Laura Assis escreve sobre Cine Studio 33 (Edições Macondo, 2021), novo livro de Estela Rosa
O meu cinema era o Cine Veneza. Bem no centro da cidade, com sessões a três reais. A primeira vez que entrei em uma sala de cinema foi lá, em 1991, levada pela minha mãe na exibição de A Bela e a Fera. O Veneza acabou e se transformou em uma estéril clínica de radiologia, onde muitos anos depois passei uns bons minutos tentando recordar a posição exata em que ficavam a tela e a bilheteria.
Depois do Veneza, houve ainda o Cine Palace, já nos anos 2000. As lembranças que tenho de lá vão do seu auge, uma pré-estreia de Dogville lotada em plena madrugada, à decadência, causada principalmente pelo projeto capitalista de sucateamento e descaso, quando passei quase metade de uma sessão esvaziada de Blue Jasmine limpando os óculos, para só depois perceber que era a tela que estava embaçada (e agora, pensando bem, percebo que até disso tenho uma ponta de saudade). O Cine Palace também acabou e o belo prédio antigo que o abrigava virou uma loja de departamentos igual a todas as outras. Acho bem simbólico o fato de que o último filme que assisti lá tenha sido Aquarius.
Mas essas são minhas lembranças juiz-foranas e Estela Rosa não é de Juiz de Fora, ela é de Miguel Pereira. E o cinema de Miguel e de Estela era o Cine Studio 33. Só que antes de chegar ao cinema, precisamos chegar à cidade e não por acaso, depois do prólogo, cena que situa a escrita, temos um primeiro texto que começa nos situando geograficamente, como quem dá as direções que vão nos levar a um dos lugares onde muitas das memórias agora projetadas começaram a se formar, um endereço no qual chegaremos percorrendo caminhos pelos quais ninguém além de Estela Rosa poderia nos levar:
subindo as bordas da serra, na rj-125, passado o pórtico da cidade, depois da rodoviária, que fica à esquerda de quem chega, seguindo mais duzentos metros, viramos à primeira rua à esquerda, mantendo à direita, depois do chalé, lá embaixo, uma casa.
E é ali que vamos encontrar os documentos no envelope pardo, o teclado Yamaha, o Raul Seixas andando a cavalo, a família com dois Darcys, o praxinoscópio, entre tantos outros objetos, personagens e histórias que pulsam nas páginas do livro. E no movimento de contar essas histórias, Cine Studio 33 vai criando aos poucos a genealogia de um lugar, de uma época, ou melhor, de como era existir e tomar consciência da própria existência ali, naquele momento. Na primeira vez que li o livro, o que mais me chamou a atenção é como essa construção é realizada sem idealização ou saudosismo, mas ao mesmo tempo não mergulha numa postura crítica ou irônica demais, que poderia ter um efeito devastador nessas lembranças.
É muito bonito ver como ao longo dos textos há um equilíbrio entre o conflito e a ternura, tudo bem parecido com a vida, ou com alguns mecanismos da memória, que às vezes sublinham o melhor ou o pior de uma experiência passada, mas sem deixar que um anule o outro. Há, é claro, uma divisão, uma dualidade nisso tudo, não é nada simples o antigo dilema de pertencer e não pertencer, ir e voltar, afinal, acontece de você acordar um dia “pensando no quintal da casa dos teus pais e de repente tá completamente deprê deitada na cama pensando em como seria mais fácil estar lá na cidadezinha do interior”, mas poucas frases depois concluir que: “te juro, se eu pudesse, se eu pudesse mesmo, eu não voltava pra lá mas é nunca”.
