Sobre pessoas trabalhando de casa

Aerolito
Aerolito
Published in
6 min readJun 3, 2020

Por Simone Gasperin, via LinkedIn.

Trabalho remoto.

Novo normal.

Ninguém mais aguenta textos com dicas sobre trabalho remoto. Ninguém mais aguenta ouvir o termo novo normal, num contexto em que, de normal, há pouca coisa. Então pensei muito se deveria escrever esse texto. Mas resolvi colocar para fora algumas angústias, reflexões e um olhar que talvez esteja em segundo plano.

Hoje mesmo li uma nota em que o presidente de uma multinacional disse que o trabalho remoto “veio para ficar”. Então, meus centavos aqui não são para dizer que possivelmente pós-pandemia veremos mais empresas operando de forma remota. Talvez algumas, de forma definitiva. O que eu trago aqui são algumas recomendações/sugestões para relembrar que nesse formato de trabalho, alguns cuidados são necessários para preservar a saúde física e mental das pessoas, a sustentabilidade das empresas e para garantir que nessa digitalização não estejamos usando a tecnologia apenas para perpetuar uma relação arcaica de trabalho.

1. Não invada o espaço emocional das pessoas

Ouvi esse termo numa conversa sobre comunicação não-violenta e ele ficou na minha cabeça desde então. Isso não significa ser uma pessoa queridinha, não cobrar resultados ou não provocar discussões. Significa “apenas” entender que respeito deve pautar todas as relações. Ainda: significa entender que todas as pessoas estão passando por um momento difícil: enfrentando o medo de ficar doente, a distância de pessoas queridas, a pressão pela maior crise econômica que se desenha, em tempo real, na nossa frente.

Mais: estamos sentindo, na pele, o quanto as reuniões remotas em excesso causam um esgotamento psicológico, o que já está sendo avaliado por profissionais da área de gestão, conforme mencionado num recente artigo do jornal El País:

“A linguagem não verbal é o primeiro ingrediente da comunicação oral”, explica ao EL PAÍS Yago de la Cierva, professor de Gestão de Pessoas em Organizações do IESE Business School, da Universidade de Navarra. “Equivale a mais de dois terços do que a pessoa quer compartilhar: fornece a interpretação e o significado.” Em uma videoconferência, isso fica muito limitado, “há duas dimensões em vez de três, geralmente ficamos sentados e quietos, e o controle do espaço é muito importante”, assinala o especialista. A ausência dessa terceira dimensão é que desencadearia, no final, um esforço psicológico excessivo.

2. Não parta da premissa de que as pessoas estão sempre à disposição

Nesse momento de pandemia, tenho ouvido muito de pessoas conhecidas o quanto as empresas e as pessoas gestoras tem se prevalecido do fato de que as pessoas não estão ali presencialmente ou de que possivelmente estão em casa para acioná-las a qualquer momento, por qualquer meio. Ou, ainda, cobrando entregas irreais, baseadas em jornadas exaustivas. Como bem disse o Ian Black, sócio da New Vegas num post recente:

Só lembrando:

Por mais que a pandemia de COVID-19 tenha fragilizado muitas empresas, fazer seus funcionários virarem noite e trabalharem jornadas exaustivas nos finais de semana continua sendo abuso por parte de gestores.

Talvez o melhor título para esse segundo item fosse: não use o contexto da crise para criar relações abusivas.

3. Tenha em mente que poder trabalhar remotamente, com qualidade, conforto e segurança, é um privilégio

Sou uma defensora do trabalho remoto e tenho operado dessa forma há mais de um ano. Trabalho de casa, com um bom computador, uma cadeira confortável, acesso à internet. Mas quem está nessa posição, como a minha, precisa entender que, infelizmente, essa realidade ainda é o “novo normal” para pouquíssimas pessoas. A Camila Achutti, CEO e Founder da Mastertech, fez um texto sobre isso, que devia ser leitura obrigatória para todas as pessoas/organizações que de alguma forma se dispõem a discutir futuro do trabalho:

Não estou pedindo para você ter vergonha do seu Mac aí em cima da mesa, eu estou pedindo para você lembrar que é brasileiro e que aqui o pacote de dados mais barato custa 40 reais e 25% da população desse país vive com até 406 reais por mês. Tem 40% da população na informalidade, ele não ganhou um notebook para ir trabalhar de casa, viu!?

