Estamos mortos, mas ainda brilhamos: poemas traduzidos de Fernanda Mugica

Anelise Freitas
ADobra
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7 min readSep 30, 2020

Conheci Fernanda Mugica em Bahía Blanca, cidade ao sul da província de Buenos Aires, durante a oitava edição do Festival de Poesía Latinoamericana da cidade, em 2018. Até então não havia lido seus poemas, mas bastou ouví-la para querer conhecer mais sobre a sua poesia. No último dia do festival, já com a mala em mãos, fui ouvir a leitura de Mugica. E essa é uma das últimas lembranças que tenho daquele festival.

Fernanda Mugica nasceu em 1987, na cidade argentina de Mar del Plata. Autora de três livros, a poeta estreou com Alberta (Honesta, 2014), lançando posteriormente Duraznos (Goles Rosas, 2015) e Un billete de mil australes encontrado en un libro de Carl Sagan (EMR, 2018). Esse último é de onde extraí os três poemas traduzidos nesta publicação e foi publicado após obter uma menção no Primeiro Concurso Nacional de Poesia da Editora Municipal de Rosário, em 2017.

Graduada em Letras, pela Universidad Nacional de Mar del Plata, ganhou o concurso 2° Prêmio Municipal Osvaldo Soriano, em 2014, e o 2° Prêmio Provincial “Diagonal Literatura”, de La Plata, em 2016. Integrou, ainda, a antologia de poesia argentina contemporânea Las olas y el viento, organizada por Matías Moscardi, em 2015.

A poeta e crítica de arte, Sofía Calvano, em resenha sobre o livro Un billete de mil australes encontrado en un libro de Carl Sagan, diz que quando começou a lê-lo se sentia fascinada e, ao mesmo tempo, não entendia o que a voz do poema de abertura queria dizer com os versos: “que la tortuga estuvo conmigo/toda la vida/eso quise decirte”. Calvano conclui, em tom interrogativo, que esse deve ser o truque e que é ele que faz a gente ler os poemas de Mugica e dizer: “Ah, esto es poesía”.

No es importante entender un poema, sino experimentar alguna sensación, asociar, abrir lugares en el cuerpo. Pero cuando efectivamente no entendés, entender se vuelve una necesidad, unas ganas de ir un poco más allá de la sensación física, un deseo de acceder al núcleo del poema — el núcleo duro — del poema. (Sofía Calvano)

Mais que um truque, a poesia que se lê, no último livro publicado pela poeta, é uma testagem da metafísica, uma sondagem da contemplação. A intimidade das coisas e a construção do signo doméstico se articulam num olhar para coisas fortuitas e, também, coisas aparentemente desconexas, como a imagem da tartaruga. Mas é justamente essa a chave de leitura: Mugica aposta na sonoridade e no plano imagético para chamar a atenção de suas (seus) leitoras (es), e uma vez compreendendo “ah, isso é poesia”, podemos encontrar o arranjo de seu pensamento poético.

Para esta poética importa pensar não a morte de uma estrela, mas sim que mesmo depois de morta ela continua brilhando por milhões de anos. Assim como não somos nós que passamos pelo tempo, mas sim o tempo que passa por nós, também o espaço obedece a essa premissa. Mapeando a geografia das coisas, Mugica cria pelos fragmentos contemplativos do que se nos apresenta banal, mas que nos seus poemas se potencializam.

Assim como Sofía Calvano, a minha experiência de leitura do livro de Fernanda Mugica foi também de atração e repelimento, e isso é fascinante. Por isso, apresento a tradução inédita em Língua Portuguesa de três poemas de Un billete de mil australes encontrado en un libro de Carl Sagan.

por Anelise Freitas

i.

que la tortuga estuvo conmigo
toda la vida / eso quise decirte
la tarde del desliz
pero el pasto creció sobre las vías y
el revoque de tu casa se
resquebrajó bastante antes
de que yo pudiera siquiera
articular la frase / después la seguí
en los diálogos imaginarios
había cambiado de nombre
mascullaba inglés mi tristeza
era quizás la misma / en verdad
algo nos complicó
no llegué a decir
la tortuga estuvo conmigo
toda la vida / lo dije en otro ritmo
como las piedras que
constituyen otra dimensión
si se las mira con paciencia
durante días meses años
a veces dicen algo pero
ahora soy una zombie
miro las cosas con sensualidad
retrospectiva no descarto volver a la vida
porque de la vida no me fui
por motivos banales
ahora duermo vestida
como una vagabunda o
como una guerrera
medieval y me quedo en la mitad
de la escalera de esta casa a medio terminar
no me sorprende: la muerte no es para un zombie
un motivo banal

i.

