Gloria Anzaldúa: quando se lê de perto uma poeta

Marcela Batista
ADobra
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11 min readSep 29, 2020

Pero la piel de la tierra no tiene costuras.

Al mar no se le pueden poner vallas,

el mar no se detiene en las fronteras.

Estava no meu primeiro ano de mestrado, em 2016, participando de uma mesa sobre estudos pós-coloniais e feminismos do sul, em um evento realizado pela CLACSO, quando conheci Gloria Anzaldúa pela primeira vez. Era dezembro e o calor fortíssimo, na sala abafada, naquela língua estranhamente minha, ouvi pela primeira vez sobre sua obra crítica e sua força ancestral, de mulher que ama mulher, chicana, poeta, pesquisadora acadêmica, feminista e que a partir deste momento começou a fazer parte da minha vida.

No dia seguinte estive na Librería Mujeres, livraria dedicada a publicações de tudo que fosse relacionado aos estudos de gênero e ao feminismo. Os livros de poesia eram majoritariamente escritos por mulheres, os livros teóricos também. Saí de lá com alguns livros de poesia, em sua maioria de autoras argentinas, e a obra Borderlands/La frontera: la nueva mestiza (Capitán Swing, 2015).

Divulgação: Capitán Swing

Este livro conta com uma coleção de ensaios e poemas, escritos no encontro fronteiriço das línguas e das culturas, nos limites do México com o Texas, que nos convidam a conhecer as “preocupações pela vida interior do Ser, e pela luta desse Ser em meio à adversidade e ao desalento” (p. 36). É um convite escrito a meio caminho, com trechos em inglês, em castelhano e termos em náuatle, tecendo um histórico de vida serpenteado por fatos históricos, poemas e dados biográficos, criando um fluxo cíclico e interligado entre eles.

A leitura dos poemas e ensaios do livro abre nossos olhos para outra realidade, a que mescla culturas, territórios, idiomas, prosa e poesia convivendo no mesmo espaço, criado por Anzaldúa. Desde esse momento, desejei ler de perto seus poemas, quer dizer, aproximar o olhar ao outro lado da cortina linguística que há em seu texto.

Dos exercícios de ler de perto a poesia da autora, compartilho aqui algumas traduções do castelhano para o português, inéditas em nosso idioma. Todos os poemas foram retirados da obra já citada, Borderlands/La frontera: la nueva mestiza (Capitán Swing, 2015).

Essa reluzente coisa escura
(para Sandra Rounds, Bessie Jo Faris e Denise Brugman)

Voltou a fechar a porta
para escapar à escuridão,
só que está como boca de lobo nesse armário.

Uma parte enterrada de você se saiu com a sua
me escolheu para abrir apenas uma ranhura
ouvir a súplica não pronunciada
ver o animal atrás das grades
de suas sobrancelhas.

Isto não é novo.
Queer de cor, branca pobre, oculta,
pretendendo ser branca,
fervendo de ódio, raiva,
ignorante de sua origem,
enlouquecida por não saber
quem são,
me escolhem para levantar as máscaras.

Eu sou a única cara redonda,
pinta de índia, esquisitinha,
entre os professores universitários, em workshops, em congressos
e temerária o bastante para te enfrentar.
Sou a carne na qual afunda as unhas
minha é a mão que corta enquanto segue se aferrando a ela
o rosto no qual cospe seu vômito
arrisco sua prudência
e a minha.

Quero te dar as costas
lavar as mãos de você
mas minhas mãos recordam cada costura
cada prego cravado nessa parede
meus pés conhecem cada rocha que pisa
quando cambaleia eu também tropeço
e recordo
ele/eu/eles que gritamos
empurra Gloria respira Gloria
sinto suas mãos que me seguram, que me demandam
até que me encontro frente a essa ensanguentada escuridão
pulsante
tentando gritar
entre suas pernas
sinto de novo as garras que me arranham o ventre.
Lembro-me de que lhe/me/os odiava porque me empurravam
como eu te empurro
recordo o revestimento que se rompeu
inundando as paredes
recordo abrir os olhos um dia
notando que algo faltava.

Faltava a dor, faltava o medo
que toda minha vida havia caminhado junto a mim.
Foi então quando vi o ente numinoso
era negro e tinha meu nome
falava comigo e eu falava com ele.

Aqui há quatro mulheres apestando culpa
você por não dizer seus nomes
eu por não estender antes minha mão.
Não sei quanto posso seguir nomeando
esse animal escuro
adorá-lo para que saia de você, de mim
chamá-lo bom ou mulher-deusa
enquanto todos dizem não não não.

