A clínica do fim do mundo: notas sobre o sofrimento emocional a partir de uma perspectiva política da não-monogamia

Mari Matos
Afetos Insurgentes
Published in
11 min readJun 22, 2023

Conforme o debate da não-monogamia ganha destaque, vemos cada vez mais psicólogues e psicanalistas participando da discussão. Esse texto analisa criticamente alguns discursos que vêm sendo produzidos sobre não-monogamia, saúde mental e subjetividade. Além disso, reflete sobre como a anti-monogamia pode contribuir para inspirar um cuidado conosco e com o outro. Afinal, ainda que as não-monogamias revolucionárias sejam incompatíveis com noções liberais de bem-estar, isso não quer dizer que sejam insensíveis aos processos da vida.

via pexels

A psicologia, de diversas formas, tem colaborado para a manutenção do sistema patriarcal-colonial-capitalista. Alguns diriam que isso é coisa dos maus psicólogos. Eu diria que é um problema que está na base da profissão e que sustenta — ainda hoje — o pensamento hegemônico do campo. Maus psicólogos somos nós quando optamos por negar a realidade sócio-histórica de nossas teorias e práticas para nos defendermos ao invés de olharmos criticamente para essa questão e nos comprometermos todos os dias a fazer radicalmente diferente.

Entre os muitos problemas do campo, vemos cada vez mais psicólogues e psicanalistas que se acham preparades para falar sobre… tudo. Análise de participante de BBB? Tem. Psicanalistês torto para explicar todo e qualquer fenômeno social? Tem. Opinião sobre assuntos sobre os quais a pessoa não tem estudo ou experiência alguma? Tem também.

Eu entendo que quando nos posicionamos, por mais que a gente procure ser responsável, às vezes, erros irão acontecer. Eu nem sou de falar publicamente ou escrever com tanta frequência, mas já me coloquei de formas que, hoje em dia, eu discordo. Isso faz parte. A gente muda e aprende o tempo todo. O problema é que existem profissionais que, em nome de produzir conteúdo para as redes, estão sistematicamente falando daquilo que pouco entendem e é claro que o assunto """do momento""", a não-monogamia, não pode faltar.

Ao longo do tempo, foi produzido todo um arsenal de conhecimento para analisar e regular a vida afetiva e sexual da população. Não à toa, tantas pessoas não-monogâmicas têm histórias horríveis em consultórios de psicologia, espaço com uma antiga tradição de botar as pessoas de volta nos trilhos do sistema. Ainda há uma perspectiva de que qualquer desvio da norma é um sintoma a ser tratado. Afinal, a família nuclear, patriarcal, branca, cisheteronormativa e europeia está no centro da maioria das teorias psicológicas. É a partir daí que entendemos como se constitui um sujeito no mundo.

Isso embasa, inclusive, o trabalho de muitos terapeutas que se dizem alinhades com o campo progressista. Estes, frequentemente, não realizam uma oposição frontal à não-monogamia. Na verdade, o discurso tende a ter um tom de aceitação: “Não há certo ou errado, apenas aquilo que funciona para cada um”. Esse tipo de posicionamento opera a favor do sistema ao retirar o caráter político de uma luta social reduzindo-a a uma questão de escolha individual. Assim, admite apenas retoques na norma, mudanças pequenas e inúteis. Se o sistema fosse de fato confrontado, isso inevitavelmente levaria a uma necessidade de revisão radical de suas bases teóricas.

“As ferramentas do mestre não irão desmantelar a casa do mestre. Elas podem nos permitir temporariamente a ganhar dele em seu jogo, mas elas nunca vão nos possibilitar a causar mudança genuína. E este fato é somente ameaçador àquelas mulheres que ainda definem a casa do mestre como a única fonte de apoio delas.” (Lorde, 1984)

A nossa luta nas não-monogamias que adotam uma perspectiva política não é pelo reconhecimento de um modelo relacional alternativo à monogamia, como se estivéssemos falando de duas possibilidades igualmente pertinentes. Não existe meio-termo e nem conciliação com a opressão. A luta precisa ser radicalmente anti-monogamia ou é só mais do mesmo. Porém, por adotarmos um tom crítico e termos uma proposta radicalmente antissistema, muitas pessoas dizem que existe uma tentativa de imposição da não-monogamia. Isso caminha pela mesma lógica do “kit gay” e da “ameaça comunista”. Só que, no caso, é dito por quem se considera de esquerda. [1]

