Lucas Rubio Ayres
Adeptos & Apaixonados
13 min readDec 22, 2017

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Antônio Augusto de Jesus é um homem grande, de ombros largos e postura ereta. Um sujeito vibrante, enérgico, com uma aparência mais jovem do que os 61 anos completados em novembro de 2017. Toninho, como é conhecido por familiares e colegas, é corintiano desde que nasceu. Ou pelo menos se sente assim.

“Não se torna corintiano, se nasce corintiano”, ele costuma a dizer, mas é de fato torcedor do Corinthians desde os seis anos de idade, depois que seu tio Pedro o levou ao Pacaembu. Antes disso, teve um leve flerte com o sãopaulinismo, “um pequeno desvio”, como chama o período, corrigido pelo escrete alvinegro de 1963, de Neco, Oreco e Ney.

O Timão de 63. Em pé:Augusto,Ado,Oreco,Cassio,Eduardo e Ari Clemente.
Agachados: Bataglia,Silva,Nei,Rafael e Ferreirinha. (Foto: Terceiro Tempo/UOL)

A seca de títulos — que àquela época somava onze anos –, pouco importava. A energia da arquibancada, da massa corintiana, dos jogadores em campo, aquilo tudo contagiou o pequeno Antônio, uma energia que consegue sentir até hoje.

Sentiu no paulista de 1977, na campanha da Série B em 2008, no Mundial de 2012, e sente lá de Itaquera. Há um quê de metafísica na relação do paulistano da Zona Norte com o seu time da Zona Leste, uma sensação de completude, uma forte ligação com o clube, que transcende os limites do estádio ou da tela de televisão. Antônio comunga com seu time sem precisar assistir aos jogos — o que tem sido útil, já que ultimamente não consegue acompanhá-los de tão nervoso que fica.

Há também muito de audição nessa relação. A casa em que morava quando menino não tinha televisão, então acostumou-se ao futebol via rádio. Ouviu algumas de suas partidas preferidas no Hitachi 62 da sala ou no Motoradio 69 do carro. O clássico Corinthians 4 x 3 Palmeiras de 1971, sua partida preferida, ouviu no Volvo do seu Tio Braz. Toninho voltava de uma festa de aniversário e quando entrou no banco de trás, o primeiro tempo havia acabado de se encerrar.

Quando o locutor anunciou o placar de dois a zero para o Palmeiras, o trajeto tornou-se triste. Como virar uma partida contra a Academia de Luís Pereira, Dudu e Ademir da Guia? À medida, porém, em que avançavam no caminho para casa, o Corinthians avançava no placar. Mirandinha descontou logo aos cinco do segundo tempo, e Adãozinho empatou aos 24 minutos. O gol de Leivinha, um minuto depois, deveria ter sido um balde de água fria para toda a massa corintiana, mas serviu somente para botar mais lenha na fogueira do clássico. Tião, aos 26, empatou novamente. Na hora em que saiu o gol de Mirandinha, aos 43 do segundo tempo, Antônio não sabe dizer se estava em curso ou em casa. Sabia que estava em êxtase.

Mas se hoje não consegue terminar uma partida pela televisão de tão nervoso, imagina os jogos por meio das transmissões feitas pelos maliciosos locutores de rádio, capazes de transformar qualquer lance de ataque em uma apoteose. Por um bom tempo, contentava-se com os sons do Pacaembu, próximo de onde trabalha. Hoje restam e bastam os gritos e fogos dos corintianos dos prédios vizinhos. Os primos Carlão e Serginho depois lhe contam como foi o jogo.

Antônio mora em Perdizes, Zona Oeste de São Paulo. Sem contar o trânsito, são apenas quinze minutos até o Salão Grace Hair, na rua Tupi, na Santa Cecília. Faz três meses que corta os cabelos das madames da Bela Vista e região, mas é cabeleireiro há mais de 26 anos. Prestigiado no novo local de trabalho e adorado pelas clientes, tendo arrebatado algumas do antigo salão a menos de de três quadras dali, Toninho é um profissional dedicado e antenado, com direito a viagens anuais à Europa, para se inteirar das novas tendências dos cabelos.

- Vou para Londres, Paris, Milão, Nova York…

- E Manchester?

- Manchester eu posso ir agora também, né — ele confirma, aos risos.

Antônio nasceu no dia 11 de Novembro de 1956, filho de Maria e Antônio de Jesus, um entre outros oito irmãos. Um deles era Fernando, que se casou com Vera Lúcia, com quem teve quatro filhos: Felipe, Fernando, Caique, Emanuelle e Gabriel Fernando, mais conhecido como Gabriel Jesus, atacante do Manchester City, camisa nove da seleção brasileira e cria da base do Palmeiras.

