I Debate Aberto com William Galle Dietrich

Positivismo jurídico analítico: reivindicações metodológicas e meta-discussões

Bárbara Ronsoni de Oliveira
ÆQUITAS
9 min readJan 8, 2021

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É possível falar em “Ciência do Direito”? A Teoria do Direito é parte da Ciência do Direito? A metodologia do positivismo jurídico apresenta empecilhos incontornáveis? Como produzir uma teoria metodologicamente honesta? E o que isso significa, afinal?

— Texto escrito em coautoria com João Henrique Luttmer

Risonhos. Juramos que não foi para o print.

No dia 19 de dezembro, encerramento do ÆQUITAS durante o ano de 2020, recebemos o Me. e agora doutorando William Galle Dietrich para a exposição e discussão de sua dissertação “Positivismo jurídico: uma tentativa de introduzir o método experimental de raciocínio nos assuntos morais”, no encontro sobre “Positivismo jurídico analítico: reivindicações metodológicas e meta-discussões”. A apresentação contou com um handout, da autoria de Dietrich, disponibilizado aos participantes, que você pode conferir aqui.

Desde o início, houve uma enorme preocupação em expor do que se trata a abordagem em questão, qual seja, a Teoria do Direito como um “ramo” da Ciência Jurídica. Grosso modo, a Teoria do Direito é uma tentativa de descrever o que é o Direito, de modo geral, a partir de uma análise conceitual, ou seja, buscando definir o que é o Direito em termos do que é conceitualmente necessário em sua identidade¹ — não a palavra “Direito” (ou recht, law, diritto, derecho).

Mais especificamente, Dietrich problematizou a metodologia empregada pelo positivismo jurídico, apenas uma — e multifacetada mesmo entre teóricos juspositivistas — entre várias teorias que se inserem na Jurisprudence (ou Teoria do Direito). Apesar de poder investigar a metodologia de outras teorias como o jusnaturalismo, por exemplo, o autor pretendeu focar em uma das mais famosas teorias no mundo anglo-saxão e talvez a mais mal compreendida no Brasil.

Grosso modo, o juspositivismo é a teoria cuja ideia central reside nas teses da separabilidade e dos fatos sociais. Waluchow explica a que corresponde a tese da separabilidade na seguinte passagem: “É conceitualmente possível, mas de maneira alguma necessário, que a validade jurídica de uma norma seja, de algum modo, uma função de sua consistência com princípios morais ou valores”.² Na consagrada frase de John Austin, “The existence of a law is one thing, its merits or demerits is another thing” (“A existência do Direito é uma coisa, seus méritos ou deméritos é outra”). Já a tese dos fatos sociais é caracterizada pelo reconhecimento de que o Direito é necessariamente fundado por fatos sociais (não morais, teológicos, ou o que quer que seja).³

Em razão desse comprometimento (epistemológico) com fatos sociais, como aquilo que podemos conhecer com o auxílio da filosofia da linguagem ordinária (Hart) ou da teoria da soberania (Austin), em contraposição aos empenhos em formular uma teoria sobre o que o Direito deve ser, o positivismo se preocupou com aquilo que ele efetivamente é. Para tanto, positivistas jurídicos se dedicaram a descrever o Direito, não prescrevê-lo.

Para Dietrich, contudo, as coisas não são “tão preto no branco”, isto é, talvez não exista uma distinção tão forte entre descrição e prescrição como queriam os juspositivistas. Pode ser que toda intenção de descrever algo esteja eivada de subjetivismos e, por essa inafastável condição humana, o empreendimento metodológico do positivismo jurídico deveria “pôr as cartas na mesa”. Isso significa dizer que uma teoria (metodologicamente) honesta não deve se furtar de evidenciar ao leitor dificuldades inevitáveis, a saber, que apesar da tentativa em permanecer no campo do ser, por vezes o teórico se encontrará dizendo o que deve ser, ainda que implicitamente.

Pensando em tudo isso, a pretensão de Dietrich era buscar saber se descrições neutras são possíveis, com a hipótese de que não existe distinção ontológica entre descrição e prescrição, atacando a metodologia do positivismo jurídico analítico. O autor iniciou a análise de sua dissertação, abordando-a em três tópicos, após a introdução supracitada: [I. Esclarecimentos prévios: a estrutura tripartite da Ciência Jurídica;] II. O pensamento de David Hume; III. Método e teoria do direito; IV. Objeções. Rapidamente, o pensamento de Hume pode ser resumido em sua importância para a ciência, pois apesar de seu ceticismo, o autor teve o mérito de construir uma teoria (empirista) que priorizava a experiência sob constructos meramente abstratos. Para Hume, o conhecimento possível era aquele que poderia ser observado e experienciado, e coisas como a causalidade eram apenas “fantasia”, projeções da mente humana, ou, em uma leitura diferente, mesmo que tais coisas existissem, simplesmente não poderiam ser percebidas e conhecidas por nós, seres humanos.