Mesmo profissionais que trabalham de maneira mais próxima com a temática da não-monogamia, muitas vezes, o fazem a partir de um olhar neoliberal. Dessa forma, alguns workshops e cursos têm surgido com a proposta de preparar psicólogues para atender as demandas de pessoas não-monogâmicas. Me gera um incômodo esse marketing com tom de “olhe só esse nicho crescente do mercado!”. Afinal, se entendemos a monogamia como um sistema de opressão, o combate a suas estruturas deveria embasar nossa prática o tempo todo, não só com quem chega no consultório se dizendo não-monogâmico.

Sempre que eu coloco isso, algumas pessoas parecem sofrer de confusão seletiva achando que estou argumentando que devemos impor uma visão de mundo às pessoas que acompanhamos, mas a maior parte de nós parece entender que para fazer uma clínica antirracista, por exemplo, ninguém precisa ler os discursos completos do Malcolm X na sessão, não é mesmo?

Da mesma forma, na faculdade aprendemos uma série de conceitos da psicologia, mas sabemos que não iremos fazer palestras sobre eles. Ume psicologue que estude o inconsciente segundo Freud, por exemplo, terá sua prática orientada por esse pensamento, ainda que não caiba dar aulas sobre o assunto para as pessoas que acompanha na clínica. Isso não é nenhuma grande novidade. É meramente o entendimento de que nossas bases teóricas e a maneira como experienciamos o mundo influencia o que fazemos e como fazemos.

Há quem diga que não devemos nos orientar por perspectivas radicais para respeitar os processos das pessoas. Porém, para mim, desrespeito é continuar produzindo argumentos para sustentar um sistema que produz tanto dano. Por isso, meu incômodo é com uma psicologia que acha que é antiético questionar o direito à propriedade privada que é o outro (e nós mesmos) dentro na monogamia. Nessa psicologia, parece que nunca chega a hora certa para colocarmos que outros mundos são possíveis, ainda que este mundo em que vivemos esteja matando a todes nós. Estou cansada dessa argumentação de que o pensamento crítico na não-monogamia é incompatível com o cuidado, a sensibilidade e a prudência com a vida e seus processos. Acredito que seja incompatível com as noções liberais de bem-estar, mas isso é só mais um ponto positivo.

Eu sempre pensei muito sobre o tanto de vezes que a gente sente o peito ruir no caminho pela não-monogamia, pelo menos eu sinto o tempo todo. Penso sobre tudo aquilo a gente precisa deixar morrer nesse processo e os seus velórios. Eu descobri que mesmo que aquilo que morre estivesse nos fazendo muito mal, há luto.

Porém, reforçar a ideia de que precisamos de acordos restritivos e hierarquias em nome de nossa saúde mental é uma forma medíocre de pensar a clínica. Até quando nossa brilhante proposta será amenizar os sofrimentos produzidos pela monogamia com mais monogamia? De fato, existem sofrimentos que podem vir do processo de ruptura com a norma e isso merece atenção. No entanto, o que eu questiono são os caminhos que propomos de cuidado diante dessas dores, indagações, medos e incertezas. Que recursos podemos explorar para sustentar essas experiências, atravessá-las e aprender com elas? Essa pergunta me interessa mais do que os roteiros prontos da monogamia para amortecer conflitos. Não é sobre não existirem erros ou contradições pelo caminho, mas sobre nossa capacidade de seguir explorando apesar das dificuldades ou, mesmo, inspirades por elas.

Diante de tudo isso, é importante lembrar que lutas políticas não são mercadorias. Ainda que a didática seja importante, nossos discursos não deveriam se ajustar para tornarem-se mais fáceis de serem vendidos ou incorporados ao sistema. Fazer isso pode até contribuir para que a temática da não-monogamia ganhe maior visibilidade e aceitação social, mas também esvazia a pauta de seu caráter revolucionário.

