Abrindo o Sistema da Moda: visões sobre futuros possíveis

Kim Trieweiler
Aerolito
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12 min readJul 23, 2020

Algum tempo atrás escrevi um texto por aqui sobre Future Literacy.
Nele, o exemplo que eu trouxe, pra tangibilizar em uma discussão um tanto quanto etérea, foi o da moda.

E tem alguns motivos pra isso.

O primeiro é bem particular, da minha jornada e da minha subjetividade. Trabalhei 7 anos na indústria da moda, com pesquisa de tendência de comportamento e marketing, então era um terreno confortável pra mim. Enquanto escrevia o texto foi fácil traçar os paralelos que expus lá.

O segundo motivo tem a ver com o momento no qual escrevi.
Eu havia terminado há pouco tempo de pesquisar e gravar os conteúdos do curso sobre o futuro da moda da Aerolito. Então o assunto estava bem latente pra mim.

O último motivo, que explorei lá também, é o mais relevante para esse texto.
É que a moda ainda é vista por muita gente como um sistema fechado.
E não tem como ser diferente. É uma ideia que, quando olhamos para o passado, faz muito sentido.

Vemos um mercado que se organizou (eu diria até que se sistematizou) em uma cadeia produtiva onde cada engrenagem é fundamental para que os produtos sejam desenvolvidos, transportados e comercializados com a garantia de que eles vão ser vendidos e que ninguém vai sair perdendo. As feiras de matéria-prima e componentes indicam as tendências que vão ser seguidas nas passarelas, que indicam os produtos que vão estar nas feiras de produto, que, por sua vez, são adquiridos pelas empresas de varejo e vendidas a um público consumidor que já estava desejando tudo isso por que estava acompanhando a cobertura da mídia desses novos lançamentos.

O pesquisador de tendências brasileiro Dario Caldas entra no detalhe sobre essa lógica no seu livro Observatório de Sinais:

Foi criado em 1955, na França, o Comitê de Coordenação das Indústrias de Moda (CIM), cuja principal missão era fornecer aos diversos elos da cadeia têxtil, das fiações à imprensa, indicações precisas e coerentes sobre as tendências. O CIM serviu de modelo aos birôs de estilo, que, durante as décadas de 1960 e 1970 exerceram um papel fundamental por meio dos ―cadernos de tendências, verdadeiros guias contendo todas as informações para o desenvolvimento de uma coleção.

É claro que de 1955 pra cá a coisa ficou mais complexa. O que era linear, como descrevi, ganhou mais camadas, e os atores (e também novos atores) desse sistema passaram a se comportar de outras formas. Não mais tão previsível e retroagindo em si mesmos.

A internet deixou o acesso a informação mais acelerado, o que aumentou o desejo imediato das pessoas por produtos. Ela também pulverizou a autoridade da mídia, abrindo a porta pra mais gente influenciar as tendências. Tem o street style também, que se popularizou e fez as tendências de moda se propagarem no modelo trickle-up/bubble-up. O movimento do see now, buy now, que transformou a lógica de lançamento de produtos. O uso de big data para entender tendências de compra e responder rapidamente.
E outras tantas mudanças e complexificações que estou deixando de fora propositalmente, pois não são o foco aqui.

Mas, apesar do comportamento dessa cadeia ter mudado me parece que a lógica por trás dela não. Ela segue sendo uma busca por validação e controle, mas usando outros (e mais) sinais de confirmação. Em outras palavra, pressupondo um sistema fechado, onde eu conseguiria enxergar os movimentos de todos os atores e traçar um plano a prova de falhas que me leva de onde eu estou, para onde eu quero estar.

E se, olhando para o passado, atuar dessa forma parece ainda fazer sentido, minha hipótese é que se passarmos a olhar para os futuros sem pressupor que eles vão repetir o passado vamos enxergar outras possibilidades. Um sistema aberto (ou semi-aberto) pode ser uma nova perspectiva para identificar sinais de mudança transversais na moda.