Enfim, última reflexão. Pensa comigo:

Quantas famílias tem 2 ou mais computadores em casa viabilizando que os pais ou os filhos estudem e trabalhem ao mesmo tempo no conforto que você tem, sem ter que ficar revezando? No conforto que eu descrevi para vocês?

Eu te respondo: 14% dos domicílios nesse tem mais que 2 computadores ou notebooks.

Quer mais?

Qual a porcentagem da população que pode acessar a internet, por dispositivo utilizado de forma exclusiva ou simultânea? 3%.

4. Organize sua empresa para trabalhar de forma assíncrona

Adoro trabalhar com pessoas de programação / tecnologia porque elas tendem a ver o mundo de forma mais prática. Tendem a focar mais na solução e menos no problema. E já operam de forma remota, inclusive com pessoas de outros países, há bem mais tempo.

Uma das melhores coisas que eles fazem é saber organizar e documentar o trabalho e, assim, permitir que outras pessoas deem sequência ao projeto a qualquer horário, de qualquer lugar.

Não estou dizendo com isso que as conversas, trocas e co-construções não sejam relevantes. Mas quanto mais falamos em trabalho distribuído, em adoção de tecnologias, em agilidade, mais precisamos pensar formas do projeto ter continuidade sem a necessidade de todos estarem juntos no mesmo horário e “local” seja ele físico ou remoto.

Como disse Jose Morales em uma conversa com o The Shift:

O que vai ser interessante sobre a próxima fase do trabalho virtual é como repensar todas as tarefas a que nos acostumamos em um escritório, já que não temos necessariamente que replicá-las na nova maneira de trabalhar. O que vamos ver no futuro é que vamos fazer as coisas de maneiras diferentes para que você possa fazer isso de forma assíncrona.

O trabalho assíncrono pode parecer muito tático ou ferramental, mas ele carrega características importantes para organizações que querem perdurar num futuro digital: transparência e informação distribuída.

5. Desapegue (de verdade e não no discurso) do microgerenciamento

São tristes mas reais os casos em que pessoas trabalhando de casa são monitoradas por câmeras ou precisam ficar dando checkpoints ao longo do dia. Quando trabalhamos com inovação sabemos que esse cenário é o oposto do que devemos buscar. A inovação está num formato pautado em alinhamento e autonomia, em que as pessoas sabem quais são os objetivos das empresas mas o caminho vai sendo construído, com falhas e rápida aprendizagem, mantendo a velocidade e a busca por soluções para problemas cada vez mais complexos.

É o tipo de assunto que qualquer gestora ou gestor está cansado de ouvir falar. Na prática, mesmo as empresas ditas mais inovadoras ainda se viram em grandes dilemas quando tiveram que, da noite para o dia, liberar funcionários e funcionárias para trabalhar de casa.

O fato é que sim: veremos cada vez mais pessoas trabalhando de casa.

E isso é só o início.

Com as pessoas trabalhando mais de casa, mudam muitas outras coisas. E isso é assunto para outro texto, que eu, Igor e Kim, pesquisadores da Aerolito, pretendemos escrever.

Mas, adiantando um pouco a provocação, como bem disse o Kim, numa ótima reflexão:

Quando as pessoas puderem decidir onde morar por outros fatores que não o trabalho, o que vai acontecer?

Uma coisa é fato: mudam as relações com as empresas e com as pessoas gestoras.

Empresas mais flexíveis, mais adaptadas a esse novo contexto, terão mais engajamento.

A gestão que acredita que “é o olho do dono que engorda o boi” ficará, ainda bem, obsoleta.

Me encaminhando para o fim, releio o texto e reflito sobre se o uso do imperativo pode ter soado pretensioso, como se eu tivesse uma experiência absurda ou todas as respostas. Longe disso. Como aprendemos num workshop da Officeless, operar de forma remota, é uma aprendizagem contínua.

Já erramos e acertamos por aqui.

E posso ser ingênua mas, acredito de coração — e também porque tenho estudado bastante sobre isso — que colocar as pessoas no centro e valorizar o melhor das relações humanas são os fatores que tornarão os ambientes de trabalho mais preparados para as mudanças, para o impacto das novas tecnologias e, especialmente, para a inovação.

--

--