A partir da leitura de Streck e Kolakowski, Dietrich identifica teses do positivismo (geral) que sofreram influência direta de Hume: (i) a regra do fenomenalismo (não há diferença entre essência e fenômeno); (ii) a regra do nominalismo (negação de universais); (iii) a regra que nega validade para julgamentos normativos (não-cognitivismo moral) e (iv) a regra da unidade do método científico. Para o trabalho e o debate, a última regra é a mais importante, e se aplica fortemente ao positivismo jurídico analítico em virtude do método descritivo, por sua aposta em uma abordagem neutra, externa, e desinteressada (não-justificação) do Direito.

No segundo tópico, nos familiarizamos com os autores Bentham, Austin e Hart, que se preocuparam em formular uma Teoria do Direito fazendo uso da mesma intenção metodológica (descrever sem justificar moralmente), ainda que diferentes ferramentais teóricos tenham sido utilizados para tanto. Bentham (1748–1832), considerado o pai do positivismo jurídico, foi responsável por uma célebre divisão da Teoria do Direito em duas áreas distintas: sua censorial jurisprudence (que poderia ser traduzida como uma obra sobre a arte de legislar, essencialmente normativa e, portanto, sobre o que o Direito deve ser, de acordo com a teoria moral do utilitarismo, famosamente defendida pelo autor) e expository jurisprudence, cuja preocupação era descrever o Direito positivo, conforme o que realmente é. Esses são os dois únicos objetivos que pode ter um livro de Teoria do Direito, de acordo com Bentham.

John Austin (1790–1859) foi quem cunhou o termo analytical jurisprudence (Teoria do Direito analítica), além da simples e intuitiva descrição do que o Direito é (ordens ou comandos gerais emanados por um soberano, sustentados pela ameaça de sanção). Sua construção teórica foi determinante para a jurisprudence por pelo menos 100 anos após sua morte, apesar de não ter tido a merecida relevância enquanto esteve vivo. Foi com base na teoria austiniana que H.L.A. Hart (1907–1992) nos presenteou com uma proposta original, em The Concept of Law (1961): investigar o que o Direito é a partir da Teoria do Direito analítica e da sociologia descritiva.

O ponto central da dissertação e da apresentação de Dietrich, contudo, pode ser resumido à questão da (im)possibilidade de descrições moralmente neutras ou desengajadas. A partir das objeções de Putnam à dicotomia fato valor (para quem certos conceitos, como “cruel”, “corajoso” ou “covarde” são tanto descritivos quanto valorativos, de forma que, na verdade, a valoratividade e a descritividade seriam mais emaranhadas do que a empreitada descritivista faria crer) e de Streck (o qual defende, apoiando-se em Gadamer e Heidegger, que não existe um grau zero de sentido/“Bodenlosigkeit” que permitiria uma cisão entre descrição e prescrição), Dietrich levanta a necessidade de se visualizar o juspositivismo por uma nova perspectiva: ainda que não seja possível descrever o Direito de forma neutra (ou moralmente desengajada), é possível avaliar os méritos produzidos pelos seus teóricos e, sem prejuízo, repensar a metodologia na pesquisa em Direito.

Dessa vez, bem sérios.

Em conclusão, a principal lição sugerida pelo autor é a necessidade de se atentar para o método científico, já que a metodologia é a responsável por qualificar um trabalho como efetivamente científico, seja ele publicado em um blog, uma revista não-científica ou uma newsletter que seja. Assim, fazer uma pesquisa metodologicamente honesta significa “colocar as cartas na mesa”, i.e., expor aos leitores as limitações e inevitabilidades enfrentadas por determinada proposta teórica.

Por essas e demais lições, nossos mais profundos agradecimentos ao autor e a todos os participantes presentes. Esperamos recebê-lo junto a demais convidados ainda no ano de 2021. Desejamos votos de sucesso e máximo aproveitamento durante o doutorado na Universidade de São Paulo.

Sobre o autor

William Galle Dietrich.

William Galle Dietrich é doutorando em Direito Civil pela Universidade de São Paulo, mestre em Direito pela UNISINOS como bolsista CAPES/PROEX, membro da ABDPro — Associação Brasileira de Direito Processual, pesquisador em Direito processual, contratos e Teoria do Direito. Advogado em Raatz & Anchieta Advocacia.

Para conferir o handout disponibilizado por William Galle Dietrich, clique aqui. Para conferir a dissertação do autor, base para a discussão apresentada, clique aqui.

