você escreve este texto

de Lia Duarte Mota

ADobra
ADobra
7 min readMar 6, 2021

--

Claudia Andujar. “A Sônia” (1971).

você escreve este texto: chegar ao limiar entre o animal e o humano, entre a elasticidade e a circunspecção. gostaria de poder dizê-lo sem aparentar dissonância, não se trata de contrários, é uma conjunção. com a dobra dos joelhos e um impulso, o corpo pirueta-se no ar antes de se assentar, posição de cócoras. não um estado de repouso, é o bote preparado. uma mão pressiona o chão, a outra aponta para cima. em seguida, a cabeça se abaixa, coluna vertebral se arredonda, por um instante se faz pedra que pode ser pisada. e será só o tempo de encontrar algum diferente apoio para um novo rolamento. um rastejo. agora braços suportam o corpo, toda a porção frontal olha o soalho, mãos no chão, cotovelos dobrados, o corpo inclinando-se para a lateral esquerda, só a ponta do pé esquerdo pressionando, faz-se jacaré. um puxão violento da perna direita — o rabo –, gira, recupera, converte-se em uma caminhada de pés e mãos para trás, quadril dobrado, o macaco. e de novo o estado preparado. não, não se trata de violência explosiva, é de um cálculo tão preciso que me espanta, é dirigida a um fim muito bem determinado. me pergunto como pode ter transformado esse corpo. eu não o reconheço.

sei que não devia, mas vou ter que falar dos Bichos de lygia clark. é que vendo esse corpo se dobrar de tantos modos incompreensíveis — eu quase não acompanho com os olhos o que acontece — não consigo deixar de pensar na multiplicidade de formas que as dobras permitem. os bichos se metamorfoseiam em incontáveis fisionomias, são tão maleáveis em seu material de alumínio, acho que foi o que interessou o nosso amigo wagner schwartz, fez com que ele se deixasse alterar nas formas que as pessoas quisessem e pudessem imaginar, no trabalho La Bête. ele também viu essas muitas possibilidades nos bichos de clark e quis experimentar no próprio corpo. schwartz queria libertar o bicho da caixa do museu. necessário. mas o que realmente me surpreende, o que não tem saído da minha cabeça nessas aproximações — nessa tentativa de entender esse corpo que vejo e que, em minha ingenuidade, acreditei que conhecia –, é que, nos bichos de clark e de schwartz, não consigo enxergar nenhuma agressividade. por mais estranhas que sejam as formas dos bichos, ainda que se possa virá-los do avesso, é só uma tentativa de explicar, não há verso e anverso, dentro e fora neles, esses bichos me parecem nunca responder com qualquer gesto rude. como um material tão frio e com tão pouca fluidez pode se tornar tão afim? até nisso o corpo de schwartz consegue reapresentar o bicho de clark, sendo dobrado em posições sem que ele tenha qualquer autonomia e contribuição, ele não parece em nenhum momento responder com violência. seu corpo aparenta sempre tentar assimilar.

mesmo com tanta disponibilidade, o que veio de fora, de fora do museu, foi uma reação colérica. de fora do museu. o ofensivo surgiu de imagens recortadas, acusando-o de pedofilia — um artista no museu –,porque uma mãe levou a sua filha para experienciar clark no corpo de schwartz. schwartz estava nu, a pele é a extensão do tato. o corpo humano apresentado em sua superfície, assim como a cor prata reluzente, lisa e sólida é a dos bichos de clark. uma hostilidade inesperada tomou conta, de repente uma castidade falsa, um recato hipócrita abafado. um ódio burro. uma cpi dos maus-tratos instalada no senado federal, fazendo com que todos os envolvidos fossem obrigados a testemunhar. um pretexto de moralidade. nosso amigo saído às pressas do brasil, sem ter o tempo de se reconciliar com o seu primeiro solo, sem poder ser consolado.

desde então, vivemos nesse modo atrapalhado, atiçam os extremistas/ fundamentalistas/ linchadores/ terraplanistas — é cada vez mais difícil encontrar a palavra exata para me referir a eles — com notícias descontextualizadas, enquanto recolhem os direitos da população.

sem querer justificar a minha atitude, o meu estranhamento se deu por ver esse corpo atingir uma violência que eu desconhecia. quase poderia dizer que o vejo pela primeira vez. só não digo, pois há nele alguns traços que reconheço, algumas rugas que resistem à nova forma que recebe, a cor e a textura dos cabelos. a violência não era evidente antes ou tão constante. acreditar que ela não estava presente é o meu equívoco. era violência disfarçada.

a dobra desse corpo nunca é repouso, é sempre um preparo para o ataque. uma clareza manifesta. só agora consigo entender como as dobras de nossos cotovelos, braços, quadril, pernas, joelhos são idênticas às dobradiças de clark. desculpe, é mesmo uma constatação atrasada. às vezes, eu sou um parvo. lembra quando pensei que… não, não vou tornar isso sobre mim, pelo menos desta vez.