Antônio e Gabriel infelizmente não tiveram o convívio que caberia à relação. A mudança de casa do garoto, no bairro do Limão ao Jardim Peri, decorrente da separação de Fernando com Vera, foi um agravante. Mesmo assim, o cabeleireiro manteve-se próximo da cunhada e do sobrinho, especialmente após o falecimento de Fernando, cinco anos atrás.

Nada disso, porém, impediu Toninho de alimentar no sobrinho o corintianismo. Sua paixão alvinegra, no entanto, acabou deixada de lado pelas andanças do futebol profissional, e posteriormente transformada em carinho ao Palmeiras, seu clube revelador.

Irônico? Que nada. Gabriel é só motivo de exaltação do tio. Assim como outros membros da família “de Jesus”, Toninho tem um quadro do artilheiro com a camisa do Palmeiras exposta na sala.

- No começo todo mundo se ajudou muito na nossa família, somos muito unidos. Afinal, corre na nossa veia o mesmo sangue.

- Mas nunca rolou uma desavença? Uma provocação?

- Que nada, era tudo bem tranquilo. Eu falava que se ele jogasse contra o Corinthians, queria que ele marcasse dois gols, para todo mundo ficar feliz. Só que a gente ganharia de quatro a dois, cinco a dois, simples assim. Ele ficava maluco comigo! — relata o diplomático tio, às risadas.

Não dá para falar que Gabriel frustrou o tio, mesmo que em dois anos de Palmeiras tenha saído invicto do Dérbi, mas sem marcar nenhum gol. Orgulho é a única coisa que Antônio e os “de Jesus” conseguem sentir pelo seu craque.

Frustrado mesmo Toninho fica com o Corinthians, que chegou a ter o jogador em sua base, mas o deixou escapar por um episódio pitoresco. Um antigo empresário do menino, que o levava aos treinos, teve de viajar certo dia. Ele deu então a incumbência da carona a um amigo, que se esqueceu da tarefa. Sem saber do caminho para o Terrão corintiano, Gabriel ficou à toa pelo Peri, o que deixou sua mãe possessa. Ela já andava irritada com os horários de treinos que coincidiam com os da escola. Ver o filho sem treinar e sem estudar, mesmo que por um dia, a fez cortar a formação alvinegra do menino na hora. O Corinthians nada fez para mudar a situação.

Pelo menos o episódio deu a Antônio a oportunidade de ver o sobrinho passar pelas mesmas experiências que teve na várzea. Antes de se juntar ao Palmeiras, Gabriel jogou pelo “Pequeninos do Meio Ambiente”, “União Peri”,“Cantareira” e “Anhanguera”, de onde saiu para a base alviverde. O atacante acabou moldado pelo mesmo ambiente que o tio.

- Na várzea, você aprende muitas coisas importantes, a ser malandro da bola. Apesar da idade, já sei sair de uma jogada em que posso correr risco, e não me deixo intimidar por adversário. A várzea me ensinou muitas coisas — disse Gabriel Jesus, em uma coletiva de imprensa, em 2015.

- Quem joga na várzea não tem que ter medo. Os caras chegam lá e são maiores que você. Você tem que ir para dentro desses caras se não eles vão para dentro de você — disse Toninho, em seu salão, em 2017.

- Minha família ia muito à várzea, no campo do CBTC, em Tiradentes. Assisti muito desafio ao Galo. O futebol lá é maravilhoso.

O vislumbre pela “modalidade” logo se tornou em pertencimento, e não demorou para o jovem Antônio tornar-se o quarto zagueiro do Santa Cecília, da Vila Penteado. O velho Antônio se descreve como um defensor técnico, que podia fazer as vezes de lateral direito, e que “não parava em pé”, de tantos carrinhos, de tanta entrega em campo.

- Tem adversário que, se deixar, cresce para cima. Então eu mostrava minha presença. Aí, só quando dava, eu dominava a bola no peito, clareava e lançava lá no meu ponta esquerda, que ia com tudo pra dentro do gol.

É uma imagem interessante, a de Toninho na várzea. Um cara de recursos, mas que fazia questão de mostrar o seu lado simples, para se impor, “sobreviver”. O floreio, o penache, era só quando cabia, quando davam o espaço.

No salão, Toninho é só sorrisos. (Foto: Lucas Ayres)

Hoje inserido num ambiente bastante diferente, adota uma postura inversa. Para sobreviver entre as tingidas da Bela Vista, faz questão de mostrar seu lado mais técnico, sua conduta polida, sua personalidade acolhedora. Fala com uma voz grave mas macia, como de um locutor, e um sotaque paulistano marcado. Não fala palavrões. O sorriso é indissociável, assim como a habilidade para um bate papo.

