Arte censurada: o caso J. Sousa

por Renato Barros de Castro

Fernanda Vivacqua
ADobra
11 min readAug 28, 2021

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Na Fortaleza da década de 1980, o déficit habitacional e a proliferação das favelas chocaram-se com a forte repressão da polícia após os estertores da ditadura militar. Esse embate foi denunciado na arte de J. Sousa, artista que viveu no bairro da Messejana, onde conviveu com um círculo de intelectuais engajados em combater a violência por meio da arte.

Lotação esgotada, 1990, 19,3 x 13 cm.
Lotação esgotada, 1990, 19,3 x 13 cm

O desamparo das populações menos favorecidas não caracteriza apenas certas regiões do Brasil. Para essas pessoas, possuir um lugar para morar, tão trivial para outras, torna-se mais que um objetivo individual, mas uma questão de vida e de morte — de sobrevivência. O percurso do sonho da casa própria ao pesadelo do pedaço de chão para se locomover dignamente pode remeter ao passeio pelos círculos do inferno de Dante Alighieri (1265–1321), poeta florentino cuja imaginação melhor pintou o que o Ocidente poderia imaginar como o reino da punição severa:

A meio caminhar de nossa vida
fui me encontrar em uma selva escura:
estava a reta minha vida perdida.[1]

Não apenas a metade de uma vida, mas uma existência inteira, é o que pode levar a busca por — quem diria — um lugar para viver, não no plano da ideologia cristã, mas naquele da vida terrena, que se torna, ela mesma, a imagem infernal criada por artistas geniais ou autores de textos religiosos.

A terra urbana é espaço para acúmulo de riquezas por aqueles que a possuem: “Embora não seja específico da terra, esta tem sido, historicamente, um dos repositórios mais comuns e importantes da acumulação de riquezas”.[2] Se, de um lado, a terra pode gerar incontáveis dividendos, por outro, permanece inacessível a milhares de indivíduos que, abandonados à própria sorte, migram do ambiente rural para o urbano — no qual precisam se alimentar, trabalhar, viver e, naturalmente, morar. [3]

A desigualdade e a segregação das classes menos favorecidas emergem do interesse do capital em aplicar seus excedentes na produção das cidades visando a sua própria expansão. Independentemente de explorá-las ou não, as terras são o “repositório” de acúmulo de bens — mesmo que apenas potencial ou especulativo[4] — , e a questão social se delineia, assim, com o embate entre aqueles que precisam de espaço para viver e os ditos proprietários. Retomando o contexto de segregação e a ganância dos detentores dos meios de produção, Michel Onfray, em Teoria da viagem: poética da geografia, esboça o perfil do exilado do mundo contemporâneo, viajante de ruas, quarteirões e praças em busca da sobrevivência em um mundo onde não há partilha, em que “tudo já tem dono”:

O capitalismo atual condena do mesmo modo à errância, à ausência de domicílio ou ao desemprego os indivíduos que ele rejeita e amaldiçoa. Que crime eles cometeram? Serem inassimiláveis ao mercado, a pátria dos homens do dinheiro. Qual o castigo? As pontes, as ruas, as calçadas, os porões, as bocas de metrô, as estações ferroviárias, os bancos de praças públicas — o aviltamento dos corpos e a impossibilidade de um porto, de um repouso.[5]

No final da década de 1980, o déficit de moradia no Brasil correspondia a nada menos que 10% do déficit mundial.[6] Por trás dos números alarmantes, pessoas de carne e osso, indivíduos com quem cruzamos na rua, não raro com indiferença, abrigam-se em toldos e marquises de quarteirão em quarteirão. Tudo isso ante a falta de assistência governamental ou interesse efetivo em mudar essa realidade, agravada, ano após ano, com o avanço de políticas neoliberais.