A moda é uma tecnologia?

Com frequência falamos sobre como as empresas do futuro precisam se enxergar também como empresas de tecnologia. É tirar a tecnologia do silo e colocar ela como um vetor de transformação transversal.

Uma das empresas que estudamos recentemente na Aerolito foi a Myant, que trabalha com computação têxtil, uma ideia que por si só já daria muitas reflexões. Para falar da Myant eu poderia citar os prêmios e reconhecimentos que ganharam na CES e em outros eventos.

Poderia comentar as novidades que ela desenvolveu. Como as peças íntimas que democratizam o acesso a eletrocardiogramas.

Ou as suas recentes máscaras de proteção, com propriedades antivirais que aumentam a segurança de pessoas trabalhadoras na linha de frente do combate a COVID-19.

Ou, ainda, a interface vestível completa, que além de monitorar nossos sinais vitais, tem o potencial de mudar a forma como interagimos com o mundo e com as outras pessoas.

Mas acho mais interessante falar da visão que tornou tudo isso possível. Peguei esse trecho abaixo diretamente do site da empresa.

A Myant acredita que os têxteis são um meio ideal para a interação com o corpo humano.

Embora muitos avanços tecnológicos exijam que mudanças radicais de comportamento sejam amplamente adotadas, os têxteis têm o benefício de serem familiares a todas as pessoas da sociedade, discretamente integradas em nossas vidas diárias e difundidas em todos os ambientes.

Ou seja, a Myant acredita que os tecidos são a tecnologia mais transversal de todas. Elas cobrem quase 100% dos nossos corpos, permitindo uma variedade imensa de monitoramento de biosinais e de interações. Além de serem adotados em praticamente todas as esferas da nossa sociedade. É a partir desse entendimento que podemos pensar peças de roupa que fazem mais do que nos proteger do clima e nos deixar mais estilosos e estilosas.

Será que a industria que produz essa moda que nos cobre dos pés à cabeça diariamente não tem um poder imenso em suas mãos?

Quando colocamos a moda para ocupar outros espaços, como o espaço da tecnologia, não mudamos a forma como encaramos ela? O que acontece quando uma camiseta é vista como um artefato tecnológico? E se a tecnologia é um conceito que vai muito além do universo de smartphones, aplicativos e inteligências artificiais, ampliar nosso entendimento sobre o que é tecnologia não seria uma forma nos inspirar em muitos outros mercado?

Fazer perguntas como essas pode ser o começo de um exercício para abrir o sistema da moda para interferências externas à ele mesmo.

Até porque essas interferências já estão acontecendo.

Algumas visões sobre a moda

Se o sistema da moda é tradicionalmente fechado, meu exercício aqui vai ser de explorar formas de abrirmos ele.

Essas visões que vou apresentar aqui não devem ser encaradas como previsões. Não tenho a pretenção de dizer como a moda vai ou não vai ser. Quero propor reflexões sobre possibilidades. Talvez algumas mais prováveis do que outras, mas não vou ser juiz disso. E a minha recomendação é que você que está lendo também não seja.

Meu convite é o seguinte. Imaginarmos novos futuros para a moda para mudarmos a forma como enxergamos a moda no presente. E você pode ser co-autora ou co-autor junto comigo aqui. Bora?

O salto da plataforma

E se no futuro o sistema produção da moda fosse compartilhado? Parece muito utópico? Temos iniciativas que estão testando isso hoje.

Em janeiro de 2020 a H&M nomeou a Helena Helmersson, sua chefe de sustentabilidade, como a nova CEO da empresa. Não coincidentemente, logo depois já nos apresentaram um projeto novo. A Treadler é uma iniciativa da gigante da moda, que agora também vai atuar como uma fornecedora B2B para outras marcas de moda. O escopo de serviços que eles oferecem vai de uma ponta a outra, do desenvolvimento do produto até a logística de entrega.

