Seu rosto ficou vermelho e suas ações aleatórias. Uma hora pulava, outra abraçava seu amigo, depois cantava, em outro momento ficava quieto, batendo palmas. Passou os 20 minutos restantes em pé, vibrando com cada lance, acreditando na virada que não veio. Findou-se a peleja em um a um.

Depois do gol, André virou outro torcedor. (Fotos: Lucas Ayres)

- Com a derrota do São Paulo (sub-20), a gente tá em primeiro. A Portuguesa tá assim nessa Copa. Toma gol, vai mal e de algum jeito acha o empate. E ainda termina em primeiro.

Pouco mais de um mês depois, o time paulistano cairia nas semifinais para a Ferroviária de Araraquara. Dessa maneira, a Portuguesa não jogará nenhuma competição nacional em 2018, pela segunda vez em sua história. Mas nada abala André Carlos Zorzi. Ele segue torcendo e continua comparecendo.

- Eu sou assim, continuo torcendo, independente do resultado. Até depois do 7 x 1 eu tava lá, torcendo pelo terceiro lugar contra a Holanda.

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