Nessa época, Fortaleza tinha um grave déficit habitacional e assistia a um processo de proliferação das favelas. Essa atmosfera é descrita pelo Padre Bernardo Holmes, ativo nos Manifestos dos Sem Teto, escrito por lideranças locais, em que se discutia a urgência de moradia para os trabalhadores das favelas do Bairro da Messejana. Em Sete dias mais um no deserto, de 1988, quando Fortaleza alcançava a marca de 400 favelas e 800 mil pessoas em condições desfavoráveis de moradia ou sem teto, ele escreve: “A fome, a miséria, o desemprego e a falta de moradia adequada continuam piorando nas favelas da periferia. As tentativas de solução são amplamente noticiadas e interpretadas nos jornais. Cada dia aumentam ocupações, os roubos, os mendigos perambulando pelas ruas”.[7]

O posicionamento do observador: elemento de combate

O bairro da Messejana, local de nascimento de um dos maiores autores brasileiros, José de Alencar, presenciou uma série de lutas entre a população sem-teto e a repressão policial, denunciadas na arte de J. Sousa, que se lançou na carreira de pintor e gravurista de modo autodidata e participou do chamado “Grupo da Messejana”, liderado por Raimundo Mateus, pintor e discípulo de Jean-Pierre Chabloz, no qual também conviveu com artistas como Laís, Wnilson e Jader Oliveira.

Se o grande autor do Romantismo brasileiro deixou a Messejana, o bairro com características bucólicas, com uma lagoa homônima, em que se banhava Iracema, para alçar os grandes jornais da corte e os salões aristocráticos do século XIX, seu conterrâneo, J. Sousa (nome artístico de Jurandir Sousa), viveu de perto o cotidiano de todos aqueles que fazem a vida real de uma grande cidade brasileira, um ambiente onde a desigualdade social é a única coisa que possuem em comum. O caminho do pintor não foi a busca por uma identidade nacional monolítica e idealizada, mas a procura de uma representação da realidade local, nem por isso menos grandiosa: a arte, afinal, está na “verdade”, se assim entendemos a representação do transitório que nos escapa.

Inquieto e dinâmico, J. Sousa desenvolveu estatuária, painéis murais (trípticos em igrejas de Caucaia — CE), ambientação de interiores, e participou de salões de arte e exposições no Ceará. Dentre elas, podem-se citar trabalhos como os “Murais sobre repressão policial” e “Pintores de Messejana” (ambos em Fortaleza, em 1989), este último exibido no Tribunal Regional do Trabalho” (TRT).

Vivendo profissionalmente como pintor e gravurista por uma década, ele enfrentou um dos períodos mais sombrios para os artistas brasileiros, a ditadura militar. Além de gravuras e retratos nas mais diferentes técnicas e estilos, J. Sousa também trabalhou em painéis murais onde denunciava a opressão sofrida por aqueles que, em constante confronto com a polícia, viviam na luta por um espaço para morar na Messejana.

J. Souza e Ebson Paixão em produção de painel (anos 1990)

Sem a reação da população, as favelas talvez equivalessem ao último ponto de uma peregrinação infeliz. A repressão também chegou aos murais de J. Sousa: o artista, que acompanhava tudo isso de perto, foi obrigado a apagar um de seus principais murais, verdadeiro “quarto de despejo”, que a chamada “civilização” fez questão de ignorar.

Arte censurada: o relato de J. Sousa

A arte é uma forma de se posicionar em relação à opressão do mundo e dos poderosos, sobretudo quando surge como denúncia e indignação. Em Cartas a um jovem escritor e suas respostas, Mário de Andrade afirma algo relevante sobre o posicionamento do ser-artista ante os acontecimentos “dantescos” do mundo à sua volta:

Existem duas forças […] empenhadas em luta de vida ou de morte, digamos mais ou menos eufemisticamente: a força da coletividade e a força da chefia. Ou você não-conformistamente se inclui na coletividade ou conformistamente se vende à chefia. […] Não se iluda: num desses partidos você há-de [sic] estar.[8]

O relato de J. Sousa[9], concedido aos leitores de ADobra, serve não apenas como testemunho de um tempo em que se agravaram as condições de vida da população carente, mas faz refletir sobre o poder da arte como elemento de protesto contra o que Mário de Andrade chamou de “o lado da chefia”. Nenhum artista — mesmo o mais misantropo — tem o privilégio de dizer-se acima do bem e do mal. O artista cearense descreve o período sombrio que viveu na Messejana, tendo apenas a arte como instrumento de transformação da realidade:

Morador de uma favela da Messejana, o Parque São Miguel do final da década de 1980, percebi desde cedo que, nas relações de classes, as melhorias para a periferia não ocorriam sem reivindicações da parte de seus moradores, haja vista a ineficiência do Estado.

