A crise do Amor (Romântico)!

André Luiz
Afetos Insurgentes
Published in
20 min readNov 18, 2021

O romantismo é uma farsa que aliena, segrega e mata e já passou da hora dessa ilusão se quebrar!

“O amor me dá medo, me torna burra” (Simone de Beauvoir)

É inegável: estamos em crise…

Basta acordarmos e ligarmos qualquer meio de comunicação para recebermos uma enxurrada de notícias ruins, calamidades, desgoverno, fascismo, fake news e violências de todos os tipos.

Mas, enquanto a extrema direita e o neoliberalismo descontrolado dizimam nosso futuro, uma outra crise, muito necessária e com potencial de acarretar grandes mudanças positivas, acontece:

O amor da forma como o conhecemos, da forma como fomos ensinados a praticá-lo, vem sendo duramente questionado, criticado e rejeitado…

Em resposta a essa rejeição, vemos também uma crescente onda reacionária, que reafirma os valores tradicionais da família monogâmica cristã, procurando assim condenar todos aqueles (em especial os mais jovens) que destoem da narrativa clássica dos afetos.

Tenho certeza que todos aqui já entraram em contato com algum fragmento do discurso abaixo, seja no almoço de família, numa comédia romântica, no churrasco com a galera, no divã…

  • A sua geração não quer mais nada com nada, vocês só pensam em farra;
  • Quando eu tinha a sua idade eu já estava casada e grávida de você;
  • Não se namora mais como antigamente;
  • O cavalheirismo acabou;
  • O romantismo está morto;
  • Ninguém quer assumir ninguém;
  • As pessoas são egoístas hoje em dia, não querem constituir família;
  • Eu quero alguém que ame à moda antiga;
  • Vocês jovens não querem mais se sacrificar pelo amor, qualquer briguinha já vai cada um pro seu lado, querem tudo fácil.

São falas incômodas, carregadas com um tipo de moralismo mesquinho que não admite novas formas de pensar. Ainda assim, mesmo se baseando no ideário ilusório do “verdadeiro amor”, essa onda conservadora tem alguns motivos reais para temer a perda da sua hegemonia.

Números do IBGE revelam que a quantidade de registros de casamentos no Brasil teve uma redução de 2,7% entre 2018 e 2019, e que esse movimento de queda vem sendo observado desde 2016. A mesma pesquisa mostra que a duração dos casamentos entre 2009 e 2019 caiu de 17,5 anos para 13,8 anos.

Outra pesquisa do instituto, publicada em novembro de 2015, demonstrou um aumento de 160% no numero de divórcios entre 2004 e 2014 (de 130,5 mil para 341,1 mil ao ano). É estimado que 1 em cada 3 casamentos termine em divórcio hoje no Brasil, e com a pandemia parece que a situação tende a piorar cada vez mais: o número de divórcios realizados em cartórios no país foi o maior da história no segundo semestre de 2020*[1].

Na progressão padrão que se espera dos relacionamentos afetivos na nossa sociedade, o objetivo final é a constituição de um núcleo familiar isolado. Por isso desenvolvemos culturalmente a concepção de que amor e “compromisso” (namoro, noivado, casamento e eventualmente família) andam juntos. Dessa forma, qualquer ruptura com a instituição do matrimônio acaba sendo caracterizada como uma ruptura com o próprio ato de amar.

Mas isso não é verdade. A não-monogamia está ai para mostrar que existem diversos modos de se relacionar e desenvolver afeto, inclusive modos realmente saudáveis, que preservam a autonomia dos indivíduos, abarcam a diversidade e não excluem corpos marginalizados.

Essa crise declarada pelos conservadores é a expressão do descontentamento geral das novas gerações com as tantas instituições de opressão (monogamia, patriarcado, capitalismo…) que, na busca por governarem nossa subjetividade afetiva e emocional, instituíram uma das maiores farsas sociais/ideológicas já concebidas:

O Amor Romântico.