Sei que sou essa Besta que rodeia sua casa
espia pela janela
e que vê a si mesma como minha presa.

Mas sei que você é a Besta
sua presa é você
você a parteira
você essa reluzente coisa escura
sei que se reduz a isso:
vida ou morte, life or death.

Esa reluciente cosa oscura
(para Sandra Rounds, Bessie Jo Faris y Denise Brugman)

Has vuelto a cerrar la puerta
para escapar a la oscuridad,
solo que está como boca de lobo en ese armario.

Una parte enterrada de ti se salió con la suya
me eligió para abrir apenas una ranura
oír el ruego no pronunciado
ver el animal tras los barrotes
de tus pestañas.

Esto no es nuevo.
Queer de color, blanca pobre, oculta,
pretendiendo ser blanca,
hirviendo de odio, enojo,
ignorante de su origen,
enloquecida por no saber
quiénes son,
me eligen para levantar las máscaras.

Yo soy la única cara redonda,
pico de india, rarita,
entre los profesores universitarios, en workshops, en congresos
y lo bastante temeraria para enfrentarte.
Soy la carne en la que hundes las uñas
mía es la mano que cortas mientras sigues aferrándote a ella
el rostro al que escupes tu vómito
arriesgo tu cordura y la mía.

Quiero volverte la espalda,
lavarme las manos de ti
pero mis manos recuerdan cada costura
cada clavo hundido en esa pared
mis pies conocen cada roca que pisas
cuando te tambaleas yo también doy traspiés
y recuerdo
a él/mí/ellos que gritamos
empuja Gloria respira Gloria
siento sus manos que me sujetan, que me instan
hasta que me encuentro frente a esa ensangrentada oscuridad
pulsante
intentando gritar
por entre tus piernas
siento de nuevo las garras que me arañan el vientre.
Me acuerdo de que le/me/los odiaba porque me empujaban
como yo te empujo
recuerdo el revestimiento que se rompió
inundando las paredes
recuerdo abrir los ojos un día
notando que algo faltaba.

Faltaba el dolor, faltaba el miedo
que toda mi vida había caminado junto a mí.
Fue entonces cuando vi el ente numinoso
era negro y tenía mi nombre
me hablaba y yo le hablaba.

Aquí hay cuatro mujeres apestando a culpa
tú por no decir tus nombres
yo por no alargar antes mi mano.
No sé cuánto puedo seguir nombrando
ese animal oscuro
camelarlo para que salga de ti, de mí
llamarlo bueno mujer-diosa
mientras todos dicen no no no.

Sé que soy esa Bestia que rodea tu casa
espía por la ventana
y que te ves a ti misma como mi presa.

Pero sé que tú eres la Bestia
su presa eres tú
tú la partera
tú esa reluciente cosa oscura
sé que se reduce a esto:
vida o muerte, life or death.

(ANZALDÚA, Gloria. Borderlands/La frontera: la nueva mestiza, 2015, p. 235–237)

Os poetas têm estranhos hábitos alimentares
(para Irenita Klepfisz)

Escuridão sem janelas não há lua que se deslize
pelo céu noturno
entre carícia e chicote levo a égua rebelde
até a borda
tiro as crostas de suas feridas
Seu corpo desmorona sobre si mesmo
pelo buraco
minha boca

No limite entre crepúsculo e alba
escuto golpes gelados, minha alma
deveria saltar com a cara caindo
degrau por degrau do templo
coração oferecido ao sol da meia-noite

Ela dá esse salto
do alto do penhasco
os cascos coiceiam no ar errante
cabeça acolhida entre suas pernas
um vento frio correndo as costas
corta lágrimas dos meus olhos
o punhal de obsidiana, ar
o céu da noite sozinha sozinha

Ela se abre de pernas
para prender o vento
corre para encher o abismo
a cavalgada noturna abriu
sua fome contornada de dentes
dou de comer a minha garganta minhas mãos
que se sacie de mim
até se engravidar comigo.
A ferida é uma cura mais profunda.

Suspensa no céu líquido
eu, feto de águia, serpente viva,
penas que crescem da minha pele
o vento que balança
os muros de rocha contendo
a Terra.
Dobro os joelhos, freio a queda
não há braço que se quebre
animal assombrado
me refugio no profundo de mim mesma
tiro do abismo em
seus espaços talho meu rosto
que se faz fino cada vez mais
covas dos olhos vazias
abrindo túnel aqui abrindo túnel lá
reptar de serpentes
suas presas perfuram minha carne

caindo

em um ar sem rosto.
Dar o salto um ato tão
habitual como escovar os dentes.