Ou seja, uma marca nova, lançada hoje, pode usufruir de toda a infraestrutura que a H&M construiu ao longo de mais de 60 anos. Aqui no Brasil temos a Reserva Ink que, em outra escala, também divide a sua estrutura e possibilita com que qualquer pessoa possa facilmente abrir sua marca de moda.

Tudo o que a Treadler compartilha.

O que muda quando a entrada de novas empresas fica facilitada? Será que precisamos investir em mais recursos, financeiros e ambientais, para termos mais fábricas, sendo que poderíamos ter fabricas on demand? Outra coisa que chama a atenção é como a Treadler se posiciona. Para a marca seus clientes são como parceiros, equipes com quem ela vai trocar conhecimentos. Então o ganho de compartilhar sua estrutura não é só financeiro, com a contratação do serviço, mas de capital intelectual.

Essa mudança não afeta só isso. Um acesso como esse torna mais fácil (e barato) ser transparente e se adequar aos padrões mais altos de exigência das pessoas consumidoras e do mercado. Dando um zoom out e olhando para além do mercado de moda quando vemos cartões de crédito como o DO Black, que bloqueia compras quando um limite de pegada de carbono é atingido, temos evidências do que pode acontecer quando essas demandas não são atendidas. Será que marcas com menos pegada de carbono vão ser mais consumidas? Quais outras métricas poderiam ser usadas para barrar compras?

Dando um zoom out ainda maior e indo mais além (talvez beeem mais além, mas fiquem comigo), temos tecnologias com a inteligência artificial apelidada de Inverse Cooking. Na Universidade Politécnica da Catalunha uma equipe de pesquisa conduziu esse experimento que alimentava uma IA com imagens de alimentos e ela descrevia qual era a receita que produziu aquele alimento.

Eu avisei que ia longe…

Agora, imagine uma inteligência artificial que consegue montar uma ficha técnica de uma peça a partir de algumas fotos. Em um mercado que já luta tanto pela originalidade e contra as cópias, o que isso significaria? E se abrirmos tudo? O que seria pensarmos na moda a partir da lógica Open Source, compartilhando o "código fonte" daquilo que produzimos?¹

Será que as tecnologias que eu citei aqui não tecem um futuro onde temos plataformas que mudam as formas de produção da moda e, com isso, também o consumo?

Tapeando o computador

A moda sempre teve um papel importante de questionar o status quo social. Com algumas tecnologias entrando sem serem convidada nas nossas vidas, parece que a moda também está respondendo à essa intrusão.

É o caso da marca Adversarial Fashion, que desenvolveu peças de roupa com o objetivo de alimentar os sistemas de vigilância com informações erradas. Como funciona? Assim.

O sistema de vigilância entende que a estampa da camiseta é a placa de um carro.

Quem acompanhou as notícias do comício do presidente americano Donald Trump em Tulsa sendo invadido digitalmente por fãs de K-pop, consegue traçar um paralelo e imaginar o impacto potencial que isso pode causar.

Recentemente vimos um movimento da IBM, que deixou de atuar e comercializar sua tecnologia de reconhecimento facial por entender os riscos que o uso dela representava quando usada por forças policiais durante os protestos do Black Lives Matter. A moda poderia exercer influência sobre essas decisões, evidenciando o desejo das pessoas ou esse exemplo da Adversarial é só para um nicho?

Quando pensamos que a moda pode ser uma interface nossa com o mundo, faz sentido pensar em como ela pode ser disruptiva com mundo ao nosso redor? Seria tão absurdo usar a moda para ficar invisível aos olhos da tecnologia? Quais são os 'Termos & Condições' que vamos precisar ler antes de vestir nossa jaqueta tecnológica favorita? O mercado de moda está se perguntando sobre isso ou vai deixar a discussão na mão das empresas de tecnologia que já estão desenvolvendo suas roupas inteligentes?