Vamos então tentar entender qual o papel desse amor dentro da sociedade burguesa em que vivemos.

Pós-modernidade e gestão de relacionamentos

Antes de falarmos diretamente sobre o Amor Romântico, voltemos um pouco para a suposta crise que estamos vivendo.

Quais seriam as causas desse fenômeno?

Pois bem, em algumas pesquisas que fiz por aí, de documentários a livros, de estudiosos até todo o tipo de figuras públicas e também nas discussões de “mesa de bar” (saudades), me foi possível extrair alguns suspeitos em comum.

O advento das novas tecnologias e a cultura do descarte:

A virtualização da humanidade é um fato. Continuamos seres sociais, entretanto, uma nova praça pública passou a fazer parte da nossa rotina. Uma boa parcela das nossas interações migraram para a Web, e com isso, uma forma diferente de se relacionar, mais urgente e ao mesmo tempo mais volátil, tem brotado entre nós.

Zygmunt Bauman desenvolve muito bem esse conceito de “volatilidade” em seu livro “Amor Líquido”. Em entrevista sobre a obra para a Revista Istoé, ele descreve o Amor Líquido como:

Um amor “até segundo aviso”, o amor a partir do padrão dos bens de consumo: Mantenha-os enquanto eles te trouxerem satisfação e os substitua por outros que prometem ainda mais satisfação. […] Na sua forma “líquida”, o amor tenta substituir a qualidade por quantidade — mas isso nunca pode ser feito, como seus praticantes mais cedo ou mais tarde acabam percebendo. É bom lembrar que o amor não é um “objeto encontrado”, mas um produto de um longo e muitas vezes difícil esforço e de boa vontade.

A associação desse “amor digitalizado” com a sociedade de consumo é o que torna essa crítica poderosa. Não é apenas uma reflexão sobre os efeitos das novas tecnologias nas nossas relações afetivas, mas também a afirmação de como toda essa velocidade digital serve à lógica capitalista de consumo desenfreado, obsolescência programada, descontentamento crônico e incessante busca por significado e satisfação naquilo que (ainda) não se tem.

Vale dizer que possuo inúmeras ressalvas sobre essa construção de Bauman acerca do amor. Porém, isso não é importante agora. O que importa tirarmos daqui nesse momento da analise é que um dos possíveis motivos para essa crise do amor é a lógica de consumo aliada a facilidade das novas tecnologias.

A exploração da sexualidade:

Existe um consenso entre os “mais velhos” de que da minha geração (tenho 32 anos) para baixo, somos todes promíscuos. Despudorades. Só pensamos naquilo. Queremos sarrar a cidade inteira o tempo todo. E que toda essa volúpia não nos deixa estacionarmos num relacionamento tempo o bastante para que o “verdadeiro amor” se desenvolva.

Claro que essa é uma noção moralista e retrógrada. Apesar de ainda estarmos distantes de um debate público saudável sobre as infinitas possibilidades da sexualidade humana, nas últimas décadas o tabu em relação ao tópico diminuiu consideravelmente. E, junto dessa conversa mais aberta, também veio a busca por uma vida sexualmente ativa e satisfatória para todes, em especial para as mulheres, para quem a liberdade erótica sempre foi negada*[2].

Como escreve Esther Perel, psicóloga e pesquisadora sobre matrimônio e infidelidade:

Em seu livro A transformação da intimidade, Anthony Giddens explica que, quando foi dissociado da reprodução, o sexo deixou de ser apenas uma característica da nossa biologia para se tornar uma marca da nossa identidade. Nossa sexualidade se distanciou do mundo natural pela socialização e se transformou em um “atributo do eu” que definimos e redefinimos ao longo da vida. É uma expressão de quem somos, não meramente algo que fazemos. (Casos e casos: Repensando a Infidelidade)

E nesse movimento de reinterpretar o sexo (de uma dimensão reprodutiva para uma dimensão identitária), passamos a colocar o nosso prazer em primeiro plano. Hoje é comum que as pessoas deem maior prioridade para experimentar as diversas possibilidades disponíveis entre quatro paredes e que queiram cultivar múltiples parceires. Contudo, o amor romântico é bastante retrógrado e limitado nesse sentido, não condizendo com essa nova identidade sexual que desponta no século XXI.