precisei ler os relatos, e, por precisar deles para entender, esse corpo munido se fez impaciente. atirou-os sobre mim. de imediato me dei conta de que tinha passado do limite, de que tinha feito algo que não devia, de que interferia — sem licença — nesse corpo que eu buscava identificar. diante disso, me imbuí do papel de pesquisador dedicado. não podia tratá-los com displicência. eu queria, precisava entender. li-os um a um com a concentração dos orientais. ou o que penso ser essa ideia vendida ao ocidente. depois, li as transformações de cada relato em coisa outra textual, língua dobrada, balbuciada. língua-bicho?:

corrente dourada medalha nossa senhora aparecida, simbolizando família, 49. carro gol preto placa BRC 2V65 cuidadora motorista de uber trabalho à noite responde a um chamado: corpo asfixiado e estuprado no banco de trás.

salário mais alto, estilo musical, roupa inadequada, batom intense 12 indiretas. agressão, desculpas, silêncio. braço fraturado. agressão, desculpas, silêncio. pé quebrado. agressão, desculpas, silêncio. marcas de sola de sapato no rosto, 42. “não tenho mais vaidade por conta das coisas que ele me falava”.

primeiro amor, casa juntada. chaveiro de anime japonês, sonho de faculdade de enfermagem, 22. e tapas, socos, safanões, corpo sem horas de vida ajustado cuidadosamente no banco do passageiro do nissan march parado no posto de gasolina.

criança grávida estupro tio. urso de pelúcia e aborto. 10.

viúva, 35. casa em que morava com o marido. três enteados, agressão verbal, tudo quebrado. feira de santana. chutes, socos. filho com corte na cabeça. coleção de porquinhos de porcelana. quebrada. casa nenhuma.

não era preciso preencher as lacunas.

então, eu entendi a violência nesse corpo. a investida, o corpo inteiro eriçado, em estado de atenção plena de todas as suas partes. nenhum relaxamento. é como se ele, obrigado à fogueira, fizesse os sentidos acesos pelo som do fogo que estala a madeira, pelo cheiro da carne que queima, pela fumaça turva que encobre o ao redor. as acusações, a violência, o aviltamento. o cartaz preso às roupas com confissões adquiridas entre torturas. o aparelho colocado na cabeça para que falar fosse a decisão da língua sendo rasgada. e, por fim, a fogueira. 100 mil, 200 mil sobre o fogo. uma vez mais. é que os mortos não cessam de morrer e de falar.

é como se ele tivesse vivido todo o tempo circundado pela neblina de sangue que aimé césaire descreve, ocorrida em ambike, madagascar, naquele massacre comandado por gérard, na conquista colonialista da frança. césaire nos conta que os franceses encurralaram a população durante a noite e mataram todos: homens, mulheres, crianças. todos. à tarde, uma neblina se formou com o calor, “era o sangue das cinco mil vítimas, a sombra da cidade, que se evaporava ao pôr-do-sol”. depois, ouviam-se os gemidos dos que ainda respiravam na pilha de corpos. dizem que o comandante não deixou que prestassem atendimento. a celebração, e os gemidos. ao amanhecer, silêncio. dizem que se não fosse o escritor e deputado paul vigné d’octon a denunciar, o massacre talvez nunca aparecesse nos ofícios. é certo, nada aconteceu ao comandante gérard, na verdade, ele foi condecorado pelos serviços prestados ao país.

era 1897, 123 anos atrás. a neblina de sangue, no entanto, parece nunca ter se dissipado por completo. seguimos sem saber da maioria dos crimes que acontece com vocês. mas esse corpo enfático sabe. vocês sabem. esse corpo violado esteve envolto e ocupado pela fumaça, por essa densa neblina que eu, como muitos, não conseguia enxergar? é nessa neblina que tem vivido em meio a tantos relatos?

as dobraduras que larga por onde passa, as dobradiças da porta do banheiro que rangem no momento que, acreditamos convencidos, completaremos a tarefa de fechá-la sem nenhum chiado, as roupas dobradas nas gavetas de cada um em casa. ainda é praticável casa e acolhimento?

tenho a impressão que esse corpo bruto ao lidar com essas forças externas faz o mesmo com as internas. de novo, não se trata de oposição, se trata de dobra. assim como é concebível para a topologia que um espaço se dobre, alterando as distâncias entre dois pontos fixos. quando vi esse corpo armado, toda essa concentração e disponibilidade para qualquer imprevisto, qualquer abuso, percebi uma presença de espírito, uma organização também do interior não oposto ao exterior. esse corpo encontrou o possível escavando para si, encontrou o refúgio. eu suponho e tenho medo de afirmar em voz audível que não há mais a casa que eu achava que me aguardava. não há mais casa tal como eu imagino, não é?

você escreve esse texto, é o seu jeito de pedir desculpas por questionar tanta violência. mas não resta tempo. textos já não servem. é preciso mais. você termina com uma pergunta, se esforce, você sabe a resposta.

*

Lia Duarte Mota é doutora em Literatura, Cultura e Contemporaneidade pela PUC-RIO e pós-doutora em Estudos Literários pela UFJF, com a pesquisa “Escrita em movimento”. Tem textos e artigos publicados em revistas, sites e antologias. Atua como coordenadora e professora no curso de extensão Escritas performáticas (CCE/ PUC-RIO).

--

--