Lucas Rubio Ayres
Adeptos & Apaixonados
8 min readDec 23, 2017

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(Imagem Thiago: Mariana Serafini/Ilustração: Lucas Ayres)

Thiago Cassis passa uma credibilidade que é instigante. Talvez seja seu visual mais sério, de cabeça raspada e barba grande e espessa, ou a fala mansa e objetiva, persuasiva. Pode ser também a ausência de uma televisão na sala, combinando com os diversos livros espalhados pelo resto da casa, que lhe dão um ar de estudioso.

O fato é que, na entrevista da varanda de seu apartamento, consegue convencer de que se coloca à margem das imposições culturais dos espaços que frequenta. O próprio lugar onde mora, de arquitetura antiga, com longos e estreitos e corredores, pé direito alto, piso de taco de madeira e largas portas, com uma vista para a rua abafada pelas árvores do extenso jardim, agiam a seu favor. O lugar parece uma resistência harmoniosa entre o verde e o concreto, entre o novo e o velho, em meio ao caótico centro do transporte público da Zona Sudeste de São Paulo, também conhecido como Ana Rosa.

Thiago é um crítico. Veja bem, não confundir com um corneta, um chato. Apenas tem posições claras sobre o que o aborrece ou o desagrada. No caso do futebol, é o seu modelo de negócios e principalmente suas consequências e desigualdades que turbinam o descontentamento do juventino.

O processo elitista que atinge as arquibancadas, a desigual distribuição de cotas de televisão e sua lógica pouco criteriosa, assim como a dependência dos clubes na grana que movimenta, todos são alvos da leitura crítica do jornalista de 34 anos. De suéter preto e calças cáqui, ajeita-se confortavelmente na poltrona enquanto fala de como o futebol dos clubes da elite é diferente dos clubes “menores”.

- Algumas coisas são similares. Quem torce, torce igual, acorda na quarta feira pensando, sofre igual, fica nervoso igual. A diferença é conseguir informações. Você não vai ver no Globo Esporte, não vai ver na TV normalmente.

De pernas cruzadas e olhar calmo, posiciona-se tranquilamente fora da espiral midiática dos ditos clubes grandes, aptidão que mostrava desde moleque, quando se engraçou, com cinco anos de idade, com o time de futebol de botão do Juventus.

O gosto pelo time diferente talvez tenha sido catapultado pelo avô, torcedor “desses que acompanha mesmo” do modesto Olímpia, time da cidade homônima no norte do estado de São Paulo.

- Não sei dizer ao certo, mas comecei a gostar do Juventus talvez por ser um time de São Paulo que não era o de mais destaque. E fui conhecer por já acompanhar um time fora do universo hegemônico, aí talvez eu tenha começado a conhecer esse outro lado do futebol.

O pai com certeza herdou o hábito, o fanatismo, apesar de o clube escolhido ser o Corinthians. A união dos costumes paternais fez Thiago iniciar sua caminhada no futebol com a companhia do time de Parque São Jorge, mas com um destino diferente.

- Não é uma escolha política torcer pro Juventus, é outra coisa, inerente ao mundo do futebol, é gostar daquela cor de camisa, gostar de ir naquele estádio, essas coisas.

Antes de um crítico, portanto, Thiago é um grande torcedor. No fim, quer mesmo é assistir aos jogos, preferencialmente — e quase que exclusivamente –, no estádio. Classifica o ambiente como “o lugar de ficar 90 minutos nervoso, com raras exceções”. O ambiente diferente, acolhedor, é sim um peso, mas ínfimo em relação ao jogo.

- Eu entendo que tem a parte bonita, mas é até começar o jogo. Eu sei que é bonito, mas no campo é um sofrimento danado — explica, às risadas, o jornalista.