Antônio tem falas curtas, ditas sempre na hora certa, fazendo a conversa fluir naturalmente, especialmente se o foco da conversa for seu interlocutor, como são a maioria de seus diálogos com suas clientes. Quando ele mesmo é o objeto do bate-papo, as frases curtas já não surtem o mesmo efeito. Numa entrevista, então, são quase reticentes. Mas ainda muito simpáticas. Seu lado mais rústico se apresenta nas horas oportunas, no bate papo fora do expediente. Aumenta o volume da voz, solta algumas gírias, se mostra.

Toninho é coerente com os meios em que transita. É dedicado também, seguindo suas normas sociais, seus ritos. Desde pequeno é acostumado a fazer parte de grupos, clubes, comunidades. Seu bairro, seu time da várzea, seu time profissional, sua escola de samba, seu salão, todos com suas sociabilidades, suas subjetividades, e todos com os quais se entende como parte.

Sabe-se de sua conduta na várzea, no salão. Na quadra da Camisa Verde, seguidor desde criança, membro da bateria desde 1970, é de se imaginar um híbrido, entre a simpatia necessária a um passista, mas com a malícia do carnaval. No Corinthians, além da questão metafísica e da sensorial, há uma enorme lealdade, um sentimento entre o deslumbre e a responsabilidade de pertencer ao time.

Entre o fim de 2007 e o fim de 2012, por exemplo, voltou a assistir aos jogos de seu time, sentindo-se responsável pela volta por cima da equipe, por recuperar sua condição de elite do futebol e reconquistar o prestígio digno de seu tamanho.

- Ali senti que meu time precisava de mim. Assisti a todos os jogos da Série B, nervoso e tudo, para apoiar, mandar minhas energias. Fui nessa pegada até o mundial.

A Libertadores e o Interclubes de 2012 foram como uma libertação, como se seu trabalho estivesse concluído. Havia sido uma das milhares de mãos que buscaram o Corinthians do fundo do poço e o carregaram ao topo do mundo.

- A energia daquele ano todo foi fantástica. Todo mundo falava, pensava no Corinthians, todo mundo sentindo que daria certo. Foi o ano que consagrou o “Vai, Corintia” — ele relembra, fazendo questão da pronúncia correta do grito de guerra que marcou aquela temporada.

“Entregou” então o time em outras mãos competentes. Bons tempos se anunciavam, com boas pessoas no comando. Mas talvez o fascínio com o novo momento foi demais. O clube e seus cartolas deram alguns passos maiores que as pernas e de repente se viram em um caminho diferente do que imaginavam.

Instabilidade política; dívidas crescentes referentes à Arena, salário de jogadores, comissões; falta de recursos para reforços; isso tudo, porém, deixou Antônio ainda mais encantado pelo momento da equipe, da famigerada “quarta força” ao título paulista de 2017, e ao melhor turno da história do campeonato brasileiro.

- O Corinthians, hoje, mesmo tendo um investimento menor do que muitos times, está com uma defesa maravilhosa e um contra-ataque eficiente. E mesmo assim, não podemos menosprezar os jogadores que estão lá, que na posição certa estão jogando muito bem.

O fascínio é tamanho que por vezes parece ter um efeito alienador. De qualquer forma, mantém-se leal, um eterno defensor do clube.

- Olha, não estamos tão diferentes dos nossos rivais. O São Paulo aí com essa história de rebaixamento, o Santos também mal das pernas, e o Palmeiras que se não fosse pelo patrocinador também não estaria muito diferente.

O pensamento ilustra seu entendimento de Corinthians, uma fé inabalável na força da equipe, uma segurança em sua identidade, uma certeza na vitória sob qualquer obstáculo. É bonita sua entrega.

- Se eu passo de verde ali perto do Pacaembu em dia de Corinthians, estou tranquilo, porque sei que está nos meus olhos, no jeito que ando, que sou Timão. Os rivais a mesma coisa, eu posso estar uniformizado de São Paulo, de Palmeiras, que verão que eu sou “Corintia”.

Para muitos corintianos nascidos antes da década de 1970, o Paulista de 1977 é inesquecível, até porque o primeiro título não é algo que se esquece facilmente. Para Antônio então, que tinha vinte anos na época, é inexorável, à prova de tempo.

Entre todos os heróis do elenco de 1977, é por Basílio que o cabeleireiro tem mais afeição. O “Pé de Anjo” foi “o escolhido”, o autor do gol do título, mas também é um dos jogadores que mais se identificaram, que mais conseguem sintetizar o Sport Club Corinthians Paulista.

