Lucas Rubio Ayres
Adeptos & Apaixonados
8 min readDec 22, 2017

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(Ilustração: Lucas Ayres)

Sentado no sofá de seu apartamento na Santa Cecília, em São Paulo, Fernando está tranquilo. Depois de uma caminhada de precisos três minutos no trajeto trabalho-casa e de um jantar que incluiu muçarela de búfala, carne moída, batata gratinada e um pão francês, preparava-se para assistir ao jogo do Palmeiras contra o Coritiba, válido pela quinta rodada do Brasileirão de 2017, no dia sete de junho.

Acendeu um charuto Havana e puxou vigorosamente. O homem baixo e grisalho usava uma camisa larga, de mangas curtas e com um pequeno bolso na altura do peito esquerdo. As bermudas, compridas e cheias de bolsos, harmonizavam com todo o visual quase desleixado e aparência cansada, de fim de expediente. Soprando vagarosamente a fumaça, era o retrato do conforto, de um “comodista”, como ele se referiria mais tarde naquela noite.

Fernando Cezar de Souza Baptista é um biomédico de 59 anos, 3 filhos e 3 casamentos, dono de um laboratório na Avenida Angélica, praticamente na esquina da Rua Doutor Veiga Filho, seu endereço. Fernando é também um homem de paixões muito bem definidas, por livros, charutos, futebol, pelo Palmeiras e pela arquibancada, mesmo que não a frequente em 32 anos.

- Mas fui em um jogo recentemente, contra o Internacional, no fim do ano passado — advertiu, se livrando do peso da objetividade numérica.

A última vez em estádios havia sido em 1985, em um Palmeiras 1 x 1 Guarani, pelo Campeonato Paulista, no velho Parque Antártica. Aquele foi mais um ano bem distante dos gloriosos tempos das Academias. A equipe de Leão, Márcio e Edu Manga não teve força para chegar nas fases decisivas tanto do estadual como do nacional.

- Aí eu troquei o estádio pelo sofá — pontuou, convicto.

À parte do momento do time do coração, que aquela altura já amargava nove anos do que seria um total de dezessete de fila, colecionando decepções e pernas de pau como Darinta, Célio e companhia, as motivações da troca, ele jura, foram além das futilidades da infraestrutura como “locomoção, banheiros, estacionamento”, mas também causas mais consagradas, como “a violência, o medo”, mas, acima de tudo, por seu jeito peculiar, pelo menos do modo que se descrevia.

- Sou um comodista — proclama, do canto do sofá.

O braço esquerdo descansava, com o cotovelo apoiado no encosto. As pernas estavam esticadas e cruzadas. Todo seu semblante agia em coerência com sua auto-análise. Na televisão, uma veloz troca de passes palmeirenses resulta na finalização errada de Felipe Melo. Em seu olhar, a serenidade de quem assiste ao jogo de seu assento preferido.

- Mas não sou um acomodado — garante, ajeitando-se no assento.

O Palmeiras do Paulista de 1985. Em pé(da esquerda para a direita); o goleiro Leão, Diogo, Vágner Bacharel, Polozi, Rocha e Hélio — Agachados: Barbosa, Paulinho, Reinaldo Xavier, Mendonça e Paulo Roberto. (Foto: GazetaPress)- Mika, vem cá

Entra em cena a Mika, a cachorra, companheira e única a dividir o apartamento com Fernando. Só não havia sido mencionada pela sua discrição, apesar de seguir o dono por todos os cômodos e de ter seus um metro e oitenta de altura sob duas patas.

Jogando seu corpanzil um tanto envelhecido para lá e para cá, Mika se esgueira pela sala, apesar do espaço de sobra que o aposento quadrado oferece. Um sofá rente a parede, à esquerda, e duas largas poltronas, à direita, serviam de duas arestas paralelas, conectadas pela linha do sofá central e pela linha da televisão à sua frente. A tela era grande o suficiente para corrigir o baixo posicionamento da base, deixando a visão à altura dos olhos. No interior deste quadrado, uma mesa de centro, também quadrada.