O semblante leve, porém, é quebrado ao reconhecer que não vê o mesmo interesse por parte da cobertura midiática. A mão acaricia a barba meio preta, meio grisalha, e a voz carrega um tom sarcástico:

- Pode ver que todas as matérias que saem sobre o Juventus ficam falando de como é legal a rua Javari, dos moradores da Mooca. Falam dos cannolis, dos doces, mas eu queria mesmo é saber do jogo, da mudança que o técnico fez.

- Não tem coisa que o Juventino que é torcedor de verdade não goste tanto como quando chamam de segundo time de todo mundo. Ficam chamando de time simpático, é a mesma que falar que não dá medo em ninguém.

De fato, o Juventus da Mooca não é dos melhores ultimamente, há 10 anos sem voltar à elite do Paulista e fora de todas as divisões do Campeonato Brasileiro. À época de nossa conversa, suas perspectivas iam tão longe quanto a equipe sub-23 (semifinalista da Copa São Paulo de Futebol Júnior de 2017) que disputaria a Copa Paulista, competição tapa buraco da Federação Paulista, cujo campeão escolhe se disputa a Copa do Brasil ou a Série D do ano seguinte. O jovem selecionado juventino não passou da primeira fase da competição.

O crítico dá as caras para explicar as incoerências que levaram o Moleque Travesso à situação, pontuando em especial o peso das cotas de televisão.

- O Guarani de 1988 tinha Neto, Evair, Careca, era melhor que provavelmente os últimos 10 campeões brasileiros. Por quê? Porque na época, as cotas de televisão eram melhor divididas.

Segundo ele, as cotas, somadas ao calendário que não consegue preencher o ano todo, não dão as condições necessárias para um clube do porte do Juventus se reestruturar sem depender de empresários e outros terceiros, muitas vezes maliciosos.

Thiago fala com a firmeza de quem vive o ambiente do futebol. Até demais. Jornalista e apaixonado por futebol, foi natural sua migração para exercer a profissão na área. A oportunidade veio com a Rádio Record, em 2005.

Na vivência diária, se enriqueceu a experiência jornalística, empobreceu o torcedor. Na época, Thiago ainda se considerava corintiano. O contato com os profissionais da bola só alimentou a postura crítica perante ao esquema geral das coisas da futebol.

- Você se depara com a motivação dos jogadores, e vê que são poucos os que realmente vestem a camisa, que se sentem motivados pelo tamanho do clube pelo qual estão jogando, a maioria joga mais para si. Mas são levados pela lógica do negócio a serem assim, e é até melhor que sejam, para se virarem nesse meio corrompido.

O resultado da incursão jornalística parecia o contrário que o natural. “Deu uma esfriada”, ele admite. O ano foi o auge da parceira entre Corinthians e MSI, que considera um “negócio esquisito”, que se não foi uma das causas do seu desgarrar do time alvinegro, “ajudou”. As partidas já não eram a mesma coisa, a emoção não era mais a mesma, a atenção tampouco.

- Demorou um tempo, mesmo depois que eu parei de trampar com o futebol, para retomar, foi um ano de desinteresse mesmo — explica Thiago. Não consegui detectar lamentos ou arrependimentos na sua voz.

- Mas aí quando eu voltei, voltei diferente, com outro interesse pelo futebol. Não teve assim um ponto de virada. O ingresso era acessível, o Juventus é um time legal, que eu já acompanhava, não têm como dizer um marco, você vai levando, vai mudando, você não sabe por que, exatamente.

“Espera então que vou pegar meu casaco do Juventus”, ele fala, erguendo-se rapidamente da poltrona, enquanto esboça um sorriso inocente, quase infantil. Havíamos combinado um pequeno relato do jogo da sua vida: Juventus 2 x 3 Linense, pela Copa Paulista de 2007.

Apesar da derrota, a equipe paulistana sagrou-se campeã, devido à vitória por dois a zero na ida, em Lins. Além do título, a grande emoção da partida ficou por conta dos dois gols que saíram nos acréscimos: o terceiro do Linense, aos 47 do segundo tempo; e o segundo do Juventus, aos 48. Gols no final, segundo Thiago, são uma especialidade juventina. O jogo sofrido, uma identidade.

