Poesia ruim para dias piores #5

ADobra
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4 min readFeb 9, 2022

uma série de Beatriz Bastos

Nada acontece de uma vez

Para Chloë e Fernanda

Eu te amo
veio me ver
fez macarrão
e fez minhas sobrancelhas
me beijou profundamente
e me contou da doença do
cachorro com o qual vive
agora e como se passou essa
ferida em sua mão
por pouco não espatifou os
óculos e sobre uma mulher
que insistia em viver
sozinha longe das filhas no
seu braço uma nova
tatuagem ainda danço
sozinha e gosto de livros
um pouco desorganizados
para que eu possa me
surpreender ao me deparar
com aquele determinado
volume com uma dedica-
tória “p/ sempre” de X
seus abraços enfeitiçados
e essa atividade tumultuada
da pele, sua pele, seus olhos,
nossa voz mundana que
desafia os vizinhos e se fecha
e se abre feito uma rosa
precária em um poema
que
um dia
- já faz tanto tempo -
Verônica falou

*

Uma mulher sob influência

eu te passo a previsão do tempo
está
tá chovendo
tá sol
vi um arco-íris
calor da porra
você viu
extremamente utilitária
e satisfatória

*

Meu corpo respira calmo entre paredes alargadas

eu me pergunto quais
músicas você ouve
eu penso que
eu gostaria de
te mostrar
umas músicas
quais músicas
eu poderia
te mostrar
no entanto não
tenho certeza
se você ouve música
ou mesmo se você
gosta de música
como eu gosto
de música
mas eu quando
escuto certas músicas
lembro de você
será que você
quando ouve certas coisas
lembra de mim
e pensa em quais
músicas poderíamos
mas eu nem sei se
você gosta de mim
como eu gosto
de música

*

Cassavetes

Gina, esses dez minutos de atuação foram uma das coisas mais comoventes que já vi na vida, é uma das coisas mais comoventes que já vi, Gina. Era uma coisa viva.

- Relaxa

Volta pra mim.

Daqui a 100 anos ainda será poderoso

Frame jpg

Sangramento
3 pílulas do dia seguinte
Consecutivas
Ou foram 4?
Menstruação enlouqueceu
Sim, foi totalmente consensual
Mas é no meu corpo
Aqui
Que ficam os ecos
E os abismos em vermelho

*

A lua brilha
e não é minha

Estrelas douradas

Salve a Amazônia
A Luta contra o Racismo
Agora ela já não dançava no chão
Ela abriu a porta e indicou que ele se fosse
Ela conhecia a fúria
Ela sabe de onde vem a morte
Eles já sabem
Ele disse eu vou
Ela disse vai
Leva a água é sua
Ele disse eu vou levar a
Água você não entende
Eu vim aqui por uma alegria
Foi tão rápido o modo como ela abriu
A porta mais firme do que
outrora

- Vá, anjo, vá

O anjo se foi
Seus pés, cada vez mais
Sozinhos, dançavam
Ao ritmo de uma estranha
nuvem de algoritmos

*

As folhas e as pedras e todas as coisas enormes eu carrego eu levo e isso de ser grande é apenas uma ilusão nós formigas sabemos ser formiga é enorme vocês não veem mas eu vou dançando e tudo isso que vocês acham perigoso um avião uma noite em alto mar uma escada pra mim não é nada é poça d’água é fogo de palha isso que vocês acham migalha acham bobo acham chão acham dia a dia rotineiro cansado pandêmico tudo isso eu desfaço e leve levo revelo danço qualquer coisa vocês não imaginam mas formigas dançam e um formigueiro não é quieto uma formiga não é quieta e tudo depende apenas de um ponto de vista para virar dança

*

Beatriz Bastos nasceu no Rio de Janeiro. Publicou Areia (Aqueronta Movebo, 2000), Pandora — Fósforos de Segurança, em coautoria com Fernanda Branco (Azougue, 2003), Da Ilha (Editacuja, 2009) e balaclava (Coletivo Janga, 2020). Publicou, com a editora Luna Parque, e em parceria com Paulo Henriques Britto, uma primeira antologia brasileira de Frank O’Hara, Meu coração está no bolso (2017). Também traduziu, juntamente com Ismar Tirelli Neto, o livro Silêncio, de John Cage (no prelo, Ed. Cobogó). Trabalha como tradutora e é professora na Educação Infantil.

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Os textos anteriores da série “Poesia ruim para dias piores” podem ser lidos no site do Coletivo Janga nos seguintes links:

#1

#2

#3

#4

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