Abaixo os "Parceiros"

Como você descreve suas relações íntimas?

Anita B.
Afetos Insurgentes
9 min readJun 19, 2020

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Esse ensaio provocativo nos convida a refletir como as nossas relações próximas se ligam a estruturas opressivas e como nós ao mesmo tempo somos moldados por elas, ao mesmo tempo que as perpetuamos. O termo “parceiro/a/e” é problematizado porque, assim como tantos outros, reproduz a estrutura de casal da monogamia. Podemos e devemos ser mais radicais do que isso para desmantelar o sistema monogâmico.

Essa artigo foi escrito originalmente em inglês e está na Biblioteca Comunitária do grupo RAD — Discussões de Anarquia Relacional.

Como você descreve suas relações íntimas?

Nas últimas décadas houve uma fuga progressista dos rótulos de papéis com gênero definido como “namorado/namorada” ou “marido/mulher” para alternativas mais neutras: companheiro/e/a, parceira/e/o. Isso geralmente era expressado como solidariedade a casais homossexuais, que seriam automaticamente excluídos ou alienados se se indicasse o sexo ou gênero de seu par. Alienar pessoas em pares homossexuais através da linguagem foi reconhecido como altamente nocivo, então mesmo muitos casais hétero se distanciaram do uso desses rótulos em favor de alternativas de gênero neutro.

Para algumas pessoas, como as não-binárias, rótulos com especificidade de gênero nunca sequer se encaixavam na relação que queriam descrever. Faz pouco sentido ser rotulade como “namorado” ou “namorada” quando não se identifica com essas categorias ou nenhuma. Esses termos significam reconhecimento ou identificação com expressão ou comportamento generificado, e reifica mais as normas generificadas (aparência, divisão de trabalho, condicionamento social nocivo) que já ferem marginalizam. Criar e usar linguagem menos nociva é importante para centralizar as experiências de pessoas nas margens e permitir melhor precisão/granularidade na comunicação do sentido.

Rótulos como “parceire/a/o” geralmente se referem a relações baseadas na Escada Rolante dos Relacionamentos

[Ilustração do livro “Rewriting the Rules”, de Meg-John Barker]

A Escada Rolante dos Relacionamentos é um conjunto de normas padrão para como as relações devem parecer e progredir através de estágios definidos desde interações casuais até a fusão numa vida e família compartilhada.

Essa performance de relação é fundada no Monogamismo, um sistema que prioriza relações sexuais e românticas que aderem a roteiros sociais normativos acima de outros tipos de intimidade. Controla os comportamentos e desejos das pessoas através da amatonormatividade (atrelagem de romance e sexo com intimidade), a forma casal (duas pessoas autônomas fundidas numa unidade-casal), a pedestalização do sexo (priorizar sexo como um fator que distingue a relação, e valorizar relações que incluem sexo acima de outras).

Considere se usar a terminologia “parceira/e/o” é preciso para descrever o jeito que você se relaciona com (algumas) pessoas. Ao construir relações com outres, você usa sexo como validação da autenticidade ou profundidade da relação? Vocês se co-identificam como uma unidade-casal? Vocês estão seguindo os passos da Escada-Rolante dos Relacionamentos, trabalhando em direção a finanças conjuntas, co-habitação, casamento, família e propagação de riqueza geracional? Se estiver, pare! Parceira/e/o pode realmente descrever o papel de relação que você está performando. Infelizmente, o papel social e as expectativas descritas por esse termo e outros são nocivas para todas/es/os nós. Considere não apenas abandonar essas palavras, mas mudar seu comportamento para que elas não sejam mais nem sequer aplicáveis.

Relações seguindo a Escada Rolante dos Relacionamentos se apoiam em coerção e controle para limitar o comportamento e desejos da outra pessoa. Por exemplo, a cultura do namoro atrela exclusividade sexual com uma outra pessoa como símbolo de cuidado e compromisso. Isso torna a relação mais “séria” e aumenta os custos de se desassociar livremente da outra pessoa. Divergência de acordos explícitos ou implícitos é tida como “traição”, que é usada para justificar até as mais extremas formas de retaliação violenta. É claro, o conceito de traição se apóia na existência de regras que alguém está “quebrando”, e o “direito” ao acesso exclusivo ao corpo e comportamento de outra pessoa.