A hiperprodutividade:

A quarta revolução industrial já chegou, ou você acelera ou fica pra trás. Você nunca mais vai parar de estudar. Você tem que ser “goal oriented” [voltado para metas]. Programação é a nova linguagem, sem ela você não passa de um analfabeto na era digital. Você precisa aprender no mínimo 2 idiomas pra concorrer àquela promoção. Empresário não tira férias nem folga nos feriados. Você tem que ser chefe de si mesmo, pensar como uma empresa, agir como startup….

5 minutos no Linkedin e você entra em contato com toda essa baboseira. Mas, apesar de patética, a realidade é uma só: produza ou morra.

E não é apenas uma questão de sobrevivência. É um estilo de vida, uma filosofia, uma crença, um caminho. Para muitos, o único possível para uma vida correta, digna e merecedora.

Bauman critica a sociedade de consumo, descartável e hedonista. Mas existe também o outro lado da moeda. A comunidade corporativa, movida a base de ritalina, disciplinada em extrair o máximo de si própria, que goza na performance, na avaliação trimestral positiva, no indicador de 15% de aumento em produtividade e ganho líquido acima do mesmo período no ano anterior…

Em “24/7 — Capitalismo tardio e os fins do sono”, Jonathan Crary ilustra de maneira bastante objetiva o quanto estamos vivendo numa sociedade super estimulada a produzir, ao dizer que “Existem agora pouquíssimos interlúdios significativos na existência humana (com a exceção colossal do sono) que não tenham sido permeados ou apropriados pelo tempo de trabalho, pelo consumo ou pelo marketing”

E quem tem tempo pro amor vivendo nesse ritmo alucinado?! O que é extremamente irônico, pois a família monogâmica é um modelo de sociedade desenhado para produção. Quando separada do seu eu social e colocada num núcleo familiar, a vida é simplificada. Nossa casa é nossa área de atuação, problemas de ordem pública ficam da porta para fora e nosso objetivo de vida transforma-se em trabalhar e prover para nossos entes queridos. Mas a competição e a obsessão produtiva estão se intensificando de tal maneira que a ideia de relacionamentos duradouros e familiares tornam-se impeditivos para uma boa performance no mundo 24/7.

Legal, muito interessante fazer esse exercício de análise e pensar nessas possíveis causas como culpadas pela gradual derrocada do amor romântico. Acredito que todas elas podem ser usadas para explicar parte desse fenômeno, e devem ser levadas em conta ao tentarmos entender como as relações afetivas se dão na atualidade.

Todavia, é curioso perceber que nesse conjunto de possíveis causas existe um link em comum: a pós-modernidade.

Toda essa suposta crise é predicada na noção de que as gerações pós-modernas não sabem mais se relacionar. Os três tópicos acima apontam questões pertinentes quanto a essa suposta incapacidade, contudo, a falha nesse pensamento está em subentender que existe um “jeito correto de amar”. Tal concepção não leva em consideração que o amor romântico que fomos ensinados a performar é fruto de relações sociais, e portanto, dotado de historicidade e materialidade. Ou seja, ele não é do domínio da natureza, não é algo espontâneo ao corpo humano, universal e intransmutável, como o ato de respirar ou a necessidade de água para sobrevivência.

Sendo assim, gostaria de abordar essa análise por outro ângulo, usando como premissa uma afirmação muito simples:

O Amor Romântico nada mais é que uma ideologia burguesa.

