Lucas Rubio Ayres
Adeptos & Apaixonados
10 min readDec 23, 2017

--

(Ilustração: Lucas Ayres)

Não é difícil alegrar César Augusto de Andrade. Aos 43 anos de idade, bastam seu filho e seu futebol. O momento, então, em que César está na arquibancada do estádio Nicolau Alayon, sua meca futebolística, e na companhia de seu pequeno, é o momento de sua completude, como se tudo estivesse em seu devido lugar.

De suéter cinza e calça bege, tem os ombros arqueados, os braços cruzados apoiados nas pernas bem juntas, protegendo-se discretamente contra o vento frio que corta a Avenida Marquês de São Vicente e vai soprar a grama do campo do Nacional Atlético Clube. Em seus olhos, há um pequeno brilho, do prazer do reconhecimento, do deleite de ter sua história ouvida, mas que também cintila pelo conforto de estar em sua casa.

César é assim nas arquibancadas do Nicolau Alayon. (Foto: Michael Barbosa)

Além de campo oficial e uma espécie de segunda casa para César, o lote no bairro da Água Branca é o centro de treinamento, o escritório e a sede social do Nacional. Diariamente, reúne cerca de trinta funcionários diretos e indiretos, entre manutenção, segurança, atendimento, comissão técnica e os monitores da quadras de soçaite da Arena World Sports, sublocação de uma porção do terreno, fruto de uma parceria entre o clube e World Sports & Marketing.

Quase todos esses trabalhadores conhecem o “Cesinha”. Seu Rodolfo, o segurança, Miguel e Zé, os porteiros, a Dona Bete da lanchonete, todos o reconhecem e o fazem sentir-se em casa. E por isso, César é muito grato. Retribui todo o carinho como pode. Presença constante no clube — no mínimo três vezes por semana –, ajuda jogadores, treinadores e dirigentes, compartilhando sua experiência de treze anos de carreira como jogador de futebol profissional.

Apesar do livre trânsito pelas dependências da Comendador, passa a maior parte do tempo nas arquibancadas do campo principal. Ali, doa-se de corpo e alma na torcida para o Nacional, seja nas partidas do profissional ou das categorias de base, esta última muito por conta da recente adesão de Diego Andrade, seu filho.

César vai a todos os jogos e treinos do filho Diego. (Foto:Michael Barbosa)

Enquanto o pai falava de sua torcida pelo time alviceleste, o menino aguardava ao seu lado pela sua vez de entrar no campo, no horário de treino do sub-11. Vestido com o uniforme completo do Nacional, com jaqueta, calção e meias azuis, o pequeno lateral direito não é o primeiro e tampouco será o último moleque a entrar nos juniores de um time profissional com a ajuda de César.

Errado está quem pensa que é pela proximidade do ex-jogador com diretores, por favores em débito ou um corporativismo da cartolagem paulistana. É devido a sua atuação como professor de futebol, como um personal trainer de fundamentos futebolísticos, uma profissão que conseguiu casar seu know-how, seu tato com crianças (vindo dos dois anos com a guarda de Diego) e sua enorme vontade de continuar vivendo do esporte que ama.

Jovem meia do Nacional exibe seus atributos sob olhares de César (Foto: Michael Barbosa)

Meia-atacante de força e com boa técnica de passe e chute, “tipo o Thiago Neves”, César começou a vida no futebol profissional aos 17 anos, no próprio Nacional. Jogou também por Fluminense e Paraná, entre indas e vindas ao time paulistano. Não teve a carreira das mais brilhantes, apesar de ter um campeonato carioca e um paranaense na lista de títulos. Mas foi um bom jogador.

Quase, porém, que esses atributos não vão a campo. Com 16 anos, tinha decidido abandonar o futebol. César havia acabado de ser dispensado pela base do São Paulo por ter repetido de ano. Era titular do sub-15, e jogava pelo clube desde os 11 anos. Entre a indignação e o conformismo, entre o sonho e os estudos, optou por deixar a chuteira de lado e se inscreveu no SENAI para o curso de eletricista.

Meses depois, porém, foi acompanhar o amigo Adriano num teste no Nacional. Sentado na mesma arquibancada em que hoje conta a história, viu os treinos num misto de saudade e frustração, até que o técnico Jurandir, que comandava as atividades, foi ter uma conversa com Adriano. Durante o diálogo, o homem apontava em sua direção, enquanto o amigo acenava positivamente. Curioso, desceu ao campo.

