A ferida, o riso e a revanche

Laura Assis
ADobra
Published in
4 min readMar 7, 2021

Uma leitura de O Kit de Sobrevivência do Descobridor Português no Mundo Anticolonial, de Patrícia Lino (Edições Macondo, 2020)

Foto: Camila Assad.

Falar da obra de Patrícia Lino é se deparar sempre com um dilema: qual fio puxar? São muitos os potenciais caminhos dentro da produção dessa autora portuguesa, e a maior parte das suas obras trazem nuances e ramificações que esbarram nas artes plásticas, na estética, na história, na filosofia, no lirismo e na música.

Meu primeiro contato com a produção artística de Patrícia me deu a impressão de vislumbrar um mundo em toda a sua complexidade, engrenagens, possibilidades; entre poemas líricos (que estão em Não é isto um livro?, publicado pelas Edições Vestígios), vídeos, poesia visual, poesia mixada (no álbum I Who Cannot Sing, lançado pela Gralha Edições), performance, intervenção, entre outras para as quais ainda não me ocorre uma classificação, que sequer é necessária.

Já foi dito que uma das marcas da arte legitimamente contemporânea seria a afinação crítica com o passado e presente e, no caso de muitas das obras de Patrícia Lino, eu diria ainda da percepção de que foram elaboradas na urgência do agora e, ao mesmo tempo, engendram respostas futuras para desvios e equívocos que foram cometidos há séculos; essa seria, inclusive, a definição exata do que ocorre em O Kit de Sobrevivência do Descobridor Português no Mundo Anticolonial (Edições Macondo, 2020). Constituindo-se como uma espécie de catálogo, o livro traz uma coleção de objetos — um kit — , apresentados por meio de imagens acompanhadas de textos instrucionais que ironizam a suposta e autodeclarada grandiosidade histórica dos portugueses.

Imagem do interior do livro.

A compilação traz objetos como o Disco Riscado Lusitanístico (um disco com “seis faixas imprescindíveis”, que “reforça a versão histórica do colonizador e assemelha-se a um exercício de mnemónica”), o Saudomasoquismo (“um chicote e uma das extensões possíveis de dois conceitos caros à cultura portuguesa e, de resto, intraduzíveis: o saudosismo e a saudade”), o Cacolusofónica (um rádio particular “criado com o propósito de reproduzir música em língua portuguesa”, mas que “não reproduz música africana”) e o Colônia (uma paródia do famoso Banco Imobiliário, que acabou passando a existir também materialmente, produzido numa edição especial para o lançamento do livro pelas Edições Macondo), que combinam crítica pungente e humor perspicaz, compondo um conjunto de peças extremamente ousadas e, principalmente, provocadoras.

Não foi à toa que, como a autora relatou, em alguns espaços em Portugal, a apresentação de objetos do kit resultou em silêncio, incômodo e até raiva. Já nós brasileiros nos sentimos livres para romper em um riso que, acredito, seja também de revanche.

Uma revanche pode ser lida como o ato de vingar-se de novo, uma espécie de intensificação da vingança. No Latim, a palavra vem de “vindicare”, que também resultou em “reinvindicar”. Estendendo a interpretação, poderíamos dizer que quando rimos, nos vingamos, nos vingamos de novo e reivindicamos algo. É nesta ação que, para mim, reside a questão central deste livro.

Imagem do interior do livro.

Muitas das discussões sobre colonialismo falam da metáfora da violência colonial e suas consequências como uma ferida. Nas palavras de Grada Kilomba, “O colonialismo é uma ferida que nunca foi tratada. Dói sempre, por vezes infecta, e outras vezes sangra”, ideia que é endossada por Jota Mombaça, que constrói o projeto “A ferida colonial ainda dói” (2015) a partir de inscrições realizadas com seu próprio sangue em representações relacionadas à colonização. Já em “Assentamento” (2013), série da artista visual Rosana Paulino, costuras desencontradas em fotografias de corpos negros mostram, segundo a autora, as “marcas transferíveis de uma ferida ancestral que cartografa a carne”. Essas obras e muitas outras mostram, por motivos compreensíveis, uma força covarde colonizadora, que teve e tem o poder de ferir, de devastar.

Rindo se castiga os costumes. Mas rindo se cura a ferida? Acredito que não exatamente e nem acho que o propósito seja esse, mas sim chamar atenção para o absurdo. Talvez aqui não tenhamos que falar em cura, mas em desestabilização de um discurso e de um contexto que consideram normal impingir essas feridas e, apesar a dor, escondê-las a todo custo.

Nesse sentido, este livro de Patrícia Lino atua de forma muito propositiva, como uma engrenagem importantíssima na desmistificação da tão nociva fantasia colonial, conforme definido por Homi Bhabha (1995), e que seria não só uma continuação do discurso colonial como uma espécie de projeção no corpo colonizado, mas também no próprio colonizador, sempre preso numa imagem de controle na qual ele detém o poder, a conquista. É ele quem pode destruir, devastar, arrasar. É ele quem domina e controla.

Entretanto, em 2020, munido dos objetos que compõem o kit, o descobridor português, ridicularizado e atado ao passado, não terá a menor chance de sobreviver neste mundo anticolonial que nós — que aqui falamos, escrevemos, editamos, pensamos a literatura e a arte como instrumentos de resistência e insistência — estamos construindo, e é esta, portanto, a reviravolta perfeita; o motivo que talvez nos faltasse para, além de rir, também sorrir.

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Texto originalmente escrito (e posteriormente revisado e editado para publicação) para a sessão de lançamento do livro, que aconteceu virtualmente em 11 de dezembro de 2020.

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