Marilena Chauí define ideologia como “um ideário histórico, social e político que oculta a realidade, e esse ocultamento é uma forma de assegurar e manter a exploração econômica, a desigualdade social e a dominação política.” (O que é Ideologia ~ Coletânea Primeiros Passos)

Ou seja, assim como a ideologia capitalista prega que a propriedade privada, o lucro e a liberdade individual são processos naturais ao ser humano e portanto indiscutíveis, o amor romântico nos faz crer que questões como hierarquias relacionais, ciúmes, posse, perda de autonomia entre outras, são intrínsecas ao ato de amar e só nos cabe aceitarmos isso.

Continuando nas palavras de Chauí:

“Um dos traços fundamentais da ideologia consiste, justamente, em tomar as ideias como independentes da realidade histórica e social, quando na verdade é essa realidade que torna compreensíveis as ideias elaboradas e a capacidade ou não que elas possuem para explicar a realidade que as provocou.”

Portanto, desse ponto em diante, só nos resta deixarmos a pós-modernidade de lado por enquanto, e realizarmos um mergulho ao passado, num breve exercício dialético, para que possamos vislumbrar o desenvolvimento do amor romântico ao longo da história.

O amor no tempo: materialismo e historicidade

Deixa, vai?! (Risos)

A verdade é que desde o começo da humanidade somos atraídos a debater “o que é o amor” (em todas as suas diversas manifestações). E seria muita prepotência tentar, em alguns poucos parágrafos, definir o sentimento que para muitos é o próprio sentido da vida. Mas mesmo em meio a toda a abstração que esse tema invoca, podemos achar raízes materiais que formam as bases daquilo que fomos ensinados a reproduzir.

Para que possamos entender o que é o amor romântico, primeiramente precisamos situá-lo no tempo. De acordo com a socióloga Laurie Essig, em seu TEDxTalk intitulado “Amor S/A: como o romance e o capitalismo podem destruir nosso futuro”, o Amor Romântico começa sua jornada por volta de 1850 nos Estados Unidos, quando Esther Howland criou e comercializou os primeiros cartões de dia dos namorados. Já outros autores como Irving Singer (The Nature of Love: Courtly and Romantic) apontam sua origem na Alemanha no inicio do século 19.

Indiferente da localização e data exatas, essa noção de amor nasce entre o final da revolução francesa e meados da revolução industrial, e trás consigo os anseios da primeira geração de capitalistas modernos.

Mas quais seriam esses anseios? De que maneira aqueles que viriam a colonizar boa parte do planeta enxergavam as relações afetivas?

Para entendermos isso, vamos ter que voltar muito no tempo.

O consílio dos deuses, de Rafael — Reprodução

A transição da sociedade grega para o modelo de família patriarcal dá início à história do amor como o conhecemos. Marcada pelo poder absoluto do patriarca sobre seus membros (incluindo poder de vida ou morte), essa família, constituída também por escravos, nasce com o propósito de cuidar das posses do pai (suas terras, plantações, animais e etc…) e de garantir a consanguinidade de seus herdeiros. Portanto, é intrinsicamente ligada à preservação da propriedade privada e a subjugação da mulher ao espaço do lar, afastando-a da vida pública.

Imprescindível destacar que essa união familiar era simplesmente uma união econômica. Sentimentos não faziam parte da equação. Era de acordo comum entre os homens gregos que o matrimônio e a monogamia eram um fardo por eles carregados para que pudessem manter sua soberania dentro do lar. Inclusive, a própria lei Ateniense impunha a eles o matrimônio. No entanto, o adultério lhes era permitido e amplamente praticado*[3].

Avançando um pouco no tempo, para a sociedade romana, que apesar de suas tantas peculiaridades e diferenças herdou muito dos gregos (incluindo a família patriarcal), vamos examinar brevemente como as mulheres eram tratadas por seus “companheiros” a partir das dicas de Ovídio, poeta romano nascido em 43 A.C.

