Os futuros do trabalho, parte 2: DAOs

Olhando para tecnologias emergentes para pensar futuros.

Aerolito
Aerolito
10 min readMay 25, 2022

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Por time de pesquisa Aerolito.

Esta é a continuação de uma série de textos sobre os futuros do trabalho, caso não tenha lido a primeira parte, recomendamos que você acesse neste link aqui.

Photo by Alina Grubnyak on Unsplash

As crises vigentes no presente do trabalho tornam claro que, seja aprimorando o sistema atual ou criando um novo, faz-se primordial pensar alternativas.

Ao longo da História vimos técnicas e tecnologias transformarem os modelos de trabalho, seja as técnicas que possibilitaram a agricultura ou as que transformaram a indústria, até mesmo aquelas que habilitaram os modelos de trabalho que conhecemos hoje. Em outras palavras, diferentes tecnologias marcam diferentes momentos históricos ligados ao trabalho, portanto, olhar para tecnologias emergentes nos ajuda a especular possíveis futuros.

Dentre os caminhos possíveis para reimaginar os futuros do trabalho, discutiremos as possibilidades de transformação através da descentralização possibilitada pela tecnologia, mais especificamente, de uma forma de descentralização que ganhou força nos últimos anos: as Organizações Autônomas Descentralizadas ou, simplesmente, DAOs.

De maneira sucinta, DAOs são uma forma de organizar as pessoas e seus interesses na internet usando o blockchain.¹ São vários os modelos: podem ser sociais, baseadas em projetos e até mesmo empresas transformadas em DAOs. Funcionam em código aberto, sem gerenciamento hierárquico e com base em contratos inteligentes e tokens. Em uma DAO, os detentores dos tokens têm participação direta e podem tomar decisões de forma conjunta e, ao mesmo tempo, descentralizada, por funcionar através da tecnologia blockchain.

Se no passado recente o modelo plataforma afetou as dinâmicas e os desejos das pessoas em relação ao trabalho, hoje as DAOs parecem estar liderando as mudanças. A partir delas vislumbramos uma internet que, por meio da descentralização, da transparência e da posse compartilhada, pode ser um ambiente mais democrático como um todo, inclusive para as relações de trabalho.

Ainda assim, uma vez que nos propomos a pensar os futuros do trabalho sem ignorar as questões do presente, é importante ir para além da binaridade, as coisas não são unicamente boas ou ruins e não será diferente quando estamos falando sobre as DAOs.²

Autonomia e os desafios de um trabalho mais ‘livre’

À medida que as DAOs ganham espaço, cresce a autonomia desse modelo de trabalho. Na web, trabalhos focados em projetos e no modelo freelancer, onde se ganha uma renda variada a depender do tipo de projeto, são mais comuns que em outros setores. O mesmo acontece com as DAOs, já que em vez de ter um empregador e uma semana de trabalho de 40 horas, é possível contribuir com várias horas por semana para várias DAOs ao mesmo tempo, e há maior autonomia.

Ainda assim, precisamos estar atentos para as possibilidades positivas e negativas dessa realidade. Quando abordamos as questões de autonomia, não buscamos reforçar a ideia de que o trabalhador é o empreendedor de si mesmo, sabemos o quão prejudicial este discurso pode ser (e é) ao corroborar para a diminuição de direitos trabalhistas disfarçados de uma falsa liberdade.

No entanto, não podemos negar que há uma parcela da classe trabalhadora que enxerga sentido em trabalhar de forma autônoma na web. Em março deste ano, o Brasil bateu recorde de demissões voluntárias. A falta de motivação e a busca por alternativas é uma realidade. Enquanto 85% da força de trabalho global está desmotivada, as DAOs, ao possibilitar às pessoas maior liberdade para escolher projetos cuja missão e visão realmente ressoem com elas, podem ajudar a diminuir os conflitos entre vida profissional e pessoal, cargas de trabalho excessivas, falta de autonomia e políticas de escritório que geram estresse no local de trabalho.

Recentemente, uma pesquisa chamada The New Coordination Frontier (que pode ser acessada aqui) e conduzida pela GitcoinDAO foi realizada com colaboradores de diferentes DAOs, inclusive das maiores empresas que funcionam no modelo DAO (Bankless, Gitcoin, Index Coop, DAOSquare, dOrg). Nela, os participantes colocaram que nas DAOs têm um sentimento de realização, significado e propósito não encontrados em organizações tradicionais, onde a autonomia e a propriedade coletiva são combustíveis para o empoderamento destes trabalhadores. Para eles, ser capaz de estar na vanguarda da tecnologia e da cultura é um atrativo.

Ao mesmo tempo, ainda que o modelo esteja em fase experimental e com muitas possibilidades de mudança, foi possível identificar o que foi chamado de DAO Fatigue (Fadiga de DAO). Ainda que seja possível trabalhar em inúmeras DAOs, isso é realidade para uma minoria. A maioria dos entrevistados está em 1 ou 2 DAOs (Gráfico 1). Segundo eles, sentir-se demandado em muitas direções era um problema real que causava cansaço mental, para eles a participação significativa e prazerosa não pode ser obtida além de duas DAOs.