- O que tá acontecendo aí? — ele perguntou

- Você não é o Cesinha, que jogou no São Paulo? — a réplica de Jurandir

- Sou.

- Pô, e aí meu? Jogamos com eles e você não estava lá — questionou o agitado e super paulistano treinador.

- Não, eu repeti de ano e mandaram embora.

O homem fez uma pausa, e olhou fixamente para o jovem ex-atleta:

- Cesinha, você quer jogar aqui com a gente? — Jurandir perguntou, sério.

- Eu quero, quando é avaliação? — reagiu o garoto, mandando sua aposentadoria ao mesmo lugar que mandou o antigo clube.

-Avaliação o caramba, meu, pode pegar a camisa e jogar agora.

Nesse momento, começou uma relação que se assemelha a uma família, ou como uma família deveria ser. O Nacional o acolheu, deu-lhe raízes e asas, isto é, deu suporte, um lar, e depois o deixou ir, buscar seu espaço, suas experiências. César, por outro lado, deu ao clube sua lealdade e suas energias, retornando sempre que possível para ajudar, somar, conviver, enfim.

- Quando eu fui para o Fluminense, sempre que eu tinha folga, sempre que podia, eu pegava um avião e vinha para São Paulo visitar o clube, assistir e torcer para os meus amigos.

O retorno do filho pródigo como torcedor segue até os dias de hoje. Em praticamente todos os jogos no Nicolau, da base ou do profissional, César está lá, gritando, xingando, apoiando.

- O torcedor do Nacional de verdade apoia muito, grita muito, xinga muito também. E comparece. E eu torço, hein, grito, fico ali na escadinha. Me isolo, não gosto de ficar bem na hora do jogo, para torcer mesmo — ele admite, enquanto aponta para um pedaço da arquibancada, bem próxima à linha lateral do campo.

Cesinha cumpre todos os requisitos, e ainda traz uma “novidade”, a mesma experiência que usa para aconselhar usa para torcer, diga-se, desestabilizar o adversário.

- Quando eu vejo que o cara errou um, dois passes no começo do jogo, eu já colo nele. ‘Seu pé duro! Não vai errar hein!’

Para ele, o poder “destrutivo” da arquibancada é maior que o seu construtivo. Não que o apoio do torcedor seja menor que sua fúria, mas é que no caso da manifestação positiva, ele acredita que depende mais do jogador em transformar toda a atmosfera criada em futebol. Pelo menos sempre foi assim quando ele jogava.

Todas as faces de Cesinha durante o jogo. (Fotos: Michael Barbosa)

Calmo, frio dentro de campo, o nervosismo nunca foi algo de seu feitio. Sempre que pode, tenta passar ao filho e aos alunos a tranquilidade que garante que exibia durante os noventa minutos — no campo, claro. Nas gerais, sem o controle dos acontecimentos, sem a opção de interferir com um chute, um passe, um drible, Cesinha experimenta o nervosismo do torcedor.

- É muito pior torcer que jogar. Lá no campo eu resolvia, eu dava o meu jeito, eu era calmo. Mas aqui na arquibancada é diferente, é o coração mesmo. Torcedor é muito irracional às vezes. Você olha o lance, pensa no que dava para fazer, mas ali dentro é outra coisa.

Mais experiente e mais nervoso também, se vê agora suscetível às mesmas emoções do torcedor “comum” do Nacional. A mais recente é a euforia, pelo título da série A3 do Campeonato Paulista e o consequente acesso à série A2.

Passa pela sua cabeça o mesmo sonho da elite do estado, mesmo sabendo que será muito difícil. Se normalmente, na bola, já é uma tarefa árdua, imagina se vai contra a vontade do clube?

- Eu queria muito ver o Nacional na primeira divisão, e se manter, disputando os pontos. E, se possível, com o meu filho jogando — expressa-se Cesinha, com os olhos distantes.

Reconhecendo os seus limites e por vezes fincando o pé no chão, o Nacional faz o que pode para sobreviver, e só depois pensar em crescer.

- Não é vantagem para o clube subir para a A1, o próprio clube não quer, nunca foi vantagem estar na A1. O Nacional quer mesmo é revelar jogadores e fazer caixa. Teve um ano em que estávamos muito bem na A2, com chance de subir e um dirigente, o Orestes, veio falar para mim que não queria que subisse.