Ele sugere aos homens que controlassem suas amantes a partir de ataques à sua autoestima: “se fosse esbelta, devia chamá-la de magricela; se fosse 'forte', devia chamá-la de gorda”. Em outra passagem, justifica que no processo de conquista amorosa todas as atitudes eram válidas, desde proferir promessas sem a intenção de cumpri-las, passando pelo uso do exagero (por exemplo “seu sorriso ilumina mais que o sol”) até o uso de lágrimas para comover as mulheres, pois nas suas palavras “com lágrimas poderás amolecer diamantes” (Ovídio, A arte de amar)*[4].

Já para as mulheres, Ovídio limita-se a enfatizar a importância da beleza: Fala sobre penteados que combinem com o formato do rosto, sobre a relevância de seus vestuários e calçados. Diz também que elas devem ter acesso a alguma literatura para poderem conversar com os homens. Nada muito complexo; em especial a poesia erótica era bastante recomendada pelo poeta.

Agora paremos para refletir: família como salvaguarda da propriedade privada e herança; mulher submissa ao homem e afastada da vida pública; educada para ser um mero objeto de conquista sexual e/ou procriação; atacada em sua autoestima e manipulada; o casamento como um fardo aos homens, mas com adultério permitido a eles… Olhando por esse ângulo, 43 a.C não parece tão diferente de 2021 d.C, não é mesmo?

Tudo na idade média é feio demais rapaz…

Vamos agora até a Idade Média, um período pautado pelo determinismo religioso, no qual a mobilidade social era quase que 100% inexistente.

Antes de chegar a esse ponto, é possível dizer que o Cristianismo, ao surgir no império romano, foi extremamente disruptivo para os padrões da época. Uma religião monoteísta, que pregava o voto de pobreza, o perdão e que dizia que todos eram amados por Deus, o que contrastava muito com a noção greco-romana de que apenas os mais bravos, sábios e fortes, os heróis, que seriam amados e saudados no Olimpo. Enfim, era um dogma muito mais inclusivo que o praticado no império romano, digamos assim.

No entanto, nem todo esse amor ao próximo pregado por Cristo foi capaz de resistir às vontades do patriarcado, ou de fazer frente aos avanços da propriedade privada: ao se espalhar pela Europa, o cristianismo toma a forma da Igreja Católica, trazendo consigo todo o peso da sua moralidade, dos seus dogmas, da sua culpa, das suas restrições e punições para as relações humanas, condenando um continente inteiro a séculos de castração afetiva.

E é em meio a esse cenário sombrio, por um misto de resistência e necessidades econômicas, que nasce a o conceito de Amor Cortês.

Vamos olhar o significado da palavra cortês no dicionário:

  1. Que demonstra cortesia; que se expressa com gentileza; que se comporta de modo frágil; que é gentil; educado: professor cortês.
  2. Que se pode referir à corte, local em que habita um soberano, ou dela se pode originar: hábito cortês.

Nascido no seio dos castelos europeus, o Amor Cortês personifica um amor altamente idealizado e é dele a origem de diversos pressupostos que encontramos no amor romântico hoje.

Características do Amor Cortês:

