A tela embaçada da memória

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6 min readSep 8, 2021

Laura Assis escreve sobre Cine Studio 33 (Edições Macondo, 2021), novo livro de Estela Rosa

Foto: Fábio Rocha

O meu cinema era o Cine Veneza. Bem no centro da cidade, com sessões a três reais. A primeira vez que entrei em uma sala de cinema foi lá, em 1991, levada pela minha mãe na exibição de A Bela e a Fera. O Veneza acabou e se transformou em uma estéril clínica de radiologia, onde muitos anos depois passei uns bons minutos tentando recordar a posição exata em que ficavam a tela e a bilheteria.

Depois do Veneza, houve ainda o Cine Palace, já nos anos 2000. As lembranças que tenho de lá vão do seu auge, uma pré-estreia de Dogville lotada em plena madrugada, à decadência, causada principalmente pelo projeto capitalista de sucateamento e descaso, quando passei quase metade de uma sessão esvaziada de Blue Jasmine limpando os óculos, para só depois perceber que era a tela que estava embaçada (e agora, pensando bem, percebo que até disso tenho uma ponta de saudade). O Cine Palace também acabou e o belo prédio antigo que o abrigava virou uma loja de departamentos igual a todas as outras. Acho bem simbólico o fato de que o último filme que assisti lá tenha sido Aquarius.

Mas essas são minhas lembranças juiz-foranas e Estela Rosa não é de Juiz de Fora, ela é de Miguel Pereira. E o cinema de Miguel e de Estela era o Cine Studio 33. Só que antes de chegar ao cinema, precisamos chegar à cidade e não por acaso, depois do prólogo, cena que situa a escrita, temos um primeiro texto que começa nos situando geograficamente, como quem dá as direções que vão nos levar a um dos lugares onde muitas das memórias agora projetadas começaram a se formar, um endereço no qual chegaremos percorrendo caminhos pelos quais ninguém além de Estela Rosa poderia nos levar:

subindo as bordas da serra, na rj-125, passado o pórtico da cidade, depois da rodoviária, que fica à esquerda de quem chega, seguindo mais duzentos metros, viramos à primeira rua à esquerda, mantendo à direita, depois do chalé, lá embaixo, uma casa.

E é ali que vamos encontrar os documentos no envelope pardo, o teclado Yamaha, o Raul Seixas andando a cavalo, a família com dois Darcys, o praxinoscópio, entre tantos outros objetos, personagens e histórias que pulsam nas páginas do livro. E no movimento de contar essas histórias, Cine Studio 33 vai criando aos poucos a genealogia de um lugar, de uma época, ou melhor, de como era existir e tomar consciência da própria existência ali, naquele momento. Na primeira vez que li o livro, o que mais me chamou a atenção é como essa construção é realizada sem idealização ou saudosismo, mas ao mesmo tempo não mergulha numa postura crítica ou irônica demais, que poderia ter um efeito devastador nessas lembranças.

Imagem retirada de reportagem sobre Walter Salles na Revista TPM (2009)

É muito bonito ver como ao longo dos textos há um equilíbrio entre o conflito e a ternura, tudo bem parecido com a vida, ou com alguns mecanismos da memória, que às vezes sublinham o melhor ou o pior de uma experiência passada, mas sem deixar que um anule o outro. Há, é claro, uma divisão, uma dualidade nisso tudo, não é nada simples o antigo dilema de pertencer e não pertencer, ir e voltar, afinal, acontece de você acordar um dia “pensando no quintal da casa dos teus pais e de repente tá completamente deprê deitada na cama pensando em como seria mais fácil estar lá na cidadezinha do interior”, mas poucas frases depois concluir que: “te juro, se eu pudesse, se eu pudesse mesmo, eu não voltava pra lá mas é nunca”.