Gráfico 1: Participação em diferentes DAOs

Descentralização: afetando e sendo afetado pelo sistema

Em desacordo com as principais teorias de organização empresarial, a agência que os colaboradores têm em uma DAO é fundamentalmente diferente da que teriam em uma organização tradicional, justamente porque através dos contratos inteligentes e dos tokens torna-se possível uma tomada de decisão que é ao mesmo tempo conjunta e descentralizada.

Vale dizer que, como em qualquer empresa, não há regra única. Algumas DAOs permitem que membros com uma certa quantidade de tokens de governança apresentem propostas, enquanto outras prevêem um sistema de token multicamada em que apenas os detentores de um tipo específico de token podem apresentar propostas nas quais os outros colaboradores votam.

Ainda que a gente assuma a importância da descentralização em uma DAO, geralmente elas são iniciadas de maneira centralizada, onde são concedidas uma quantidade suficiente de tokens de governança aos desenvolvedores que com o tempo passam a ser distribuídos aos outros colaboradores. Embora as DAOs tenham um conjunto de colaboradores principais (pelo menos nos estágios iniciais) que podem estar envolvidos em tempo integral, a maioria das pessoas são autônomas e responsáveis por tarefas individuais. São diversos os trabalhos e as funções que podem ser exercidas em DAOs.

Somado a isso, em uma DAO, também existem diferentes formas de ganhar dinheiro, geralmente através de cripto ativos, são elas:

  • work-to-earn (W2E): trabalhar para ganhar. Nestes casos você trabalha na construção da comunidade, na governança, na operação, no marketing ou em outras áreas da DAO e ganha por este trabalho em tokens ou em moeda digital (atrelada ao dólar), ou ambos.
  • play-to-earn (P2E): brincar para ganhar. É uma variação do W2E. Por exemplo, o Axie Infinity é um videogame baseado em tokens onde os jogadores coletam, criam, batalham e trocam criaturas conhecidas como Axies e podem ganhar dinheiro dessa forma.
  • learn-to-earn (L2E): aprender para ganhar. Um modelo onde você aprende para receber, um exemplo é a plataforma RabbitHole, que paga para você aprender sobre aplicativos e skills que serão fundamentais na Web3.
  • create-to-earn (C2E): criar para ganhar. Neste caso, é possível escrever artigos ou criar obras de arte em troca de tokens, comum em NFT e coletivos de artistas em DAO.
  • use-to-earn (U2E): usar para ganhar. Ganhar dinheiro ao postar comentários e interagir com aplicativos de mídia social da Web3, como o Minds, por exemplo.

Os caminhos para ganhar dinheiro estão cada vez mais fluidos e menos conectados ao trabalho tradicional que conhecemos. Uma pesquisa recente feita no Brasil mostrou que 75% dos jovens almejam ser influenciadores digitais e ter retorno financeiro a partir disso. Se esta já é uma realidade no Brasil, quando nos deparamos com as novas possibilidades que surgem a partir das DAOs, emergem algumas questões: uma vez que ganhar dinheiro passa a não depender tão somente de fornecer um serviço a ser prestado, mas de jogar ou de aprender, quais as mudanças nas expectativas do trabalho? O que passa a significar trabalho? Quais novas funções são atribuídas ao trabalho? E quais as demandas deste trabalhador?

Ainda que as possibilidades de governança e de ganhar dinheiro sejam diversas e descentralizadas, se voltarmos para aquela mesma pesquisa realizada com os colaboradores foi possível identificar que as DAOs (até o momento) não são uma fonte confiável e estável de renda, tornando os ganhos um grande ponto de dor para aqueles que pretendem trabalhar neste mercado.

Muitos dos colaboradores mantêm seus empregos diários, dos 422 respondentes, 189 não dependem das DAOs como fonte de renda primária. Também observamos a mesma questão quando entendemos que a maioria dos colaboradores obtêm seu seguro saúde fora das DAOs (Gráfico 2), por meio dos empregadores atuais ou do plano de um membro da família:

Gráfico 2: Meios para obter seguro de saúde

Estes são pontos que precisam ser tratados e refletidos, uma vez que afetam os direitos do trabalhador e implicam diretamente em sua autonomia financeira. A falta de seguridade, de salários dignos e de benefícios fundamentais no trabalho nos leva a problemáticas discutidas no texto anterior, o movimento de predação. A falta de segurança seja ela emocional ou financeira promove medo, que é administrado pelas empresas em prol de maior produtividade. As lógicas de predação estão presentes em diferentes mercados. Neste, não seria diferente. Estar atento a estas lógicas e buscar alternativas é primordial, ainda por cima quando discutimos um novo modelo de trabalho, ainda em construção e passível de grandes mudanças.