  • Nele, o amor é visto como algo sublime por si só, algo que deve ser perseguido com todas as forças, e pelo qual vale a pena enfrentar qualquer barreira. Se tratando de Idade Média, essa é uma visão extremamente subversiva. Não havia espaço naquela sociedade para noções de individualidade, para “seguir seu próprio sonho” e coisas do tipo;
  • O amor concebido como algo terreno, humano, fomentado e ofertado entre nós, fora do escopo divino, quebrando com a ideia do amor sacrossanto imposto pela igreja;
  • É um amor com papeis de gênero bem definidos. A mulher é colocada num pedestal, e o homem se coloca a venerá-la. Sobre isso cabem dois comentários. Primeiramente, apesar da quebra com valores medievais, as estruturas estabelecidas lá atrás na sociedade Greco-romana se mantêm. No patriarcado, a mulher foi retirada da vida social, e seu papel de coadjuvante permanece. Ela é sempre o prêmio, nunca a conquistadora. Em segundo lugar, as relações materiais impostas pela soberania da propriedade privada continuam. Um dos motivos do nascimento dessa forma de amor foi descrito por nosses amigues da Não-Mono em Foco: “A transmissão da herança nesse período da Idade Média se dava considerando o parentesco lateral (irmãos e irmãs) e não vertical (filhos e filhas). Assim, os jovens nobres desabonados encontraram no cortejo e casamento com jovens ricas a passagem para sua ascensão social. Dessa forma, o amor passa a ser gradativamente uma condição para o casamento"*[5];
  • É um amor formal, cheio de regras de etiqueta e ritos de cortejo;
  • É um amor trágico, cantado por poetas e artistas da época*[6] como causa maior de todas as felicidades e dores do mundo. Lembrando que a rigidez social do período impedia sua concretude;

Algo muito importante de entendermos é que o Amor Cortês, mesmo que revolucionário no seu tempo, não conseguiu se livrar completamente das influências do Cristianismo, muito menos livrar o mundo dos tantos dogmas cristãos que permeiam nossas relações até hoje. Apesar de contraditórias, essas duas instituições crescem juntas, se assimilando e se repelindo a depender do momento histórico. Isso significa, por exemplo, que ideias cristãs como a sacralidade do casamento (“o que Deus uniu nada pode separar”) e o moralismo perante o sexo acabam complementando o imaginário afetivo da Europa medieval.

Pode-se perceber também o quanto o Amor Cortês é facilmente confundido com a ideia que temos de amor romântico. E realmente, eles são extremamente semelhantes. Mas então, o que diferencia os dois? Quando saímos de um para entrar no outro?

É com a ascensão da burguesia que essa mudança ocorre: abrem-se as portas para o liberalismo, o colonialismo, as revoluções burguesas (em especial a Francesa), os ideais iluministas (Jean-Jacques Rousseau*[7] como principal expoente) e a revolução industrial. Tais acontecimentos estabeleceram a burguesia europeia como classe dominante, e para que sua gana pela abertura de novos mercados consumidores pudesse ser saciada, se fez necessária não apenas uma ideologia econômica, mas também psicossocial, que domesticasse as classes subalternas.

Por trás da ideologia, ergue-se o véu da realidade!

Ponte dos cadeados em Paris

“Mesmo no 'afeto' é preciso ser inteligente”. (Antonio Gramsci, Cartas do cárcere)

Enfim, finalmente chegamos a constatação mais importante desse texto:

O Amor Romântico é uma ideologia criada para instrumentalizar nossas relações afetivas, para que tenhamos aspirações e comportamentos condizentes aos valores que validam o domínio da burguesia capitalista na nossa sociedade.

Atente-se para o fato que quando digo que o amor romântico é uma ideologia “criada”, não estou falando de uma conspiração em que alguns burgueses numa sala escura redigiram tais regras em um PowerPoint. Contudo, na busca por exercer seu domínio financeiro, político e ideológico em meio a luta de classes, a burguesia realizou um esforço consciente para impor seu modo de vida a todos os povos.

Modo de vida esse que tem arraigado nas suas entranhas tudo aquilo que foi descrito no nosso mergulho histórico (do patriarcado greco-romano, passando pelo fundamentalismo cristão até o amor cortês medieval), e mais algumas novas concepções, entre elas:

  • Os ideais iluministas de Rousseau, que ao pregar o papel do amor conjugal sexualizado para o bem comum da sociedade, é nomeado como precursor do romantismo. Em sua teoria, tal amor era responsável por constituir famílias, e isso ajudava a sociedade como um todo;
  • Os ideais liberais de individualidade, do homem como protagonista solo da própria vida*[8]. A crença de que vale tudo para conquistar seus sonhos, inclusive prejudicar o coletivo;
  • As ideias mercantilistas de livre comércio, busca pelo enriquecimento, o amor visto como um investimento no futuro (tendo a família como fruto e salvaguarda desse investimento).