As constantes repressões policiais se davam com uma série de abusos inenarráveis, não apenas nas áreas ocupadas pelos sem-teto como também dentro da favela Parque São Miguel, de onde partiam as demandas por moradia e espaço para sobreviver.

Acompanhando tudo isso de perto, vivenciei graves violações dos direitos humanos. Fiz diversas denúncias em emissoras locais com lideranças do São Miguel, como o padre Louis d’Arouet. Toda essa realidade me levou, junto a outros artistas (sobretudo músicos), a um trabalho com crianças das escolas locais em que elas mesmas denunciavam, por meio de desenhos, o tema dos raptos.

Em resposta à vulnerabilidade da população e aos diversos tipos de violência praticados dentro da favela, nos reunimos em busca de demonstrar nossa indignação, utilizando para tanto uma outra forma de expressão e denúncia: o uso da arte mural.

Para atrair a atenção das pessoas, fazíamos desenhos representando a violência do Estado, tanto nas ocupações (a que a imprensa se referia como “invasões”) quanto no Parque São Miguel e diante do próprio Cambeba, até hoje centro administrativo do governo estadual.

Entre os recursos pictóricos, utilizávamos os traços do uso da violência animal (cães), espancamentos com cassetetes e a dilaceração das roupas dos manifestantes, bem como o sangue que jorrava ante a extrema violência.

Ilustração feita para ADobra, 2021

A repercussão do nosso trabalho — que se dava até mesmo no momento da produção, em que podíamos notar as pessoas se identificando com as cenas retratadas — nos incentivou a repetir as mesmas experiências artísticas em outras favelas, como o Conjunto Palmeiras.

Importante salientar que, tanto no São Miguel como no Palmeiras não houve consentimento para realização das obras; tudo era feito de forma furtiva e apressada, a fim de evitar a abordagem da polícia e a percepção dos proprietários das casas, que também não se responsabilizariam ante as autoridades pelo que estava ali retratado.

A fim de dar ainda mais visibilidade para essa arte mural, resolvemos dar um passo mais ousado, e ainda mais arriscado: levar nossas pinturas-denúncia diretamente para o centro do bairro da Messejana, utilizando para tanto o muro da paróquia local, com extensão de meio quarteirão e localizada a setenta metros da cabine policial.

Não sem razão, deixamos como sentinelas, nas esquinas, alguns colegas observando a eventual passagem da polícia enquanto iniciávamos os desenhos com rolos e pincéis. O atrevimento também se deu no próprio tema retratado: dessa vez, a polícia batia e massacrava a população, mas, ao mesmo tempo, esta também revidava, jogando tijolos e partindo para o conflito. Em suma, a população desse mural reagia às agressões.

Por volta das 19h, a polícia chegou ao local, enquanto os pintores se dispersaram — de minha parte, me escondi dentro da paróquia. O mural, naturalmente, foi visto pelos policiais, que flagraram minha fuga e me seguiu, me conduzindo a uma cabine de monitoramento em frente à igreja matriz.

Lá, me detiveram por cerca de cinco horas, aguardando a presença de um oficial superior (nessa ocasião, a propósito, tomei conhecimento que eu e os outros artistas murais já estavam sendo buscados pela polícia há algum tempo). Tive a presença de um amigo advogado e de artistas arguindo acerca da liberdade constitucional de expressão, mas, mesmo assim, eles continuaram negando minha soltura, e fui levado ao Sexto Distrito Policial.

