Como a Aerolito elabora um modelo de pensamento para praticar o letramento em futuros

Aerolito
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10 min readFeb 25, 2022

Por Nayane Ramos e Fernanda Lima

Se você está lendo esse texto, provavelmente já ouviu falar que a Aerolito é um Futures Literacy Ecosystem — a.k.a. Ecossistema para Alfabetização em Futuros — e está aqui para entender como nós usamos Futures Literacy no dia a dia. Já adianto: nós vamos chegar lá! Mas antes, precisamos dar alguns passos para trás, até porque existe a chance de você ter caído nesse texto de paraquedas ou de ainda não ter entendido muito bem o que significa ser alfabetizado em futuro — e tudo bem, a gente explica.

Afinal, o que é Futures Literacy (FL)? Em uma frase, é a habilidade de compreender o papel que o futuro desempenha no presente. Conseguir identificar o papel que o futuro desempenha no presente é um passo importante não apenas para antecipar o futuro, mas para transformá-lo. Até aqui tudo ok, mas se FL é uma habilidade, como podemos praticá-la?

Como o próprio conceito revela, Futures Literacy — bem como a alfabetização — é um processo de aprendizagem onde se desenvolve uma habilidade fundamental para a nossa comunicação com o meio, através de diversas técnicas. Nesse sentido, podemos fazer um paralelo com o processo de aprender um novo idioma, uma vez que ser alfabetizado em futuro segue uma lógica parecida. Se o idioma que falaremos no futuro é diferente do idioma que falamos no presente, o letramento é um dos caminhos para falar a língua do futuro.

Antes de seguir, há um disclaimer importante que precisamos fazer. Afinal de contas, se você já acompanha a Aerolito há um tempinho, provavelmente já deve ter percebido o ato (não tão) falho que cometemos até aqui.

O futuro pode ser inúmeras coisas — infinitas –, mas tem uma condição que ele nunca será: único. Para ser letrado em futuro é essencial entender que não há um futuro único, mas futuros no plural.

E se no exemplo dado aqui o letramento em futuros supõe idiomas, estamos falando, portanto, de inúmeros idiomas, sotaques e formas possíveis para falar a língua dos futuros. Não há anulação, os futuros, por mais que sejam distantes entre si, coexistem.

Para Bayo Akomolafe (2018), curador-chefe e diretor executivo da The Emergence Network, Futures Literacy é um convite a ver a complexidade do mundo ao redor, afastando-se da linearidade.

Quando falamos em futuros no plural, para além da concordância, precisamos assumir a pluralidade temporal, espacial e de ação dos futuros. Ao mesmo tempo, também precisamos assumir o lugar que ocupamos no mundo. Em outras palavras, precisamos assumir que nós sempre falamos em um determinado tempo, de um determinado espaço e a partir de determinadas ações.

Todos nós temos as nossas lentes, inclusive a Aerolito. Elas são pontos de partida para os futuros que imaginamos, criamos e desejamos. Não há como criar futuros fora de um contexto, a maneira como definimos ou entendemos o fenômeno é parte do fenômeno. Assim, identificar e compreender as nossas lentes nos ajudam a entender melhor os futuros que estamos antecipando.

Quais as lentes da Aerolito?

De forma breve, vamos falar das principais lentes da Aerolito:

Tecnológica — estamos sempre olhando para a tecnologia, nós a entendemos como um catalisador das mudanças na sociedade. Estamos olhando para os instrumentos para pensar o comportamento.

Transversal — transversalidade e interdisciplinaridade são pilares da Aerolito, nós estamos sempre cruzando assuntos e buscando ampliar as possibilidades de conexão.

Otimista — ser otimista não significa que não enxergamos os problemas do mundo, mas que entendemos os futuros como possibilidade. Você não vai ver a gente propondo um futuro distópico, nem mesmo utópico, propomos futuros a partir dos caminhos possíveis.

Autoral — estamos sempre em busca de autenticidade na nossa produção, toda a vez que você ver a gente propondo algo, seja uma aula, uma metodologia, um texto e até um post, pode ter certeza de que desempenhamos um tempo refletindo sobre o assunto para desenvolvermos a nossa visão autoral sobre ele.

Pois bem, agora que você já entendeu o que é Futures Literacy e já sabe as lentes da Aerolito…

Como antecipar futuros?

Todo mundo está antecipando o futuro o tempo todo. Sei que falar isso pode quebrar algumas expectativas, mas esta é uma verdade: estamos todos antecipando o futuro; quando decidimos levar um casaco porque pode esfriar; quando preparamos a mala para uma viagem; quando ficamos assustados ou animados com uma nova tecnologia e com as coisas que ela pode mudar; e quando as nossas expectativas são frustradas, por exemplo.

Acontece que existe uma diferença entre a antecipação natural, essa que fazemos no cotidiano, e a antecipação como disciplina, utilizada com Futures Literacy. Tratar o processo de antecipação como disciplina implica no uso de métodos e ferramentas, em entendê-lo como um campo de estudo, um território de conhecimento dentro dos estudos de futuros que não cria previsões através da antecipação, mas mapeia as possibilidades.