E isso nos trás até a nossa conturbada modernidade. Apesar de ainda vivermos sob o domínio do capital e seus lacaios (patriarcado, racismo, heteronormatividade, capacitismo e etc…), estamos avançando na luta contra esse sistema, desenvolvendo consciência de classe e dando voz as “minorias”. As novas gerações, para nossa grata surpresa, tem demonstrado um elevado senso de empatia perante as dores alheias, e sendo assim, era inevitável que essa noção de amor que nos foi imposta por essas mesmas instituições opressoras fosse colocada em duvida.

Não dá mais pra acreditar nessa fantasia ideológica: O número crescente de divórcios; os feminicídios cometidos quase sempre pelos “parceiros” das vitimas; os milhões de corpos marginalizados por não se enquadrarem no ideal do príncipe e da princesa da Disney; todo o sofrimento físico e psicológico criado pela exigência absurda de fidelidade e pela mentira de que só podemos amar uma pessoa; todas as punições e castigos justificados pelo ciúmes; todos os gastos econômicos realizados na esperança de saciarmos um amor materialista, e também, toda a vergonha gerada por não termos como o acompanhar esse padrão; toda a construção identitária do casal que nos usurpa da nossa autonomia, gera dependência emocional e provoca abusos em nome dessa entidade; todo o trabalho doméstico (alienado) jogado nos ombros da mulher e retratado como carinho e cuidado; ENFIM, todo esse roteiro maquiavélico encenado por todos nós dia após dia sem questionar, na promessa de que assim seremos felizes, na verdade não passa de uma grande ilusão.

O que o amor romântico quer de nós é que nos isolemos voluntariamente dos problemas do mundo, na crença de que tudo que precisamos para a felicidade e realização pessoal podem ser encontrados nele. Como toda a ideologia, seu papel é mascarar as contradições e reforçar as estruturas dominantes. Ao nos isolarmos em pequenos núcleos, perdemos poder de reação.

Nas palavras da líder revolucionária russa, Alexandra Kollontai:

Os capitalistas se dão conta, perfeitamente, de que o velho tipo de família, em que a esposa é uma escrava e o homem o responsável pelo sustento e bem-estar da família, de que uma família desse tipo é a melhor arma para afogar os esforços do proletariado pela sua libertação, para debilitar o espírito revolucionário do homem e da mulher proletários. A preocupação pela qual pode passar a sua família priva o operário de toda sua firmeza, lhe obriga a transigir com o capital. (A Revolução Sexual e a Revolução Socialista)

Mas nós queremos mais que isso. Essa crise do amor que estamos enfrentando é, de diversas maneiras, um grito de revolta. E é aí também que entra parte das minhas divergências com Bauman. Ele critica as gerações pós-modernas por não conseguirem focar em desenvolver relacionamentos profundos, sempre procurando por algo melhor. Mas o que ele não leva em consideração (por acreditar numa interpretação idealizada do amor) é o quanto dessa busca é movida pela frustração de perceber que o conto de fadas que nos foi vendido não existe*[9].

Outra verdade é que, além de revoltados, estamos confusos, e que portanto essa crise também é um pedido de ajuda. Não é fácil sair da matrix do amor romântico. E além disso, sair pra onde? Nós que estamos vivendo a Não-Monogamia (política) somos extremamente privilegiados de certa forma. Não é fácil, mas é uma alternativa, com um comunidade pequena, porém presente e interessada em ajudar e acolher. Agora, a maioria das pessoas nunca ouviu falar disso, ou estão em situações que não facilitam em nada essa vivência.