- Ficamos eu e a Mika aqui assistindo ao jogo, eu fumo meu charuto…

- É uma tradição?

- Não. É que charuto eu fumo com jogo, filme, livro…tudo é desculpa — se justifica, aos risos.

Apreciador de um bom charuto — cubano, de preferência -, Fernando têm no hábito fumígeno (?????) algo representativo na sua vida, mas que não consegue se comparar com o hábito futebolístico. É um espectador assíduo de partidas de futebol, sem restrição de equipes e competições.

- É que eu amo, sou apaixonado pelo futebol. É o esporte mais completo que tem: tem a parte física, a parte intelectual, a tática, a estratégia, tem tudo!

Munido do controle remoto, aprecia a exibição do esporte, assim como sua análise fria, tática e crítica.

- O pessoal me chama de torcedor de sofá, me desmerece. Mas eu posso apostar que eu assisto muitos mais jogos que um torcedor ‘normal’, do meu time ou não — desabafa o biomédico.

- E nos jogos do Palmeiras?

- Assisto da mesma maneira. Torço, sim, mas não é aquela paixão cega que faz o torcedor não perceber as coisas. O meu filho fala que eu pareço corintiano — ele ri. Eu assisto com olhos críticos, sou até meio ácido, meio azedo. Mas é assim, eu não sou fanático, eu sou torcedor.

Enquanto isso, no Couto Pereira, o atacante Keno desperdiça a chance do primeiro gol palmeirense. Ao fim do lance, ilustra seu pensamento sobre toda essa relação de torcedor-analista:

- A paixão não permite bom senso.

Bom senso, diz, que lhe faltaram em poucas oportunidades, pelo menos em relação ao futebol. A última teria sido no fatídico Palmeiras x Corinthians de 6 de junho de 2000, pela Copa Libertadores. Sim, aquele.

- Aquele jogo foi demais. Ali se perdeu todo o bom senso. Se aquilo tivesse sido escrito por mim, eu não teria essa ideia, seria muito inverossímil — resume.

Depois da emoção daquele jogo-fantasia, a razão passou a tomar conta.

A visão supostamente isenta é resultado de um afastamento do ambiente do futebol, após anos nele vivendo intensamente. E a sua proximidade foi regredindo paulatinamente. Já com seus 10 anos, não lhe eram estranhos jogadores, dirigentes, vestiários. Também, seu pai Osmany quase foi boleiro profissional, e o tio já foi presidente do Palmeiras.

Ferrúcio Sandoli esteve no cargo somente de 1949 a 1951, mas manteve-se importante no clube por anos a seguir, como dirigente e diretor, a ponto de acompanhar o jovem sobrinho aos lugares não acessados pelo mero torcedor.

O engravatado rodeado por microfones e jornalistas é Ferrúcio (Foto: Arquivo pessoal de Semiramis Teixeira/Reprodução: Terceiro Tempo)

Ele estava presente num momento marcante para Fernando, desses causos que de tão passageiros, se eternizam na nossa memória e se reproduzem infinitamente em forma de anedotas.

- Eu já vi o Djalma Santos no vestiário ensinar o meu pai a enxugar o pé, para não pegar frieiras — relembra, com um brilho quase juvenil nos olhos.

Nos seus anos de jovem adulto, deu um passo atrás na experiência clubística, mas um mergulho de cabeça no jogo. Nos tempos de faculdade, em meados de 1970, assistia a todos os jogos no Pacaembu, do Palmeiras, do Corinthians, quem quer que fosse, mas principalmente do Santos, por quem era encantado.

O intervalo do fraco embate no Couto Pereira permitiu ao biomédico se sintonizar melhor às memórias.

- Eu tinha um amigo para quem eu dava carona que morava a três quadras da Praça Charles Miller. A gente saia de noite da aula, e quando passava na frente do estádio e os refletores estavam acesos, a gente sabia que tinha jogo. Era só guardar o carro e ir.

Na época, os jogos no Pacaembu eram gratuitos e em horários mais acessíveis, um convite praticamente irrecusável, ainda mais para alguém cujo amor pelo esporte corre nas veias da família. O pai ia junto de Fernando em muitos jogos.