que a tartaruga esteve comigo
toda a vida / eu quis te dizer isso
na tarde do deslize
mas o mato cresceu sobre as vias e
o reboco da tua casa
caiu bem antes
de que eu pudesse sequer
articular a frase / depois a seguí
nos diálogos imaginários
havia mudado de nome
murmurava inglês minha tristeza
era talvez a mesma / na verdade
algo nos bagunçou
não cheguei a dizer
a tartaruga esteve comigo
toda a vida / o disse em outro ritmo
como as pedras que
constituem outra dimensão
se olhá-las com paciência
durante dias meses anos
às vezes dizem algo mas
agora sou uma zumbi
olho as coisas com sensualidade
retrospectiva eu não descarto voltar à vida
porque eu não deixei a vida
por motivos banais
agora durmo vestida
como uma vagabunda ou
como uma guerreira
medieval e fico na metade
da escada desta casa semiterminada
não me surpreende: a morte não é para um zumbi
um motivo banal

iv.

voy a aferrarme a cosas
que ninguna máquina pueda
todavía
hacer por mí
voy a tener suerte
quizás tener suerte sea algo
que debiéramos valorar
todavía
vemos un cielo antiguo,
anterior a los drones.
qué es
grita un caballo ciego y desbocado
adentro mío
que desconfía
de su instinto
y se pregunta
qué es
de qué está hecho
ese universo
que todavía no puede
ser arrojado
como un dato
simple
binario
que se abre paso con más ánimo
que la verdad
que el río
que el universo
ciego
desbocado
que al fin y al cabo
cabe
en un mapa de bits

iv.

vou me agarrar a coisas
que nenhuma máquina possa
ainda
fazer por mim
vou ter sorte
talvez ter sorte seja algo
que deveríamos valorizar
ainda
vemos um céu antigo,
antes dos drones.
o que é
grita um cavalo cego e desbocado
lá dentro de mim
que desconfia
de seu instinto
e se pergunta
o que é
do que está feito
esse universo
que ainda não pode
ser lançado
como um dado
simples
binário
que faz seu caminho com mais coragem
que a verdade
que o rio
que o universo
cego
desbocado
que ao fim e ao cabo
cabe
em um mapa de bytes

v. tampoco subestimar la belleza de la coca-cola

¿sentís que casi no podés desear?
el día de hoy, al menos
¿nada podría interesarte realmente?
¿lo único que te conecta con vos mismo es salir bien en fotos?
¿alguna vez te preguntaste
cuál es la diferencia entre algunas personas
y otras?
alguien te dijo ‘onda’
algunas personas tienen un plus de onda
sí, pero hubo algo de eso que
nos devastó

la única diferencia
entre algunas personas
y otras / bueno
la única diferencia entre vos
y yo
¿cómo decirlo? es que
¡eres como una pepsi obstinada tú
nunca serás la coca-cola!

esto no importa verdaderamente pero
qué es lo que importa
me da miedo que de tanto mirarnos desde afuera
y registrar cada momento
se desarrolle una nueva conciencia
colectiva y ajena
en la que sólo existamos
desde fuera y afuera
como el planeta tierra
en esas fotos tomadas desde muy lejos
en el universo
un billete de mil australes encontrado en un libro de carl sagan
en realidad ya estamos muertos
pero nos parece que brillamos
como esas estrellas que dejaron de existir hace miles de años
no sabemos muy bien qué hay adentro
pero en un adentro minúsculo
no sabemos por qué
ciertas células proliferan
de una manera que no podemos controlar
le prestamos atención a lo grande
y a lo que va a ocurrir en millones de años
pero no entendemos nada de lo que está pasando acá
si nos estamos extinguiendo
y ese es el motivo de nuestra angustia
o estuvimos todo el día mal
porque hacía calor
y no nos habíamos dado cuenta

v. nem subestimar a beleza da coca-cola

você sente que quase não pode desejar?
hoje, ao menos
nada poderia realmente te interessar?
a única coisa que te conecta consigo é sair bem nas fotos?
alguma vez se perguntou
qual é a diferença entre algumas pessoas
e outras?
alguém te disse ‘vibe’
algumas pessoas têm un plus de vibe
sim, mas houve um pouco disso que
nos devastou

a única diferença
entre algumas pessoas
e outras / bom
a única diferença entre você
e eu
como dizer? é que
você é como uma pepsi obstinada você
nunca será a coca-cola!

isso verdadeiramente não importa mas
o que é que importa
me dá medo que de tanto nos olharmos de fora
e registrar cada momento
se desenvolva uma nova consciência
coletiva e alheia
na qual somente existamos
de fora e lá fora
como o planeta terra
nessas fotos tiradas de muito longe
no universo
uma nota de mil austrais encontrada em um livro de carl sagan
na verdade já estamos mortos
mas parece que brilhamos
como essas estrelas que deixaram de existir há milhares de anos
não sabemos muito bem o que há lá dentro
mas em um lá dentro minúsculo
não sabemos porquê
certas células se proliferam
de uma maneira que não podemos controlar
prestamos atenção ao grande
e ao que vai ocorrer em milhões de anos
mas não entendemos nada do que está acontecendo aqui
se estamos nos extinguindo
e esse é o motivo de nossa angústia
ou estivemos mal todo o dia
porque fazia calor
e não havíamos nos dado conta

Realização: Luis Marecos

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Anelise Freitas
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Hosstess da Matinta. Editora nas Capiranhas do Parahybuna e na Revista A Dobra.