Orestes, que faleceu no começo de 2015, sabia que alcançar a elite queria dizer também adaptar-se a ela. De cara, teriam de ser instalados refletores no Nicolau Alayon, para os jogos noturnos, além de aumentar a capacidade do estádio. Fora a qualificação do elenco para não bater e voltar.

Mudanças são necessárias para a série A1 (Foto: Michael Barbosa)

Cesinha é um homem muito carinhoso. Há uma ternura em sua voz, um ar de bondade impregnado em seu ser. É muito atencioso em suas conversas, dos rápidos comprimentos à longas entrevistas. No dia em que dava sua entrevista, porém, dividia sua atenção entre perguntas e o campo do Nicolau Alayon.

Lá estavam treinando os meninos do sub-13 do Nacional. Além do interesse natural, quase involuntário, que uma partida de futebol provoca, um imã aos olhos apaixonados, o “professor” observa alguns dos meninos que agencia, algo pequeno por enquanto, atrelado às suas aulas particulares de fundamentos.

Quando é possível, tenta colocá-los no Nacional. Não por paixão ou por camaradagem, mas por uma crença da comissão técnica e admiração pelo projeto de base que vem sendo tocado.

- Os métodos de treinos são muitos bons. O Conrado, o Aguinaldo, o Carlão e o Guilherme são muito competentes, esses quatro estão elevando o sub-11 a um patamar impressionante.

De fato, o trabalho da comissão técnica foi impressionante. No sub-11, o Nacional foi campeão da VII Copa Ouro, tradicional competição de base da Federação Paulista. Venceu a final contra o Palmeiras, nos pênaltis. No Paulista, a categoria alcançou a segunda fase, classificando-se em terceiro lugar no grupo de Santos (1º) e São Paulo (2º), grandes bichos papões dos juniores paulistas.

Meninos durante o treino do sub-13 do Nacional. (Foto: Michael Barbosa)

César esteve em quase todos os jogos das duas campanhas, para acompanhar seu time, e, principalmente, seu filho, titular na maioria das oportunidades. De todas as partidas, a vitória contra o São Paulo por um a zero, no Paulista, foi a mais marcante.

- Eu juro, foi um dos melhores dias da minha vida, por ter ganhado do São Paulo e com o meu filho jogando bem

Os Andrade relembram da vitória contra o São Paulo. (Foto: Michael Barbosa)

Se o bom trabalho rendeu bons resultados ao clube, é difícil que lhe renda bons jogadores. Qualidade há nos atletas, ainda que sejam pré-adolescentes. O que falta são maneiras de segurar os promissores meninos. Se depender de César, então, nem deveriam. Nem mesmo a comissão técnica.

- É difícil que mantenha esse time. Pode até ser que fique uma parte, mas a maioria sai em dois, três anos. E têm que sair. A comissão também. Eu falo isso para eles, para o Conrado para o Aguinaldo, de agarrar as oportunidades, estruturas que o Nacional não consegue oferecer.

César fala no alto de sua experiência no futebol e no clube. De quem conhece o Nacional por dentro e por fora. Fala como um pai que é para Diego e que sente ser para os meninos e seus treinadores. Como um torcedor e como alguém que fez o mesmo caminho, que foi crescer fora — e que voltou.

Sabe que ele vai ficar, até porque não tem para que sair, nem para onde sair. Em qual lugar será mais feliz em que a sua casa?

Realmente, não há lugar melhor que o lar. Cinco meses depois da entrevista, Cesinha foi convidado para o cargo de auxiliar técnico da equipe sub-20 do Nacional. Sem pestanejar, ele aceitou e agora é oficialmente parte do clube do qual, na verdade, nunca deixou.

- Eu estou muito feliz, é muito bom voltar a trabalhar no Nacional, e para um cargo que eu venho me preparando há algum tempo, com as aulas para os meninos, com a convivência nos treinos, agora e quando eu jogava — explicou pelo telefone o entusiasmado auxiliar.

Seu primeiro trabalho no banco da equipe será na Copa São Paulo de Futebol Júnior, a mais tradicional competição de base do País, celeiro e vitrine de diversos craques do futebol brasileiro. São 128 equipes, divididas em 32 grupos, cada qual com uma sede, um único estádio em cidades espalhadas pelo estado de São Paulo.

O Corinthians ficará em Araraquara, o Palmeiras em Taubaté, o São Paulo em Ribeirão Preto. O Nacional de Cesinha não poderia ter outro local: o Nicolau Alayon.

--

--