“Proponho que seja um movimento terrorista, não no sentido patriarcal de plantar bombas em qualquer lugar, isso não resolve nada. Em vez disso, deve ser um movimento ou um modo de vida que coloca o sistema em risco. Quando você vê que em qualquer jornal de direita ou programa inofensivo se pode falar sobre poliamor, você percebe que isso não coloca ninguém em risco. É quase uma piada do sistema.” (Vasallo, 2022)

Não deveríamos lutar para reformar o sistema monogâmico, o capitalismo, o patriarcado, ou o que quer que seja. Ninguém deveria perder tempo implorando por um lugarzinho na mesa do sistema. Esse tipo de ativismo só serve para vender workshops que prometem que você sairá de lá com a alma transformada, canecas com a foto da Frida Kahlo e batom para a “mulher empoderada”. [2]

Vivemos em um mundo absolutamente insustentável. Por isso, é essencial pararmos de dar pontos nos rasgos do sistema e dizer que o fazemos em nome da saúde mental das pessoas. Existem rupturas que precisam acontecer para deixar a vida entrar. Quando entendemos o tamanho dos problemas que enfrentamos e nos comprometemos com a mudança, é inegociável fazermos uma clínica do fim do mundo.

O que é conhecimento? Que conhecimento é reconhecido como tal? E qual conhecimento não é reconhecido? Que conhecimento é esse? Quem é autorizado a ter conhecimento? E quem não é? Que conhecimento tem sido parte das agendas acadêmicas? Quais conhecimentos não fazem parte? Que conhecimento é esse? Quem está autorizado a ter esse conhecimento? Quem não está? Quem pode ensinar esse conhecimento? Quem não pode? Quem habita a academia? Quem está às margens? E, finalmente: quem pode falar? (Kilomba, 2019)

Dia desses, um grupo desavisado de estudantes de psicologia me convidou para falar na semana de psicologia de sua faculdade. Eu comecei propondo um exercício que eu já propus em alguns lugares diferentes. Primeiro, eu pedi o auxílio de uma pessoa voluntária. Ainda que espaços da psicologia sejam predominantemente femininos, geralmente, é um homem cis branco que se levanta. Dessa vez, não foi diferente.

Pedi para que em 3 minutos eles fossem falando o máximo de nomes de autores estudados nos cursos de psicologia que eles pudessem lembrar. Enquanto isso, o voluntário os escrevia na lousa. Não me lembro ao certo, mas chegaram a uns 25 nomes. Pedi então que outra pessoa viesse a frente e apagasse o nome de todos os homens cis. Sobraram em torno de 6. Em seguida, pedi que apagasse todos que fossem dos Estados Unidos ou Europa. Sobraram dois nomes. Pedi então que apagasse o nome de todas as pessoas brancas. Não sobrou ninguém. Normalmente, não sobra.

Grada Kilomba nos faz uma pergunta importante: quem pode falar? Naquele dia, eu estava palestrando em uma sala onde, anos antes, eu havia ocupado como estudante. Porém, no passado, eu não podia falar. Na verdade, durante todo o meu percurso acadêmico eu nunca senti que pudesse falar. E durante todo o meu percurso pela psicologia, nos espaços de formação oficial (como graduação, pós, mestrado), eu escutei pouco que se aproximasse da minha experiência de vida ou de qualquer corpa que saísse da norma. Do pouco que escutei, boa parte só servia para reforçar estigmas e o nosso não-lugar. A formação que eu obtive para ser quem eu sou hoje não foi nesses espaços, mas em trocas com companheires de luta.

Em algum momento, um rapaz levantou a mão e argumentou que os autores estudados no curso são reconhecidos porque conseguiram produzir conhecimento relevante. Pois então é mera coincidência que sejam majoritariamente homens cis brancos? Não seriam as corpas trans, gordas, negras e indígenas capazes de produzir conhecimento relevante? Como é incômodo descobrir que nossos ídolos não ganharam o renome que têm por serem brilhantes e, sim, por ocuparem um lugar de poder. Para escutarmos essas vozes privilegiadas, quantas outras foram apagadas? Quantas foram injustamente desqualificadas? Quantas foram enterradas vivas? Poucas são as pessoas que se preocupam com isso. Mas é só falar em retirar Freud, por exemplo, do centro do pensamento, que isso gera estranhamento. Seria possível mesmo? Afinal, se retirarmos esses nomes, só nos resta um quadro em branco (ou não?).

Naquele quadro (que para mim, já não é nada branco), eu imagino o nomes des minhes amigues e de um tanto de gente que dedicou a vida à luta revolucionária. Eu vejo uma multidão.