A Terra se abre
chego ao fundo do abismo
me ergo à borda
entre carícia e chicote levo a égua rebelde
volto a dar o salto
saltar de precipícios um vício
agitando surrando
carne para criar imagens
colando penas
em meus braços
deslizando em buracos
com serpentes de cascavel

escuro sem janelas sem lua que se deslize
pelo céu noturno
a bocarra se abre totalmente deslizo dentro
Respirando fundo olhos fechados
a engulo todinha

Los poetas tienen extraños hábitos alimentarios
(para Irenita Klepfisz)

Oscuridad sin ventanas no hay luna que se deslice
por el cielo nocturno
entre caricia y látigo llevo a la yegua rebelde
hasta el borde
quito las costras a sus heridas
Su cuerpo se derrumba sobre sí mismo
por el agujero
mi boca

En el lindero entre ocaso y alba
escucho golpes helados, mi alma
debería saltar con la cara cayendo
peldaño a peldaño del templo
corazón ofrecido al sol de medianoche

Ella da ese salto
desde el alto risco
los cascos patean en el aire errante
cabeza cobijada entre sus piernas
un viento frío jalándole la espalda
corta lágrimas de mis ojos
el cuchillo de obsidiana, aire
el cielo de la noche sola sola

Ella se abre de piernas
para atrapar el viento
corre a llenar el abismo
la cabalgada nocturna ha abierto
su hambre bordeada de dientes
le doy a comer mi garganta mis manos
que se sacie de mí
hasta preñarse conmigo.
La herida es una sanación más profunda.

Suspendida en el cielo líquido
yo, feto de águila, serpiente viva,
plumas que crecen de mi piel
el viento que zangolotea
los muros de roca conteniendo
la Tierra.

Doblo las rodillas, freno la caída
no hay brazo que se rompa
animal asombrado
me refugio en lo profundo de mí misma
tiro del vacío en
sus huecos tallo mi rostro
que se hace fino cada vez más
cuencas de los ojos vacías
abriendo túnel acá abriendo túnel allá
reptar de serpientes
sus colmillos perforan mi carne

cayendo

en un aire sin rostro.
Dar el salto un acto tan
habitual como lavarme los dientes.

La Tierra se abre
llego al fondo del abismo
me asomo al borde
entre caricia y látigo llevo a la yegua rebelde
vuelvo a dar el salto
saltar de precipicios una adicción
agitando apaleando
carne para crear imágenes
pegando plumas
en mis brazos
deslizándome en agujeros
con serpientes de cascabel

oscuro sin ventanas sin luna que se deslice
por el cielo nocturno
las fauces se abren totalmente me deslizo dentro
Respirando hondo ojos cerrados
me la trago todita

(ANZALDÚA, Gloria. Borderlands/La frontera: la nueva mestiza, 2015, p. 196)

Deixar-se ir

Não basta
decidir se abrir.

deve afundar os dedos
no umbigo, com as duas mãos
bem abertas,
espalhar lagartos e iguanas chifrudas,
as orquídeas e girassóis,
voltar ao labirinto ao contrário.
Agitá-lo.

Ainda assim, não termina de se esvaziar.
Talvez um catarro verde
se oculte em sua tosse.
Talvez nem saiba
que está aí até que cresce
um nó em sua garganta
e se torna rã.

Uma cosquinha produz um sorriso secreto
em seu paladar
cheio de orgasmos diminutos.

Mas antes ou depois
se revela.
A rã verde coaxa indiscreta.
Todos erguem a vista.
Não basta
abrir-se uma vez.
De novo tem que afundar os dedos
em seu umbigo, com as duas mãos
abertas de todo,
soltar ratos e baratas mortas,
chuva de primavera, espiga jovem.
Voltar ao labirinto ao contrário.
Agitá-lo.

Esta vez deve se deixar levar.
Enfrentar o dragão cara a cara
e deixar que te engula o horror.
- Se dissolve em sua saliva
- ninguém te reconhece como poça
- ninguém sente saudades suas
- nem sequer te recordam
e o labirinto nem sequer
você o criou.

Passou ao outro lado.
Ao seu redor todo espaço.
Sozinha. Com o nada.
Ninguém vai te salvar.
Ninguém vai cortar o que te ata,
cortar as espinhas abundantes em torno de você.
Ninguém vai assaltar
os muros do castelo nem
te despertar com um beijo,
descer pelo seu cabelo
nem te subir
no corcel branco.

Não há ninguém que
vá alimentar o anseio.
Aceite-o. Terá
que se bastar com você, faça-o você mesma.
E tudo em volta um terreno vasto.
Sozinha. Com a noite.
Da escuridão deve se fazer amiga se
quer dormir com a noite.