“Lá”, entretanto, é o lugar onde muita coisa aconteceu ou começou a acontecer, inclusive o cinema, que ao longo do livro aparece e reaparece, costurando referências, filmes e acontecimentos, todos eles, de uma forma ou de outra, não pelo tamanho, mas pelo impacto produzido nas subjetividades ali representadas, cinematográficos:

sei que quando li esse texto, esses seis minutos mais belos da história do cinema, só conseguia pensar no pequeno palco onde ficava a tela do cinema cine studio 33 quase de frente para a antiga casa da minha amiga de infância onde tantas vezes conversamos sobre dom quixote e sancho pança, garotos que atravessaram a tela do nosso pequeno cinema. mas o cine studio 33, agora abandonado, só passa na tela algumas recordações. e o que fazer, meu deus, se foi sentadinha lá tudo tão imenso tudo tão pequeno que vi a cena mais triste naquele primeiro telão que viria a ser o telão para sempre

Neste primeiro telão, que seria “o telão para sempre”, foram projetadas cenas como o momento trágico de O rei leão e o naufrágio mais famoso do mundo de Titanic, mas é a partir do que foi possível vislumbrar nesse “rasgo na realidade” que também a memória pode ser revisitada e recriada a partir de um outro modo de olhar e lembrar. Por exemplo: é a mudança repentina de cidade da amiga de infância que deflagra a dinâmica de um flashback, com trilha sonora de um clássico de Milton Nascimento, e que corta para um plano aberto que sobrevoa a árvore, a escola, a igreja e de repente fecha num close da “bandeira de uma das cidades mais jovens do rio de janeiro”.

O cinema, portanto, não é apenas metáfora e referência para os movimentos de recordação, recriação e ressignificação do passado, ele aparece também como método, como procedimento de escrita. Há um trabalho de linguagem complexo com os cortes, o manejo das cenas e a construção das imagens que permeiam os textos do livro.

É interessante observar, inclusive, como a linguagem é tensionada de modo a buscar ora um contato com a oralidade e ora experimentando novas formas de recontar velhas histórias, como no texto que encerra a primeira parte do volume, o incrível “A cebola de deus”, espécie de monólogo que mistura oração, simpatia e fluxo de consciência (?) — e vale muito a pena ler nos extras que vêm ao final do livro, em um tipo de epílogo ou quebra da quarta parede, o que o personagem principal dessa cena teve a dizer sobre ela.

Lançado anteriormente na coleção Megamíni (7letras), o poema “Miguel” reaparece em Cine Studio 33 como a segunda parte do livro, agora ambientado e ambientando outras narrativas atravessadas por aquele que é, segundo o site oficial da cidade, “o terceiro melhor clima do mundo”; mais uma entre as várias histórias que fazem parte desse lugar onde quase tudo começa a acontecer muito depois, quase na hora de acabar, mas que mesmo quando acaba, subsiste de outra forma.

em uma cidade de interior as coisas chegam com um atraso a foto do cine studio 33 é de 2002 mas parece, sinceramente, ser de 1994, o único fato que atesta a data é o nome do filme em cartaz tudo para ficar com ele que prova ser então o ano de 2002 pós bug do milênio nós sobrevivemos o cinema não

Assim como os meus cinemas, o de Estela Rosa também não sobreviveu, mas como ela lembra aqui em cima, cá estamos nós. E pós quase tudo, pós tantas coisas que jamais poderíamos imaginar, ainda estamos vivas e com o desejo não só de contar e recontar histórias, mas também de imaginar muitos outros filmes possíveis.

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Cine Studio 33 será lançado oficialmente no dia 10 de setembro, mas já pode ser adquirido no site das Edições Macondo.

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Extras:

A Estela tem uma newsletter e lá ela contou um pouco sobre o processo de elaboração e edição do livro, uma espécie de making of. Clica aqui pra ler.

Na segunda edição da Estúdio 50, revista das Edições Macondo, saíram três poemas do livro, tipo um trailer. É só clicar aqui pra acessar.

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Laura Assis (Juiz de Fora, 1985) é poeta, tradutora, editora e professora, com doutorado em Literatura pela PUC-Rio. É autora do livro Depois de rasgar os mapas (2014) e de três plaquetes de poesia. Integra o coletivo editorial Capiranhas do Parahybuna, edita a revista ADobra e dá aulas de Língua Portuguesa e Literatura no CAp. João XXIII/UFJF.

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