Por arrogância ou má vontade, o delegado disse que o caso só poderia ser resolvido na Polícia Federal. Como já era muito tarde, entretanto, o delegado teve uma sugestão inusitada, propondo que eu e outros colegas que estavam na produção da pintura “polêmica” voltássemos ao local, sob escolta da polícia, e destruíssemos todas as figuras, deixando-as irreconhecíveis, enfim, apagando todos os traços do nosso protesto.

A mão do Estado mostrava, mais uma vez, ali, a força da sua opressão.

O fazer artístico: igualdade, afinal?

O relato de J. Sousa (ou melhor, Jurandir Sousa) permite pensar a arte como instrumento de transformação efetiva da realidade. Essa compreensão norteia sua profícua e eclética obra nas mais diversas cores, materiais e matizes. Radicado posteriormente em Itapiúna (CE), onde ainda atua como professor de artes e filosofia na Escola Franklin Távora e como locutor na Rádio FM Planalto, que ajudou a fundar, sua luta por meio da atividade artística, embora menos combativa, continua profusa e variada.

Seja no bairro em que viveu os embates entre a população e a polícia, seja na cidade interiorana em que se radicou e, junto à esposa Ângela, também professora, formou gerações de crianças e adolescentes, tudo converge àquilo que sempre atraiu sua atenção: o elemento humano. Aqui, pode-se falar do humano em seus momentos mais triviais, em uma realidade mais próxima da dignidade de qualquer observador, que poderá reconhecer, nos elementos do dia a dia, a simplicidade que constitui a vida coletiva e a solidão inescapável da sua condição.

O amor da Mamãe Marrom, 1992, 12,5 x 17,2 cm

Cada gravura do artista, independente da técnica, do traço, do crayon ou do material, corresponde a um microcosmo, que, em seu conjunto, espraia e revela a vida em variados ambientes, formando um mosaico que capta a atenção do espectador e o interroga, em sua aparente modéstia, sobre se o mundo poderia ser diferente do que é.

A arte aparentemente despretensiosa de J. Sousa apresenta perguntas e, ao mesmo tempo, sugere respostas.

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[1] Dante Alighieri, A divina comédia (Editora34, 1998), p. 25.

[2] Arlete Moysés Rodrigues. Moradias nas cidades brasileiras (Contexto, 1988), p. 16.

[3] “A desigualdade, a segregação, os guetos, as áreas ‘ricas’ e as ‘pobres’ são produtos da urbanização capitalista. Têm sido incrementadas pelo interesse do capital em aplicar seus excedentes na produção das cidades, força produtiva, que se torna, cada vez mais, o chão da fábrica, com o objetivo de ampliar a acumulação do capital”. Arlete Moysés Rodrigues. Políticas públicas no espaço. In: Revista Cidades: Justiça e Direito, um debate sobre o urbano. Vol. 3, número 22. Presidente Prudente (São Paulo): 2016, p. 44.

[5] Michel Onfray. Teoria da viagem: poética da geografia. Tradução: Paulo Neves. (L&PM, 2015), p. 16.

[6] Arlete Moysés Rodrigues. Moradias nas cidades brasileiras (Contexto, 1988), p. 12.

[7] Bernardo Holmes. Sete dias mais um no deserto: por que as Cebs foram acampar no Cambeba? In: Caderno do CEAS, número 16, jul-ago 1988.

[8] Andrade, Mário de. Fernando Sabino. Cartas a um jovem escritor e suas respostas. (Record, 2003), p. 144–146.

[9] Concedido em 2020 na cidade onde reside atualmente, Itapiúna, no interior do Ceará, a cerca de 110 km da capital, Fortaleza.

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Renato Barros de Castro é jornalista, escritor, pesquisador e doutorando em Letras na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Desenvolve atualmente o projeto Mundo na Janela, sobre viagem, arte e narrativa, cujo selo editorial publicou o livro-álbum Realidade e representação: a crônica gravurística de J. Sousa, disponível em formato impresso (via e-mail) e gratuitamente em formato digital.

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Fernanda Vivacqua
ADobra
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Escrevo, pesquiso no doutorado em Letras (UFRGS), edito na Capiranhas do Parahybuna e na revista ADobra, reviso textos, escrevo de novo, e mais uma vez.