Não basta
deixar-se ir duas, três vezes,
cem. Logo tudo se torna
maçante, inadequado.
A cara aberta da noite
já não te interessa.
E logo, uma vez mais, regressa
ao seu elemento e
como peixe no ar
se manifesta tal qual
só entre inspirações.
Mas já te cresce
brânquias nos peitos.

Dejarse ir

No basta con
decidir abrirse.

debes hundir los dedos
en el ombligo, con las dos manos
bien abiertas,
desparramar lagartos e iguanas cornudas,
las orquídeas y girasoles,
volver el laberinto del revés.
Agitarlo.

Aun así, no te acabas de vaciar.
Quizá una flema verde
se oculte en tu tos.
Quizá ni sepas
que está ahí hasta que crece
un nudo en tu garganta
y se vuelve rana.

Un cosquilleo produce una sonrisa secreta
en tu paladar
lleno de orgasmos diminutos.

Pero antes o después
se revela.
La rana verde croa indiscreta.
Todos alzan la vista.
No basta
con abrirse una vez.
De nuevo tienes que hundir los dedos
en tu ombligo, con las dos manos
abiertas del todo,
soltar ratas y cucarachas muertas,
lluvia de primavera, elote joven.
Volver al laberinto del revés.
Agitarlo.

Esta vez debes dejarte llevar.
Enfrentar el dragón cara a cara
y dejar que te trague el horror.
- Te disuelves en su saliva
- nadie te reconoce como charco
- nadie te extraña
- ni siquiera te recuerdan
y el laberinto ni siquiera
lo creaste tú.

Has pasado al otro lado.
A tu alrededor todo espacio.
A solas. Con la nada.

Nadie va a salvarte.
Nadie va a cortar lo que te ata,
cortar las espinas abundantes en torno a ti.
Nadie va a asaltar
los muros del castillo ni
despertarte con un beso,
descender por tu cabello
ni subirte
en el corcel blanco.

No hay nadie que
vaya a alimentar el anhelo.
Acéptalo. Tendrá
que bastar contigo, hazlo tú misma.
Y todo alrededor un terreno vasto.
A solas. Con la noche.
De la oscuridad debes hacerte amiga si
quieres dormir en la noche.

No basta
con dejarse ir dos, tres veces,
cien. Pronto todo se vuelve
aburrido, inadecuado.
La cara abierta de la noche
ya no te interesa.
Y pronto, una vez más, regresas
a tu elemento y
como pez en el aire
te manifiestas tal cual
solo entre inspiraciones.
Pero ya te crecen
branquias en los pechos.

(ANZALDÚA, Gloria. Borderlands/La frontera: la nueva mestiza, 2015, p. 226–228)

A canção do canibal

É nosso costume
consumir
a pessoa que amamos.
Carne proibida: inchados
genitais mamilos
o escroto a vulva
as plantas dos pés
as palmas das mãos
fígado e coração são mais gostosos.
O canibalismo é bendito.

Levarei o osso da sua mandíbula
em torno do pescoço
escuta suas vértebras
osso bate contra osso nos meus pulsos.
Tramarei seus dedos em torno da minha cintura
- que abraço rigoroso!-.
Sobre o coração levarei
um broche com uma mecha do seu cabelo.
À noite dormirei abraçando
seu crâneo afiando
meus dentes em seu sorriso desdentado.

Os domingos têm missa e comunhão
e deixarei de lado suas relíquias.

La canción del caníbal

Es nuestra costumbre
consumir
a la persona que amamos.
Carne prohibida: hinchados
genitales pezones
el escroto la vulva
as plantas de los pies
las palmas de las manos
hígado y corazón saben mejor.
El canibalismo es bendito.

Llevaré el hueso de tu mandíbula
en torno al cuello
escucha tus vértebras
hueso golpea contra hueso en mis muñecas.
Me enhebraré tus dedos en torno a la cintura
- qué abrazo riguroso -.
Sobre el corazón llevaré
un broche con un mechón de tu cabello.
Por la noche dormiré abrazando
tu cráneo afilando
mis dientes en tu sonrisa desdentada.

Los domingos hay misa y comunión
y dejaré a un lado tus reliquias.

(ANZALDÚA, Gloria. Borderlands/La frontera: la nueva mestiza, 2015, p. 200)

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Marcela Batista
ADobra
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reviso, escrevo, reescrevo e traduzo. às vezes faço colagens. edito na Capiranhas do Parahybuna e nADobra.