Especulações e reformulações

“[DAO] é a melhor coisa que me aconteceu. Eu vim de uma família pobre na Nigéria, mas a [DAO] me ajudou a sair da pobreza. Trabalho e governo de forma altamente participativa. Não encontrei limites (ainda) em projetos dos quais queria fazer parte. Pode-se fazer parte de muitos grupos de trabalho e sub-DAOs diferentes. Há fluidez na estrutura e nos papéis.”

A partir de falas como essa, de trabalhadores na DAO, podemos propor novas questões.

Quais os caminhos para definir pagamentos e salários quando há uma alta fluidez na estrutura e nos papéis da empresa? Quais são as competências necessárias para exercer essas funções múltiplas? Além disso, nesta fala é possível perceber os impactos positivos da descentralização e as possibilidades geográficas que acompanham este modelo de trabalho. Quais os impactos de uma equipe geograficamente diversa? O que pode representar para economia local caso o salário recebido em uma DAO seja mais alto que a média de salários daquele espaço? O que significa para os trabalhadores e para as empresas que as oportunidades possam estar em qualquer lugar?

“Ninguém está lhe dizendo o que fazer. Isso é liberdade e responsabilidade. Vá e faça o que você gosta. Além disso, entre no modo de aprendizado o tempo todo.”

Será que a longo prazo ainda fará sentido trabalhar em várias DAOs? A depender do projeto e do contrato? Ou será que neste processo de autonomia o trabalhador não ficará muito mais sobrecarregado? Como podemos lidar com a falta de hierarquia quando precisamos aprender sozinhos? Será que essa autonomia completa é de fato positiva? Como fazer para que essa balança fique cada vez mais justa?

“Entender que você está trabalhando para a comunidade e, quando aplicável, compartilhe seu produto de trabalho com a comunidade.”

A participação coletiva nas DAOs aflora um senso de comunidade muito forte. Será que vamos nos sentir mais confortáveis para contribuir com a governança dos locais em que estamos trabalhando? Será que, como são modelos de trabalhos descentralizados, para que as DAOs funcionem o foco não estará voltado para a comunidade e para o bem estar coletivo? Se eu posso trabalhar em diferentes funções e em diferentes DAOs, o que definirá a minha escolha?

As DAOs são um novo modelo de organização, portanto ainda há muito para inventar e descobrir. Os espaços de certeza não são claros, contudo seu potencial de transformação é alto.

Como você responderia às nossas questões? Que outras questões você proporia?

Um futuro transformado e baseado em DAOs é exatamente isso, um futuro. Nos próximos textos abordaremos outras possibilidades. Afinal acreditamos em futuros, no plural.

¹ Como este texto visa especular os futuros do trabalho a partir do modelo de descentralização que emerge a partir das DAOs, não abordaremos com profundidade a tecnologia blockchain, porque este tema pode virar um texto por si só (caso queira entender melhor sobre a tecnologia recomendamos este texto aqui).

² Indo para a além da binaridade. Provavelmente você já ouviu alguém falar que as vantagens da tecnologia blockchain, na qual as DAOs estão fundamentadas, estão na não regulação da prática pelo Estado e na distância de qualquer autoridade central, possibilitando a tão sonhada auto regulação. Nós, por outro lado, assumimos a importância da regulação de alguma forma. Um mercado sem regulação não é necessariamente um espaço democrático, mas um espaço onde prevalece a lei do mais forte. Ainda que alguns argumentem que a transparência, a imutabilidade e a própria descentralização da blockchain resolveriam esses problemas, na prática, não é exatamente isso que ocorre. Bitcoins, por exemplo, que são consideradas o grande case de sucesso da tecnologia blockchain, funcionam a partir de uma lógica de competição destrutiva entre os “mineradores”, onde acaba por prevalecer a lei do mais forte (leia mais sobre esse assunto aqui). Portanto, a regulação, ainda mais quando tratamos das relações de trabalho, pode contribuir para a prosperidade do mercado e para a diminuição de assimetrias.
A tecnologia não é boa, não é ruim e tão pouco neutra. Dizemos isso porque, ao analisar uma tecnologia não podemos — e não devemos — separá-la das lógicas as quais estão inseridas ou para as quais foram criadas. Diferentes tecnologias (ou até as mesmas) podem servir a interesses distintos e nós precisamos estar atentos a estas questões antes de optar por caminhos simplistas, tecnosolucionistas ou tecnofóbicos. Por isso, devemos sempre nos perguntar: para que fim essas tecnologias foram desenvolvidas? As suas lógicas de funcionamento estão a serviço de quem? Quem se beneficia das soluções que essa tecnologia propõe? Estas tecnologias têm potencial disruptivo e subversivo ou seguem respondendo ao status quo?

Agora, juntamos o melhor desses dois mundos e criamos o Tomorrow One.

Neste curso você irá se atualizar sobre:
• Lentes das principais escolas do mundo
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