Como coloca Riel Miller, head de Futures Literacy na UNESCO, o futuro não é apenas uma temporalidade, mas também instrumento, assim nós podemos usar-o-futuro (use-the-future) para construir os futuros que desejamos.

Vamos entender melhor como fazemos isso no dia a dia…

Como a Aerolito utiliza o letramento em futuros no dia a dia?

A antecipação — nossa forma de “usar os futuros” — enquanto disciplina pressupõe um conjunto de ferramentas, métodos e aplicações. Isso significa dizer que pessoas letradas em futuros os antecipam a partir de uma lógica crítica e autorreflexiva. Explico: a especulação e a imaginação são potentes e importantes, mas podem funcionar melhor dentro de um contexto onde dados, informações e evidências do presente sejam usados como suporte. Tecer possíveis cenários futuros é brincar com as possibilidades entre o concreto e o abstrato, redefinindo os limites costumeiros daquilo que costumamos classificar como real ou irreal. Isso porque, nos futuros, não há vazāo para os binarismos.

Sabemos que aprender uma nova linguagem pode soar desafiador, e o caminho para a fluência nem sempre é tão rápido quanto desejamos. Mas parte importante do aprendizado está justamente no processo. Esse processo não é homogêneo ou igual para todas as pessoas, e nāo existe uma receita de bolo para a tomada de consciência da antecipação. O que existem são conjuntos de códigos e significados que fazem sentido dentro do contexto (social, histórico, geográfico e cultural) de cada pessoa que deseja aprender aquela nova linguagem — neste caso, a linguagem dos futuros.

Decidimos compartilhar um pouco do nosso próprio processo para assim, quem sabe, inspirar outras pessoas a adaptarem ou recriarem de acordo com o que fizer mais sentido para suas realidades. As metodologias da Aerolito, inclusive, partem do pressuposto do futuro(s) no plural, o que é mais um motivo para a gente exercer Futures Literacy na prática. Para isso, criamos uma espécie de passo a passo interno para que tudo aquilo que pensamos e propomos seja construtivo para um ecossistema de alfabetização de futuros.

Em outras palavras, para aplicar na prática o letramento em futuros nos nossos processos de pesquisa e trabalho, seguimos uma lógica de passos que consolidamos aqui em um modelo de pensamento:

  1. Questionamos todas as normas vigentes preestabelecidas do presente. Às vezes, a pressa do cotidiano, das relações, dos diálogos e dos afazeres fazem com que não paremos para pensar ou nos aprofundar sobre assuntos que até gostaríamos. Por isso, muitas vezes, ao nos depararmos com uma questão sobre temas que não pensamos cuidadosamente antes daquele momento, tendemos a responder automaticamente de acordo com a nossa noção do que aquilo representa no agora ou reproduzir opiniões de senso comum que ouvimos com frequência. É por isso que o primeiro passo do letramento em futuros na prática exige que sejam expandidas nossas perspectivas sobre o novo e o desconhecido, quebrando um paradigma ao parar de temê-lo ou de rejeitá-lo imediatamente; e que pensemos os futuros nāo somente a partir do que já aconteceu ou do que está acontecendo, mas também a partir do que pode acontecer.

Uma tecnologia existir agora implica necessariamente que ela continue existindo em um futuro breve? Nāo. Da mesma forma que uma tecnologia não existir agora não faz com que essa não existência seja permanente. Vamos tomar a mobilidade como ponto de partida para alguns exemplos práticos. Por mais que agora a ideia de táxis voadores cause um estranhamento no cenário brasileiro atual, pode ser uma prática corriqueira em alguns anos. Um sinal dessa possibilidade é o fato da Embraer já estar cobrando R$ 99 em voos de helicóptero em testes de rotas para carros voadores. Outras empresas, como a ASKA, já estão produzindo seus carros voadores. Isso não significa que o táxi voador é uma previsão precisa, ou que seja algo positivo ou negativo. Mas significa que talvez, antes de pronunciar um sonoro “de jeito nenhum” para alguma possibilidade dos futuros, devamos considerá-la o que ela é: uma possibilidade.

2. Quando consideramos a amplitude de uma questão que nos é proposta, abrangemos as possibilidades para além das imposições e da estrutura do presente. Podemos pensar esse ponto quase como a lógica de um cubo mágico: se anteriormente quebramos um paradigma e “desmontamos” uma determinada estrutura, agora precisamos construí-la do zero, quadradinho por quadradinho. É a hora em que podemos observar o problema de vários ângulos, em contextos distintos, analisando seu potencial transversal e os fatores que o interpelam. E, assim, extrapolamos o que é previsível.