- Ele é torcedor da Portuguesa, e ia comigo, palmeirense, assistir ao Santos do Pelé.

Foram duas décadas de muita arquibancada, que lhe fizeram marcas profundas na sua concepção do esporte. Adquiriu uma noção diferenciada do posicionamento dos jogadores em campo e acompanhou toda a caminhada evolutiva do futebol brasileiro, dos românticos anos 60 ao “fim do futebol-arte” pós 82, que acabou marcando o fim do “futebol-estádio” para o próprio.

- Com 27 anos eu abandonei os estádios. Mas nunca abandonei o futebol, pelo contrário, posso até ter diminuído meu fanatismo, mas meu interesse pelo esporte só aumentou.

Nos 32 anos subsequentes, a ausência das “gerais” também o marcou. Esfriaram um pouco sua febre palmeirense, clarearam sua visão clubista, e se não o transformaram por completo, lhe exigiram algumas adaptações. O evento do jogo continua sendo muito valorizado, só que ao invés de sair para assistir, Fernando se programa para ficar.

- Eu acerto o meu dia para antes e depois do jogo. Quem quer me chamar sabe que por exemplo, de domingo, é só antes das 16h e depois das 20h30.

Mas um aspecto de sua personalidade torcedora que se manteve mesmo após as adaptações da vida de torcedor de sofá foi o fato de nunca, em mais de 50 anos de palmeirense, ter uma camiseta do alviverde imponente. Oficial, de passeio, paraguaia, customizada, nenhum tipo de fardamento vestiu o biomédico boleiro.

- Nunca mesmo?

- Nenhuma. Nunca. Eu coincidentemente nunca ganhei, porque também nunca pedi, e quando eu podia comprar, não tive interesse.

- Pelo menos você não tem problema em saber qual camisa dá sorte ou azar.

Fernando riu discretamente e acenou com seu rosto, em aceitação. Seu gesto foi um pouco como sua torcida, em que reconhece o calor, a paixão envolvida, mas opta pela frieza, por recolher-se em seus próprios modos.

O gesto foi também sua última interação relevante. Instantes depois, Matheus Galdezani fazia para o Coritiba o primeiro e único gol da partida, que já estava na metade do seu segundo período. Fernando então não pode evitar em se concentrar no jogo, e acompanhá-lo ao seu modo, fechado em si, com seu olhar isento e ao mesmo tempo apaixonado.

- É, infelizmente não vai dar para a gente hoje.

Três meses e mais de um turno do Campeonato Brasileiro depois, Fernando me recebia na sua casa para uma breve sessão de fotos. De mudanças físicas, apenas algumas mechas de cabelo a mais. Usava roupa social, uma camisa azul-escuro, relógio, calças pretas, sapato de bico fino. Seu semblante beirava o desânimo.

- Foi ridículo o Palmeiras neste ano. Nem sei dizer se há três meses atrás estávamos melhores.

O Palmeiras havia sido derrotado para o Santos alguns dias antes, e praticamente se retirado da disputa do título brasileiro, muito bem encaminhado para o Corinthians. O resultado foi um melancólico adeus à fase competitiva da equipe no ano.

Sem o Verdão, a força-motriz de suas paixões, seu hábito futebolístico deu uma arrefecida. Nas últimas semanas, estava mais empolgado com o livro sobre charutos sobre o qual andava se debruçando. História do fumo, culturas e melhores cigarros, o livro era completo, e o fustigou a reabastecer o estoque de Havanas, que foram dispostas delicadamente dentro de uma bela caixa de madeira, exposta na mesa da sala.

Os preciosos Cubanos de Fernando. (Foto: Lucas Ayres)

Ao fundo, a televisão estava surpreendentemente desligada, apesar das múltiplas transmissões da rodada decisiva da Eliminatória Europeia para a Copa do Mundo, jogos que normalmente assistiria. Seus olhos estavam vidrados no celular, e seu pensamento, longe.

(Fotos: Lucas Ayres)

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