constelares sob êxtase (II), de beatriz rgb

Fernanda Vivacqua
ADobra
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4 min readJan 29, 2022

3043 sons de inspirar e soprar e 615 silêncios

Ш se recortou das incrustações cristalinas, família em contínua gênese entre os subsolos e a superfície. filhe dos vales rochosos, reluzia indistinte na sequência infinita de veios sob erosão, e assim sonhou ser outre. de todos os impulsos magmáticos que ouvia reverberados do manto, uniu-se ao ardor solar o seu desejo por pernas e braços — assim eles se formaram trincando a crosta do tempo de séculos. as fendas entre as partes de seu corpo pétreo escoavam canções à medida que os oito ventos se punham contra seu encontro. interrompeu seus gestos de soltura, estátique somente a receber os ares, encantade com sua própria música. por décadas o vale se povoou de uivos, a melodia dos morros, recebendo tonalidade outra pela presença de Ш em destacamento. no entanto, do pulsar interior, retumbando pela estrutura às suas costas, ambicionou a continuidade da geração — seu próprio ventre e busto, delineando curvas e rosto. na soma de todos os esforços, sorriu quase solte sobre uma das plataformas do vale cristalino, os olhos abertos entre pálpebras. torre mirante do cosmos, enxergava distâncias sem estralar as juntas, e de seu peito o vento compôs outra melodia, desconhecida — a invocação por Я. sabia que a entidade das nuvens viria e o dentro de si escutou que não prosseguisse a esculpir. era preciso ter seus pulsos calcados à rocha, o laço de seu esqueleto com a matriz. afrouxou ombros, ampliou o arco das pernas, bastava o apoio aos pés, a inevitável segurança das mãos presas. dissipou-se do alívio — Я, vinde no vento. eremita dos cirros, le peregrine vagava em contínua viagem. seus contornos somente se delineavam em nuvens, pois os ventos avolumados de anseio se adensam na água, seguindo invisíveis quando ausentes do desejo. descendo das altitudes, permaneceu à frente de Ш, em incessante movimento de convergência. olharam-se até que viesse o dia mais fervoroso entre as horas do verão. Я deveria precipitar pelo corpo de Ш, e de sua boca se alçaram as correntes de ar que entraram por entre as coxas de quartzo, pele cruzada de turmalina negra. o sopro subia em uma corrente que serpenteava morna, hálito confluente dos oito ventos, tomando Ш por seus poros. o vapor liquefez-se ao tocar seu interior mineral, caindo-se em estalactite sobre Я, torvelinho girante em aceleração, elu mesme absorvide em prazer. o corpo de Ш se revolvia, gruta gotejante do salino decomposto em adocicado. quis tomar seu corpo de nuvens contra si desde a boca, agarrando-le com sua perna direita, mas o braço etéreo se repartia quando se tentava tocá-lo. Я se infiltrou ainda mais fine por entre o corpo de Ш, essu tomade pelos fluxos que le percorriam, aberte. o laço aos pulsos era o que lhe prevenia a queda, mas agoniava pelo abraço proibido nas mãos restritas, quebrando-se por dentro — o pó de quartzo triturado em suas juntas brilhava sobre a plataforma do vale. a língua vaporosa de Я seguia a percorrê-le inteire, adentrando lentamente, sob o pêndulo das horas. ao abdicar das resistências, Ш abriu-se num profundo tremor, descerrando o olhar para saber se ainda lhe restava o corpo — entretanto, fixava-se num ângulo de quase zênite, na intuição através do firmamento. aldebarã estava em seus olhos e seus olhos estavam em aldebarã. elu ouviu a estrela — o som que cintilava contou-lhe o verdadeiro nome de Я, e somente elu poderia lê-lo em suas lentes cristalinas. Ш o pronunciou; Я ecoou em choro, elevando-se sobre a densidade da qual se libertara — nimbos a cirros. seus sorrisos se encontraram na mesma altura. Я le acolheu em um abraço de firme abertura, e lá permaneceria, até que Ш escolhesse soltar suas mãos no virar das constelações.

beatriz rgb (Beatriz Regina Guimarães Barboza), não binárie que pesquisa na área de Estudos da Tradução na UFSC — nos estudos feministas de tradução e/m queer~cu-ir — , assim como escreve, traduz, revisa e edita. recentemente foi impresso querides monstres (Douda Correria, 2021), publicou a plaquete with a leer of love (Macondo, 2019) e traduziu com Meritxell Marsal o livro Desglaç, de Maria-Mercè Marçal, como Degelo (Urutau, 2019). edita a Pontes Outras com Emanuela Siqueira e Julia Raiz — com elas traduziu Bash Back! Ultraviolência queer (Crocodilo e n-1 edições, 2020) — , e com Julia edita a revista Arcana. “constelares sob êxtase” faz parte do livro a mística do bestiário não binário, ainda por ser publicado.

Para ler a primeira parte de constelares sob êxtase, clique aqui.

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Fernanda Vivacqua
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Escrevo, pesquiso no doutorado em Letras (UFRGS), edito na Capiranhas do Parahybuna e na revista ADobra, reviso textos, escrevo de novo, e mais uma vez.