Ainda tratamos a maioria dessas corpas como apêndices na psicologia. Quem está no centro são os autores cis, brancos, europeus e estadunidenses. Mas para ficar bonito, vale até citar Fanon de tempos em tempos para contemplar alguns “recortes”. Pois é assim que corpas marginalizadas são tratadas: como recortes.

Foram poucas as pessoas que tiveram interesse em ouvir sobre uma clínica política naquele dia e sobre o “recorte” que é a existência da vasta maioria do mundo que não se encaixa ou se beneficia das estruturas sociais vigentes. Das que estavam lá, uma parte saiu irritada comigo, tenho certeza. Para nós, que somos o lixo da sociedade [3], falarmos, é preciso que não se peça perdão e nem permissão.

Quem fala importa, pois aqui me interessa muito o que aqueles que sabem que este mundo é um fracasso tem a dizer. Quero ouvir a voz de quem respira nas rachaduras. Quero saber o que descobriram aqueles que brincaram de explorar o que existe para além dos trilhos do sistema.

Ao invés de nos preocuparmos tanto na não-monogamia em dizer que temos regras e somos comportados, podemos sim dizer que somos sujos, desajustados, monstruosos e, acima de tudo, perigosos. Me ofende quem anda abraçado à norma e gosta de mim.

Não-monogamia é o entendimento de que apenas reestruturando a forma como nos relacionamos uns com os outros poderemos encontrar a saída do buraco onde nos encontramos. É absolutamente reducionista essa ideia de que não-monogamia é sobre a quantidade de pessoas com quem transamos. Nós queremos mudar o mundo. A possibilidade de transar com múltiplas pessoas é uma parte gostosa e, às vezes, complicada desse processo.

Para nós, as corpas que nunca tiveram um lugar nesse mundo, o seu fim significa o começo da vida. É a possibilidade de reinventar nosso corpo, nossos desejos, nossos amores e nossas dores. É brincar criativamente com a possibilidade de existir. E a gente se diverte e chora muito nesse processo.

Referências

KILOMBA, Grada. Memórias da plantação — Episódios de racismo cotidiano. Rio de Janeiro: Cobogó, 2019.

LORDE, A. As ferramentas do mestre nunca vão desmantelar a casa-grande, in: Lorde, A. Sister outsider: essays and speeches. New York: The Crossing Press Feminist Series, 1984. p. 110–113.

VASALLO, B. A monogamia não é uma escolha, mas um sistema opressor. Entrevista concedida a Ana Requena Aguilar. El Diario, 2019.

Notas

[1] Para maior aprofundamento, ler: LIMA JR, N. S.; MIRANDA, R. Um espectro ronda as redes — o espectro da Não-monogamia Política. NM em Foco. 2022. Disponível em: https://naomonoemfoco.com.br/um-espectro-ronda-as-redes-o-espectro-da-nao-monogamia-politica/.

[2] Para maior aprofundamento, ler: VASCONCELOS, A. Comprando desconstrução: quando a Não-Monogamia se torna mercadoria. Afetos Insurgentes. 2022. Disponível em: https://medium.com/afetos-insurgentes/comprando-desconstru%C3%A7%C3%A3o-quando-a-n%C3%A3o-monogamia-se-torna-mercadoria-b6e80a061aac

[3] “Ora, na medida em que nós negros estamos na lata de lixo da sociedade brasileira, pois assim o determina a lógica da dominação, caberia uma indagação via psicanálise. E justamente a partir da alternativa proposta por Miller, ou seja: por que o negro é isso que a lógica da dominação tenta (e consegue muitas vezes, nós o sabemos) domesticar? E o risco que assumimos aqui é o do ato de falar com todas as implicações. Exatamente porque temos sido falados, infantilizados (infans, é aquele que não tem fala própria, é a criança que se fala na terceira pessoa, porque falada pelos adultos), que neste trabalho assumimos nossa própria fala. Ou seja, o lixo vai falar, e numa boa.” GONZALEZ, L. Racismo e Sexismo na Cultura Brasileira. Revista Ciências Sociais Hoje, ANPOCS, p. 223–244, 1984.

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Mari Matos
Afetos Insurgentes

Poeta, escritora e psicóloga. Fala sobre luta anticolonial, violência em relações íntimas e dissidências.