Notas

[1] Talvez esse seja um bom ponto para explicar o que se quer dizer com “conceitualmente necessário” e coisas parecidas. Na filosofia, as noções de propriedades ou proposições “necessárias” são normalmente contrastadas com as ideias de propriedades ou proposições “contingentes”. Ainda que possa haver uma ou outra controvérsia sobre o sentido com o qual estes termos vem a ser empregados, um bom jeito de compreendê-los é através da ideia de “mundos possíveis”. Basicamente, alguma proposição é necessariamente verdadeira se e só se ela é verdadeira em todos os mundos possíveis, ao passo que uma proposição é contingentemente verdadeira se, apesar de ser verdadeira em determinado mundo possível w1 (o nosso, por exemplo), ela poderia ser falsa em outro mundo possível w2. Compare estas duas proposições: (1) “Toda rosa vermelha é uma rosa” e (2) “O atacante do Paris Saint-Germain, Neymar Jr., tem 1,75m de altura”. Enquanto que (1) é uma proposição necessariamente verdadeira, isto é, não existe um mundo possível em que uma rosa vermelha não seja, por definição, uma rosa, (2) é uma proposição verdadeira, mas apenas contingentemente verdadeira — isto é, o jogador Neymar realmente tem 1,75m de altura, mas nada parece implicar que ele deixaria de ser o Neymar se, em um mundo possível muito semelhante ao nosso, ele tivesse 1,77m de altura, por exemplo, ou então não fosse atacante do Paris Saint-Germain, etc. Para mais sobre essa definição, recomendamos a leitura da coluna do Professor Desidério Murcho, para O Estado da Arte, intitulada “Necessidade e contingência”, ou ainda a leitura do artigo do Professor Kenneth Himma sobre a relação entre Teoria do Direito e análise conceitual. Cf. MURCHO, Desidério. Necessidade e Contingência. O Estado de São Paulo. São Paulo, 31 jul. 2020. Estado da Arte. Disponível em: https://estadodaarte.estadao.com.br/desiderio-murcho-necessidade-contingencia/. Acesso em: 23/12/2020; HIMMA, Kenneth Einar. Conceptual Jurisprudence: An Introduction to Conceptual Analysis and Methodology in Legal Theory. Revus, v. 26, p. 65–92, 2015. Disponível em: https://journals.openedition.org/revus/3351. Acesso em 23 dez. 2020

[2] WALUCHOW, Wilfrid. Legal positivism, inclusive versus exclusive. In: Routledge Encyclopedia of Philosophy. London: Routledge, 2001, p. 10–11, p. 4

[3] Em Austin, por exemplo, o Direito depende, em última instância, de hábitos (sociais) de obediência a um soberano, enquanto para Hart o Direito depende do consenso social acerca de uma regra fundamental que reconhece e confere validade a todas as outras regras em um sistema (rule of recognition). Para Himma, “The Social Fact Thesis asserts that legal validity is a function of certain social facts”. Cf. HIMMA, Kenneth Einar. Philosophy of Law. Internet Encyclopedia of Philosophy, Seattle Pacific University. Disponível em: https://iep.utm.edu/law-phil/. Em Morality and the Nature of Law (2019), Himma define a tese dos fatos sociais de forma um pouco mais elaborada (e chama de tese do artefato, embora seja basicamente a mesma coisa): “The most fundamental of positivism’s core commitments is the Artifact Thesis, which asserts that law is, in essence, a social creation and artifact. What distinguishes law from non-law, according to this thesis, is the occurrence of some contingent social fact (or facts) that constitutes a norm or system as one of law. It is the occurrence of the relevant social fact (or facts) that constitutes any norm or system that has the status of law as having this status”. HIMMA, Kenneth Einar. Morality And The Nature Of Law. New York: Oxford University Press, 2019, p. 66.

Referências

HIMMA, Kenneth Einar. Conceptual Jurisprudence: An Introduction to Conceptual Analysis and Methodology in Legal Theory. Revus, v. 26, p. 65–92, 2015. Disponível em: https://journals.openedition.org/revus/3351. Acesso em 23 dez. 2020

HIMMA, Kenneth Einar. Morality And The Nature Of Law. New York: Oxford University Press, 2019.

HIMMA, Kenneth Einar. Philosophy of Law. Internet Encyclopedia of Philosophy, Seattle Pacific University. Disponível em: https://iep.utm.edu/law-phil/.

MURCHO, Desidério. Necessidade e Contingência. O Estado de São Paulo. São Paulo, 31 jul. 2020. Estado da Arte. Disponível em: https://estadodaarte.estadao.com.br/desiderio-murcho-necessidade-contingencia/. Acesso em: 23/12/2020.

WALUCHOW, Wilfrid. Legal positivism, inclusive versus exclusive. In: Routledge Encyclopedia of Philosophy. London: Routledge, 2001, p. 10–11.

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