Em janeiro de 2020 o artista Simon Weckert criou um congestionamento fictício no Google Maps usando diversos aparelhos celulares, o que fez com que o Maps entendesse que onde ele estava haviam mais 99 carros parados. Um tecnologia transversal como os tecidos pode nos deixar ainda mais conectados e mensurados. Quais as consequências não estamos enxergando?

wired.com

Virtualidades Reais

Sempre ouvimos que moda é sobre desejo. É aspiracional. Que ela vende um estilo de vida, uma identidade. O produto acaba sendo a manifestação física disso. Mas e quando o produto não é físico?

A Marc Jacobs lançou algumas peças da sua coleção também no game Animal Crossing, do Nintendo Switch, e as pessoas puderam adquirir gratuitamente 6 peças da marca para seus avatares.

Para ter uma ideia do impacto do game, ele já se tornou o mais vendido da história do console no Japão, com mais de 3.9 milhões de cópias vendidas por lá.

Parece que faz sentido criar desejo até mesmo dentro do universo de um game. Para além da moda, a marca de cosméticos Mac também lançou seus produtos dentro de um game, dessa vez no The Sims. Qual motivo leva uma decisão como essa? O que a Marc Jacobs enxergou nesse universo? Qual a nossa relação com esses avatares digitais? Essas peças eram gratuitas, mas considerando a lógica de consumo, será que eventualmente uma peça digital feita pela Marc Jacobs pode ser mais cara do que outra peça digital feita por uma marca de menos renome?

Mas estamos falando só de jogos, né? A resposta curta é: não.

E um exemplo disso é a marca de roupas Carlings, que lançou em 2019 uma camiseta que pode receber estampas diferentes digitalmente. Comprando uma camiseta, você pode ter dezenas de camisetas

Como essas novas camadas digitais de realidade mudam a lógica da moda? Será que não poderia ser aplicada essa tecnologia para outras coisas? Além da estampa, como vocês utilizariam isso? Como monetizar por esses recursos digitais? E quando lançamos novas estampas, é só fazer download? Qual o impacto ambiental quando o desejo pode ser suprido por algo digital?

E os impactos do dessas virtualidades reais não param por ai. Em maio de 2020, em meio a pandemia da Covid-19, a estilista Anifa Mvuemba subiu a barra e virou notícia no mundo inteiro. Ela apresentou sua nova coleção em um desfile onde todas as peças eram digitais.

Como ficam as tão esperadas semanas de moda? O jogo muda ou fica o mesmo? Faz sentido investir dinheiro nelas? Como construir engajamento com os públicos que aumentam o alcance da marca, como a mídia e influencers, dentro do universo digital?

Em defesa dos futuros — e porque essas visões são só o começo

Acredito em futuros no plural. É esse S ao final da palavra que torna esse exercício muito mais interessante. Porque ele pode começar comigo, mas não precisa terminar comigo. Afinal, se a minha hipótese é de enxergarmos a moda como ser um sistema aberto, acho que nada mais justo do que as minhas visões também serem. Ou seja, pode rolar a interferência externa.

Essas são apenas três visões que utilizam alguns objetos do amanhã para tecer suposições e reflexões a respeito do que pode acontecer. E se olharmos para outros exemplos? E se olharmos para esses mesmos exemplos aplicando novas lentes? Será que o resultado é outro?

Como comentei no início, preparamos lá na Aerolito um curso online que amplia ainda mais essa discussão. Analisamos mais de 100 cases, notícias, reports, modelos de negócio para entender como esses drivers estão reconfigurando o ciclo da moda. O resultado são 15 módulos, onde exploramos diferentes temas que surgiram na nossa pesquisa e refletimos junto com quem está assistindo sobre o que eles representam para o futuro da moda. Sei que sou suspeito para falar, mas o conteúdo tá muito legal.

¹ No curso O Futuro da Moda, convidamos a galera da Dobra pra apresentar o case deles. Uma das coisas que dividiram foi como se apropriaram dessa lógica e dividiram a 'receita' de fazer uma carteira como a deles. Aqui tem o link pra quem quiser conferir.

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Kim Trieweiler
Aerolito

pesquisador de futures studies e mais algumas coisas