Retomemos o exemplo dos carros voadores. Ok, já sabemos que existe a possibilidade de isso vir a acontecer. Mas agora podemos pensar além disso. Se existirem táxis voadores, o que muda na estrutura de mobilidade das cidades? Onde seriam os pontos de pousos? Quem vai dirigir esses carros, e quem vai acessá-los? As empresas que irão produzi-los vão se responsabilizar pela segurança dos translados, ou o serviço será feito por terceiros? Que outros mercados seriam afetados por essa nova modalidade? E, aqui, abrimos a caixinha irreversível das reflexões.

3. É hora de observar os elementos que testemunham futuros. Esses elementos podem ser de diferentes naturezas, a depender da abordagem escolhida. Em uma das nossas metodologias, por exemplo, entendemos que desejos das pessoas representam sinais de futuros possíveis. Aqui, durante esse texto, trouxemos o exemplo da Embraer e da ASKA, que de certa forma também manifestam sinais de futuros possíveis. Quais são os cases, notícias, dados, informações, modelos de negócio, estudos e afins que nos fazem tensionar nossas percepções sobre os futuros, e ter mais clareza sobre aquilo que pode acontecer?

Imagine uma especialista falando que carros voadores irāo ser vendidos popularmente em 10 anos. Esse é um sinal de um futuro possível. Outra especialista pode argumentar que, na verdade, carros voadores só irāo ser vendidos em 20 anos, e demorarāo a alcançar a populaçāo de forma massificada. Esse é um outro futuro possível. E, no meio disso, podem ter várias outras informações que complementam esses cenários possíveis, como os desafios enfrentados pelas empresas frente a atual legislação brasileira, ou uma pesquisa que mostra que pessoas trabalhadoras chegariam ao trabalho com muito mais rapidez. Mais do que concordar ou discordar com cada uma, o importante é abraçar todas as perspectivas que os sinais dos futuros elucidam.

4. Organizamos as perspectivas e identificamos cenários futuros. Nesse momento, reunimos os indícios de futuros e conectamos padrões entre eles para construir cenários, recheados por perspectivas e narrativas que os compõem. Lembram que os futuros estão no plural? Assim estão também os cenários. Vários deles compõem os futuros, e nāo necessariamente sāo coesos, bem como nāo sāo excludentes entre si. Ora, se os sinais que testemunham futuros sāo diversos, assim sāo as possibilidades dos movimentos, tecnologias, inovações e reconfigurações que irāo ocorrer.

5. Reconfiguramos o presente com base no meta-aprendizado. Após cenários montados, possibilidades mapeadas, e reflexões formuladas, lembramos que o conhecimento não é datado ou finito, e que o processo de aprendizagem não é linear. Pelo contrário: aprendemos conforme fazemos, pensamos, erramos e com as eventualidades e fatores que surgem externamente ao nosso aprendizado. Nosso cubo mágico nunca é de fato desvendado, mas não devemos nos angustiar, e sim entender aquela última pecinha que não se encaixa como uma oportunidade de continuar a desvendá-lo. O movimento final do nosso modelo de pensamento, então, é reticular, consistindo numa etapa de olhar para os passos anteriores, para onde chegamos e para onde queremos chegar, sabendo que, no fim das contas, o futuro nāo é um lugar que se chega: está delimitado no tempo, mas nāo acaba.

Conectando os pontos

Quando iniciamos esse texto, afirmamos que todo mundo está antecipando o tempo todo, mas que para ter letramento em futuros é preciso criar consciência sobre essa antecipação. É por isso que desenvolvemos um modelo de pensamento que cria as ferramentas para que o sujeito que o pratique — ou seja, nós — aja o tempo inteiro ciente do seu papel ativo na cocriação de futuros. Quando nos letramos para os futuros, tomamos consciência de que os futuros nāo sāo apenas uma extensão do presente, abandonamos o eixo unicamente observador e assumimos um papel de agentes da transformação — como sugerido pelo Riel Miller quando sugere que um viés menos determinista da agência humana proporcionado pelo FL poderia conceber novas formas de “usar os futuros” e de superar “a pobreza da imaginaçāo”. Ou seja, agimos sobre os futuros, criamos futuros plurais e alternativos. Nos distanciamos da ideia da previsibilidade para poder planejar.

“O planejamento busca controlar e fechar o futuro, enquanto os estudos de futuros buscam abrir o futuro, passando de um futuro para futuros alternativos” (INAYATULLAH, 2013, p.38).

Se somos agentes transformadores, quais futuros você está cocriando? As suas antecipações estão sendo elaboradas de forma consciente? Como os futuros estão impactando o seu presente concreto?

Talvez você não tenha todas as respostas agora, mas tudo bem. Nosso objetivo não era dar um ponto final ao seu processo de alfabetização de futuros, e sim propor ferramentas para torná-lo fluído. E esperamos que você ache tão empolgante quanto nós. (:

Fontes:

Transforming the Future: Anticipation in the 21st Century, Riel Miller e outros (2018)

Futures Studies: Theories and Methods​​, Sohail Inayatullah (2013)

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