Basílio marcou o gol do título de 1977. Foto: José Pinto/Placar

Paulistano nascido em 1949 chegou ao time em 1975, vindo da Portuguesa. Sua camisa era a número oito e a tarefa era árdua: substituir Rivelino, que saíra para o Fluminense depois do fracasso no Paulista de 1974.

Sem a mesma habilidade e a técnica do “Riva”, Basílio compensou com muita entrega, muita vontade e foi recompensado com um dos gols mais importantes da história do clube, tendo alcançado a glória justamente no campeonato em que seu antecessor teve sua infâmia, uma história que parece ter sido escrita pelos próprios corintianos — a raça, a gana são os atributos mais bem quistos pelo torcedor alvinegro.

- Essa é a filosofia do Corinthians, o corintiano é assim, está sempre acreditando, até o final. Então o jogador que faz isso se dá bem no time e com a torcida.

Basílio era sua luta. Era seu jogo, seu estilo e quase foi seu fim também. Logo em seu primeiro ano de Corinthians, durante um jogo contra o América de São José de Rio Preto, foi até o fim de uma jogada e acabou se chocando com o goleiro adversário. Caiu no chão, sofrendo uma parada respiratória. Não fosse o ágil e eficiente trabalho do médico (e jornalista) Osmar de Oliveira, a torcida corintiana perderia seu ídolo antes mesmo de ele alcançar tal status.

Também não ocorreria um dos encontros mais sublimes da vida de Antônio, quando desfilou na Camisa Verde e Branco ao lado do craque de 1977. Na verdade, foram alguns encontros, já que Basílio é um dos nomes mais presentes da escola da Zona Oeste de São Paulo. Ambos desfilaram juntos quando a passarela ainda era na Avenida Tiradentes, antes do Anhembi.

- Para você ver como é a vida. Eles montam a ala dos boleiros e numa dessas saiu o Basílio, meu maior ídolo. Foi muito legal.

O aparente costume em relação à reunião é ilusório. Foi de fato especial ter o ídolo de seu time no ambiente de sua escola de samba, a qual juntou na mesma época em que adotou o Corinthians como time. É que além da recorrência do jogador na quadra da Barra Funda, um dos “maiores verde e brancos” que há, o encontro com “boleiros” é incrivelmente corriqueiro, beirando o banal.

- Tive a oportunidade de sair com essa galera, de ter um pezinho no futebol. Mas vira e mexe eu me deparo com algum boleiro. Hoje mesmo apareceu o Raí aí no salão. Sempre vejo um ou outro, faz parte.

Recorte da revista PLACAR de março de 1984 destacando, à esquerda, a “Ala dos Boleiros” da Camisa Verde Branco. (Foto: Revista Placar/Reprodução: Google Books)

Na mesma Camisa Verde, já topou com César Maluco, Ataliba, até os mais novos, como o carismático Dinei. Encontra alguns outros no Clube Cruz, no Jardim São Bento, ponto de encontro da boleiragem paulistana. Fez até boas amizades, como foi o caso do zagueiro e ídolo do Palmeiras, Luís Pereira.

- A minha esposa na época era muito amiga da esposa dele. Aí ficamos próximos. Íamos jantar na casa um do outro, descíamos na Praia Grande para bater uma bola, era muito bacana mesmo.

O lendário ex-jogador hoje mora na Espanha. É coordenador das categorias de base do Atlético de Madrid, por onde jogou, e também virou ídolo. A distância dificultou a manutenção do relacionamento com Toninho.

A ida de Luís para a Espanha, de Gabriel para Manchester, do Corinthians para Itaquera, tudo foi minando sua proximidade com o futebol e aos poucos foi ficando isolado de algo antes tão presente em sua vida. Até das arquibancadas está ausente. Sua última vez em estádios foi no fatídico Corinthians x River Plate, de 2006.

- Fui com meus sobrinhos. Foi demais aquilo. Estávmos com a Gaviões, e um dos meus sobrinhos estava no foco da confusão. Fomos embora sem ele, ficamos muito preocupados. Só não aconteceu algo pior porque ele foi esperto e saiu do Pacaembu logo que a coisa começou a ficar feia. Aí eu falei ‘chega, é demais para mim’.

Portanto, apesar dos sorrisos, do papo fácil, dos bons modos, dos jogos na várzea, dos cortes nas madames, há um incômodo, uma falta da energia que alimenta toda a sua metafísica conexão com o time. Por isso que hoje Antônio é louco para conhecer a Arena Itaquera.

- Eu quero muito ir à Itaquera. O mais cedo possível. Tenho amigos por lá, e quero levá-los para conhecermos a nossa casa.

(Fotos: Lucas Ayres)

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