Três poemas inéditos de Daniel Conte

Fernanda Vivacqua
ADobra
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3 min readJun 15, 2021

piemonte 1874

senti a mão de meu avô no meu cabelo uma única vez na
pequenez da minha vida. e com ela
o peso do machado que carregava
para transbordar de lenha a carroça.
ele disse, não chora, e largou o coelho.

o algodão se pôs a rezar de mãos unidas quando o velho ângelo segurou-o pelas orelhas e olhou o relógio que levava no bolso, um relógio que seu pai trouxe de piemonte em 1874.

chorei quando vi o branco do coelho nas mãos escuras do meu avô, e meu pai me disse, seja homem: não chora.
homem com cinco anos de idade, eu não queria ser homem, pensei.
pensei o bichinho e pensei a tristeza de ser homem inabalável diante da morte [com
cinco anos de idade.
naquele então preferi a delicadeza de minha
mãe preparando o café de erva em tempos de dor e de pouca comida. em [tempos que
a terra era magra demais para dela verter o milho do pão.

*

pampa, bochornoso pampa

não me peças que,
deste lado, na esquina do mundo, ao fugir das girafas,
eu alivie a dor que os muros oferecem àqueles que se iludem
com o esquecimento do próprio tamanho.
o último suspiro não me o implores
antes de atravessares a fronteira, porque as dores
suspensas, dos joelhos raspados, das unhas arrancadas,
as dores dos teus intervalos, aliviam a tristeza do pampa, do
bochornoso pampa.
a dor do pampa e de cada pedregulho
que compõe o descampado do pampa,
com a solidão do pampa,
com a fome do pampa, fere.
o pampa é pampa porque lastima. fere o cheiro depois da chuva.
fere a pedra depois da rolagem.
o cheiro das terras não é o mesmo
em cada manhã nunca, então fere.
o pampa é aroma de dor inevitável de pedras recém partidas,
de garrões suspensos que espanam crinas.
da minha náusea, que é mais doce
[que]
minha opção de querer esconder-me.

*

pão e luz

dá-me um pedaço de pão, ao menos um grão da pedra de teu pão.
não te peço nada além, nada.
nem teu olhar, nem teu dizer,
menos ainda teu perdão.
só quero a comida que não tenho, só a história
que me foi.
só a pedra que me dói.
dá-me o pão, tu tens demais
e não o comes
dá-me o pão que virará pedra em dias de não-comida.
se não o pão, dá-me a luz, só te peço isso:

uma luz que me permita
ver o pão que não me ofereces.
faísca de horizonte lascada na mão.
eu quero ver o pão,
porque olhar o mar é caber-se em copo d’água. igual a sensação que o pássaro [leva em seu bico,
o pássaro que é em si matéria da asa e que tem, na pedra jogada, o risco da [dor.
o cheiro da cor e tudo o que na asa
houver.
o pássaro é mesmo
a dor do caminhar, a negação das pernas e corpo estendido
à latência da pedra. dá-me a luz, eu te peço, esquece o pão, só a luz me basta.

Daniel Conte é professor, crítico literário, poeta e tradutor. Ao longo de sua vida acadêmica, traduziu Neruda, Darwish e Lorca, além de Ionesco, Beckett e Cervantes. É Bolsista de Produtividade do CNPq e tem suas pesquisas voltadas às literaturas em Língua portuguesa e sua condição pós-colonial. Depois de editar e organizar algumas obras, lançou “o mínimo tu em mim”, livro de poemas, pela editora Trajetos em 2017.

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Fernanda Vivacqua
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Escrevo, pesquiso no doutorado em Letras (UFRGS), edito na Capiranhas do Parahybuna e na revista ADobra, reviso textos, escrevo de novo, e mais uma vez.