“Lá”, entretanto, é o lugar onde muita coisa aconteceu ou começou a acontecer, inclusive o cinema, que ao longo do livro aparece e reaparece, costurando referências, filmes e acontecimentos, todos eles, de uma forma ou de outra, não pelo tamanho, mas pelo impacto produzido nas subjetividades ali representadas, cinematográficos:
sei que quando li esse texto, esses seis minutos mais belos da história do cinema, só conseguia pensar no pequeno palco onde ficava a tela do cinema cine studio 33 quase de frente para a antiga casa da minha amiga de infância onde tantas vezes conversamos sobre dom quixote e sancho pança, garotos que atravessaram a tela do nosso pequeno cinema. mas o cine studio 33, agora abandonado, só passa na tela algumas recordações. e o que fazer, meu deus, se foi sentadinha lá tudo tão imenso tudo tão pequeno que vi a cena mais triste naquele primeiro telão que viria a ser o telão para sempre
Neste primeiro telão, que seria “o telão para sempre”, foram projetadas cenas como o momento trágico de O rei leão e o naufrágio mais famoso do mundo de Titanic, mas é a partir do que foi possível vislumbrar nesse “rasgo na realidade” que também a memória pode ser revisitada e recriada a partir de um outro modo de olhar e lembrar. Por exemplo: é a mudança repentina de cidade da amiga de infância que deflagra a dinâmica de um flashback, com trilha sonora de um clássico de Milton Nascimento, e que corta para um plano aberto que sobrevoa a árvore, a escola, a igreja e de repente fecha num close da “bandeira de uma das cidades mais jovens do rio de janeiro”.
O cinema, portanto, não é apenas metáfora e referência para os movimentos de recordação, recriação e ressignificação do passado, ele aparece também como método, como procedimento de escrita. Há um trabalho de linguagem complexo com os cortes, o manejo das cenas e a construção das imagens que permeiam os textos do livro.
É interessante observar, inclusive, como a linguagem é tensionada de modo a buscar ora um contato com a oralidade e ora experimentando novas formas de recontar velhas histórias, como no texto que encerra a primeira parte do volume, o incrível “A cebola de deus”, espécie de monólogo que mistura oração, simpatia e fluxo de consciência (?) — e vale muito a pena ler nos extras que vêm ao final do livro, em um tipo de epílogo ou quebra da quarta parede, o que o personagem principal dessa cena teve a dizer sobre ela.
Lançado anteriormente na coleção Megamíni (7letras), o poema “Miguel” reaparece em Cine Studio 33 como a segunda parte do livro, agora ambientado e ambientando outras narrativas atravessadas por aquele que é, segundo o site oficial da cidade, “o terceiro melhor clima do mundo”; mais uma entre as várias histórias que fazem parte desse lugar onde quase tudo começa a acontecer muito depois, quase na hora de acabar, mas que mesmo quando acaba, subsiste de outra forma.
em uma cidade de interior as coisas chegam com um atraso a foto do cine studio 33 é de 2002 mas parece, sinceramente, ser de 1994, o único fato que atesta a data é o nome do filme em cartaz tudo para ficar com ele que prova ser então o ano de 2002 pós bug do milênio nós sobrevivemos o cinema não
Assim como os meus cinemas, o de Estela Rosa também não sobreviveu, mas como ela lembra aqui em cima, cá estamos nós. E pós quase tudo, pós tantas coisas que jamais poderíamos imaginar, ainda estamos vivas e com o desejo não só de contar e recontar histórias, mas também de imaginar muitos outros filmes possíveis.
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Cine Studio 33 será lançado oficialmente no dia 10 de setembro, mas já pode ser adquirido no site das Edições Macondo.
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Extras:
A Estela tem uma newsletter e lá ela contou um pouco sobre o processo de elaboração e edição do livro, uma espécie de making of. Clica aqui pra ler.
Na segunda edição da Estúdio 50, revista das Edições Macondo, saíram três poemas do livro, tipo um trailer. É só clicar aqui pra acessar.
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Laura Assis (Juiz de Fora, 1985) é poeta, tradutora, editora e professora, com doutorado em Literatura pela PUC-Rio. É autora do livro Depois de rasgar os mapas (2014) e de três plaquetes de poesia. Integra o coletivo editorial Capiranhas do Parahybuna, edita a revista ADobra e dá aulas de Língua Portuguesa e Literatura no CAp. João XXIII/UFJF.