Conclusão

Se você leu até aqui, tenho que te confessar uma coisa: Caso não tenha ficado óbvio, eu escrevi esse texto em defesa da minha geração. A realidade é que eu já não aguento mais ouvir essas críticas de um bando de pseudo-intelectuais, tias e tiozões de zap e conversadores de todos os tipos, que querem saber mais sobre as maneiras que nos relacionamos do que nós mesmos; que acham que podem nos acusar de destruidores da moral e dos bons costumes, quando na verdade nós somos reféns dessa ideologia patética que eles saudosamente chamam de romance.

E por que eu estou dizendo isso?

Porque apesar de ter pesquisado muito pra fazer esse texto e acreditar no que eu escrevi, eu sei que tem um viés aqui. Não é como se todos na minha geração estivessem se rebelando contra as “forças do mal” do amor romântico e seus comparsas. De fato, esse movimento (de forma consciente) ainda
é muito tímido e está em seu estado embrionário. Na sua grande maioria, as gerações pós-modernas ainda têm aspirações bem semelhantes a dos seus pais e devem ser criticadas por seus próprios erros também.

Mas, para aqueles que, assim como eu, estão no processo de ruptura com essa ideologia, quero que saibam que vocês não estão sozinhos. Existem muitos de nós: pessoas que não querem mais esse amor que as deixa burras (como disse Simone) e adoecidas. Que querem algo novo, revolucionário, que as impulsione para a criação de redes de luta, para emancipação e não para o isolamento. Que querem relações que lhes abram os olhos, que multipliquem os afetos, que quebrem velhos paradigmas e que sejam livres para ir e vir. E mais do que tudo, que querem viver ao lado de pessoas conscientes do seu potencial no mundo, investidas na sua capacidade de trabalhar para o coletivo, e por fim, mudar a sociedade.

Que os conservadores chorem enquanto suas ilusões desmoronam e que essa “crise” perdure até que todes estejamos libertes da monogamia, do capitalismo e do seu jeito tóxico de amar…

*[1]: Esses dados relatam a realidade brasileira, e também até certo ponto, a realidade ocidental. Contudo, é importante lembrarmos que “até hoje, mais de 50% dos casamentos no mundo são arranjados.” (Casos e casos: Repensando a infidelidade ~ Esther Perel)

*[2]: Vale notar que o grosso das criticas feitas a essa “nova sexualidade” é direcionado as mulheres. A emancipação feminina (e sua insubordinação perante o patriarcado) é a mola motriz da revolução sexual (e de todas as outras revoluções que estão por vir, diga-se de passagem).

*[3]: Referências no livro “A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado” de Friedrich Engels.

*[4]: Referências no livro “Sobre o Amor” de Leandro Konder.

*[5]: SANTATA, A. D. S.; LIMA JR, N. S. Aquilo que nos foi negado. NM em Foco. 2021. Disponível em: <https://naomonoemfoco.com.br/aquilo-que-nos-foi-negado/>. Acesso em: 02/10/21.

*[6]: Entre alguns dos principais expoentes literários dessa forma de amar, encontram-se Miguel de Cervantes (Dom Quixote), William Shakespeare (Romeu & Julieta) e Luis Vaz de Camões (Os Lusíadas).

*[7]: “Jean-Jacques Rousseau, também conhecido como J.J. Rousseau ou simplesmente Rousseau, foi um importante filósofo, teórico político, escritor e compositor autodidata genebrino. É considerado um dos principais filósofos do iluminismo e um precursor do romantismo”. Fonte: Wikipédia

*[8]: Veja que estamos falando do homem no masculino mesmo. As mulheres ainda não eram criadas para protagonizar nada. A mulher dona da própria vida é uma noção que vem sendo desenvolvida (com muitas batalhas) a poucas décadas.

*[9]: Para um critica aprofundada do conceito de Amor Líquido de Bauman, leia esse artigo bastante completo de Leonardo Antunes: https://periodicos.ufrn.br/bagoas/article/view/14816/10653

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André Luiz
Afetos Insurgentes

Comunista, Comunicador Social, Especialista em Mídia, Pós-Graduado e Não-Monogâmico.