Três poemas de Yrsa Daley-Ward em tradução de Laura Assis

ADobra
ADobra
Published in
5 min readNov 7, 2021

“Eu amo a palavra amor / mesmo / mas só bem longe de casa”

Yrsa Daley-Ward (Inglaterra, 1984) é uma escritora e poeta de ascendência jamaicana e nigeriana. É autora do livro de poemas Bone (CreateSpace Independent Publishing, 2014; Penguin, 2017) e do livro de memórias The Terrible (Penguin, 2018), vencedor do Prêmio PEN Ackerley. É uma das roteiristas de Black Is King (2020), filme musical de Beyoncé Knowles-Carter. Os três textos aqui traduzidos foram retirados de Bone, livro de estreia da autora, que reúne poemas que abordam, principalmente, temas densos e urgentes, como violência sexual, misoginia, racismo e seus impactos na vida de mulheres negras queer. Muitos textos passam também por questões relacionadas aos percalços das relações familiares e afetivas em geral, tocando, ainda, em assuntos como religião, autoimagem, relacionamentos abusivos e saúde mental. Ao longo dos poemas do livro, a poeta constrói a história de uma voz que atravessa o inferno da desumanização e que, ao fim deste duro caminho, se reencontra, por meio da poesia, em um contexto no qual poderá finalmente ter sua existência reconhecida, vista e ouvida.

*

questão

Já procurei demais meus
pais mortos em mulheres com a
presença do meu pai e homens com a
aparência da minha mãe
quase sempre involuntário
geralmente um fracasso.

Eu gosto dos barulhos
que nossos corpos fazem
quando começam a se gostar.

Eu amo a palavra amor,
mesmo,
mas só bem longe de casa.

*

alcachofras

Até que vocês tenham sido as últimas
sentadas num bar na esquina e
ela tenha bicado o rum escuro na
borda do seu copo e te ensinado
a arte de comer alcachofras

até ali
você ainda não era uma mulher.

Até que você tenha suavizado o beijo para
lamber a carne,
morder o lábio,
engolir o sumo
que ela diz que vai te purificar
até que você abra, suspire ao ver aquela cor,
encare o âmago dela e aprenda o que
de melhor os dedos podem fazer

até você chegar ainda mais longe
e adentrar o coração espesso, quente
a vida ainda não tinha começado.

Antes de terem te prometido.
Antes dela se tornar uma mentirosa.
Antes de você ser desmontada, consertada e
quebrada novamente,
você ainda não tinha amado.

Lembre-se de que na noite certa e
sob a luz certa
qualquer ideia pode parecer uma boa ideia
e o amor
o amor quase nunca é prudente, mas é sempre
ousado.

A coisa mais importante a fazer é
não se preocupar. As linhas no seu rosto
não vão impedir que o sol se
levante. As suas lágrimas não vão virar
o tempo. Há guerras em curso
e essa aí no seu corpo é a única
que você pode ter a certeza de que, perdendo
ou ganhando, ainda irá perder outra vez.

Você tem bebido mais água do que rum
nos últimos tempos, não tem?
Mas você bebe à memória dela, não
bebe?
E só come alcachofras na salada.
Nunca inteiras.
Não num bar numa rua sombria
no meio da noite.
Não com ela.
Nunca com ela, nem com ninguém como ela.

*

mãe

Mãe. Onde quer que você esteja,
espero que tenha tia Maria e
Coca-Cola
e que as pessoas não falem muito alto
quando você está tentando dormir.
Espero que você tenha uma filha com um
plano e um sonho
e filhos que não estejam com problemas
com a polícia.
Espero que possa escolher entre alguns
homens bons
e que nenhum deles tenha o costume de
trair.

Mãe, onde quer que você esteja,
espero que haja um avô
que não te olhe fixamente por tempo demais
e uma avó que não esteja doente.
Espero que eles não gritem porque
tua mãe partiu
e não te digam
que você não é nada.
Espero que você não tenha que ganhar a vida
dando banho em homens velhos
que te chamam de crioula vadia.

Mãe, onde quer que você esteja, espero que Deus
desça e te mostre cada coisa
e seu lugar
e não grite porque você está
cansada demais para se importar.

Espero que haja alguém para desembaraçar
os nós do teu cabelo.
Espero que o bom seja bom e o certo seja
certo e o justo seja justo.

***

issue

I have searched hard for my very
dead parents in women with my
father’s stature and men with my
mother’s features
almost unwittingly
hardly successfully.

I like the sounds
our bodies make
when they fall in like.

I love the word love,
I do
but only far from home.

*

artichokes

Until you have been the last ones
sitting in the café on the corner and
she has kissed the dark rum from the
rim of your glass and schooled you in
the art of eating artichokes
until then,
you are not yet woman.

Until you put soft leaf to lip
touch tongue to flesh,
bite the lobe,
swallow the juice
she says will purify you
until you open it up, sigh at the color,
see its very middle and learn what

fingers are best at
until you reach further still
into that thick, hot heart
life has not yet started.

Before you had been promised.
Before she is a liar.
Before you are dismantled, fixed and
broke again you are not yet a lover.

Remember on the right night and
under the right light
any idea can seem like a good one
and love
love is mostly ill-advised but always
brave.

The most important thing to do is
not to worry. The lines on your face
will never stop the sun from coming
up. Your tears cannot affect the
weather. There are wars going on.
The one in your body is the only one
you can be sure of losing
or winning, then losing again.

You drink more water than rum these
days, don’t you?
But you drink to her memory, don’t
you?
And you only take artichokes in salad.
Never whole.
Not in a café on a dusky street at
midnight.
Not with her.
Never with her, or anyone like her.

*

mum

Mum. Where you are
I hope that there is Tia Maria and
Coca-Cola
and people don’t talk too loudly
when you’re trying to sleep.
I hope you have a daughter with a
plan and a dream
and sons who aren’t on first-name
terms with the police.
I hope you have your pick of a few
good men
and none of them know how to
cheat.

Mum, where you are . . . I hope that
there are grandfathers who don’t
stare at you for too long
and grandmas who aren’t sick
I hope that they don’t scream because
your mother left
and tell you,
you ain’t shit.
I hope that you don’t bathe old men
for a living
who call you nigger bitch

Mum, where you are, I hope that God
comes down and shows you what
goes where
and doesn’t shout because you’re far
too tired to care.

I hope that there’s someone to tease
the knots out of your hair.
I hope that good is good and right is
right and fair is fair

***

Laura Assis (Juiz de Fora, 1985) é poeta, tradutora, editora e professora, com doutorado em Literatura pela PUC-Rio. É autora do livro Depois de rasgar os mapas (2014) e de três plaquetes de poesia. Integra o coletivo editorial Capiranhas do Parahybuna, edita a revista ADobra e dá aulas de Língua Portuguesa e Literatura no CAp. João XXIII/UFJF.

--

--