- O Juventus joga retrancado mesmo, até as dimensões lá na Javari ajudam. Quando precisa, joga com oito caras na área mesmo, e consegue empatar. É uma identidade do clube, assim como o Corinthians tem o jogo de defesa, o Palmeiras monta academias e bate em todo mundo, o Santos é o time do drible, e o São Paulo do jogo moderno.

- É uma pena que a gente tá perdendo isso — lamenta Thiago, passando vagarosamente a mão na cabeça calva

A combinação entre a alta dos ingressos e o crescimento midiático do futebol europeu por aqui, de acordo com ele, está inibindo muitos jovens de ter a vivência dos estádios, de criar vínculos com os times. São esses futuros torcedores que podem manter e cobrar uma identidade do clube. Mas não é somente a nova safra de fanáticos que pode ser afetada por essa “Nova Ordem Mundial” do Futebol.

- Quantos Ronaldos, Rivaldos e Romários com 12 anos de idade estão deixando de ver jogo, se desinteressando pelo nosso futebol. Se eu fosse moleque hoje, eu não teria grana para ir ao estádio.

O ponto central para todo esse criticismo nem é o futebol moderno em si, mas o que ele carrega em suas estrutura e como chegou no patamar em que se encontra hoje.

- O futebol todo está num modelo que a gente que gosta de verdade tem que combater, esse modelo elitista de jogo, de arena. Os programas de sócio-torcedor, apesar de ser uma opção para o time se manter, acabam contribuindo para isso, a própria arquitetura dos novos estádios já foi pensada para outro público, diferente do que estamos acostumados. Mas tem que tomar cuidado para não ser saudosista.

Da sua poltrona, emana um conforto com as suas mudanças, de onde provavelmente vem a clareza nas ideias. Hoje juventino convicto, pouco assiste a jogos na televisão, a não ser pelas poucas transmissões de partidas do Juventus e alguns jogos do Corinthians, pelo qual sente algo diferente, ainda que não sendo exatamente um torcedor do clube alvinegro

- O Corinthians nunca vai ser só um time para mim. Mas não fico nervoso assistindo aos jogos ou triste com as derrotas. Talvez seja simpático às vitórias.

Aparentemente, Thiago faz do Corinthians o que muitos fazem com a Juventus, um segundo time. A diferença está na recepção do fato por cada torcida, o que tem muito a ver com sua autoestima. A juventina, sem a atenção da mídia esportiva, o apoio da FPF e até respaldo da equipe em campo, se apega ao que é mais acessível, sua imagem, sua honra.

Há também um apego desses torcedores com valores que circundam o futebol, que fogem da objetividade do resultado, do desempenho em campo, já que estes são raros ao time da Mooca. Curtem a superstição, a irracionalidade mas também as histórias dos times, suas identidades. Pelo menos Thiago é assim. Por isso, assiste também aos embates pouco prováveis, aos de conclusão pouco lógica. Tem um apreço pela Copa Sul — Americana e pela Liga Europa.

- É a competição que eu sempre sonhei no botão. Eu olhava a Copa da UEFA (hoje Liga Europa), que até que apareciam uns times mais poderosos, mas era formado por equipes mais alternativas, só que também jogavam na elite, e até já chegaram a ganhar um campeonato ou outro.

Seu campeonato favorito é qualquer um em que o Juventus esteja jogando. Infelizmente, isso só acontecerá em 2018, na Copa São Paulo de Futebol Júnior. Enquanto isso, aguarda ansiosamente pela atmosfera da Javari, pelas cervejas do Bar do Cebola, ponto de encontro dos boêmios juventinos, mas quer mesmo é voltar a passar 90 minutos nervoso assistindo o seu time jogar.

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