Às vezes até mesmo desejos e fantasias (especialmente sobre sexo fora da relação definida) levam à reação severa por “traição”. Outra aplicação insidiosa desse controle é o conceito de “traição emocional”, onde qualquer forma de proximidade, confiança ou intimidade fora do par-parceiro é vista como uma ameaça.

Dentro do sistema do Monogamismo, ninguém pode realmente consentir à monogamia — acordo sob coerção não é uma escolha livre. Ao contrário, somos canalizadas para dentro desse sistema e implicitamente dirigides para sua recapitulação, então devemos resistir ativamente para sequer nos aproximarmos de relações não-coercitivas.

De fato, monogamia e ser-casal são propagandeados como o melhor ou o único jeito de acessar apoio social e material. Participar de um casal é agrupado com receber trabalho de cuidado e apoio, acesso à assistência médica, cidadania, poder de decisão médica e legal e respeitabilidade pelo convencional. Ser-casal não é apenas uma escolha pessoal, mas participação ativa em um sistema coercitivo que exclui outras pessoas de recursos essenciais que poderiam significar não apenas liberdade, mas sobrevivência. Para não mencionar que a consciência e acesso à informação e recursos de alternativas — incluindo, mas não apenas, moradia coletiva, coparentalidade intencional em relações nunca de casais, poder de decisão médica dado a uma pessoa sem parentesco, zonas autônomas temporárias para expressar nossos desejos em espaços que desafiam a normatividade hétero e mono — são poucas e esparsas.

Algumas pessoas, especialmente aquelas em favor da agenda LGBT assimilacionista, podem argumentar que casais não-heterossexuais que usam a linguagem “parceire/o/a” torna suas relações mais aceitas pelo convencional. Um caminho para a legitimidade é performar o ser-casal: viver como parte de uma unidade-casal, às custas da autonomia e livre associação. Isso tipicamente garante atenção positiva e reconhecimento em círculos sociais, aceitação por famílias como um par que vai reproduzir e continuar o legado da família, e marketing direcionado de estruturas capitalistas que reforçam a unidade familiar consumidora (a indústria do casamento, imobiliária, mobília de casas privilegiadas, bens de luxo). Esses são os marcadores de privilégio de casal e podemos sentir validação após a exclusão e marginalização por tanto tempo. No entanto, procurar validação pelo Capitalismo-Arco-Íris apenas perpetua a escravidão a esse sistema. Prejudica todos nós basear a legitimidade de seu corpo, ser, identidade nas mesmas estruturas que te impede de viver uma vida livre e autêntica.

Uma outra abordagem consiste em criar “novos” rótulos como “Parceire Queer Platônique”: amigues queer que têm um laço íntimo — independente do sexo e gênero das pessoas envolvidas — e que querem ter certeza de que esse laço não seja confundido com algo realmente revolucionário. Esse termo não considera o prejuízo do termo “parceira/e/o” e até vai um passo à frente ao reforçar a divisão entre o platônico e o romântico-sexual. Essa é uma outra forma de remodelar as relações Queer em uma forma de casal hétero. Essa luta é menos sobre sexo e gênero de seu “parceire/o/a” e mais contra as estruturas opressivas que promovem o ser-casal como um estilo de vida com valor.

Vamos desconstruir a validade de “parceires/as/os” por completo, em vez de achar jeitos de pessoas LGBT/Queer se submeterem à normatividade mono-hétero-cis!

Enquanto casais monogâmicos são os piores ofensores, o poliamor não escapa a essa crítica.

O poliamor ainda é construído sobre as mesas bases que a Escada Rolante dos Relacionamentos, amatonormatividade, obrigação de compromisso e o controle dos desejos e comportamento de outras pessoas.

Pode haver mais flexibilidade nos acordos interpessoais feitos em parcerias de relacionamentos poliamorosos se comparados com aqueles estritamente monogâmicos (por exemplo, a total falta de exclusividade sexual e comunicação explícita sobre expectativas em vez de seguir um modelo padrão); no entanto ainda há uma divisão clara entre quem está “em um relacionamento” e isso confere um conjunto quase idêntico de privilégios sociais e dinâmicas de poder coercitivas.

Alguns dos desafios que pessoas poli manifestam — como se sentir incapazes de “sair do armário” para membros da família sobre pessoas importantes em suas vidas e falta de sanção estatal de direitos conjugais — não são exclusivas ao poliamor nem são solucionadas pela performance do Monogamismo em conjuntos de três, quatro, ou uma rede interconectada de casais construída com base em controle e coerção dos “parceiros/es/as” (tanto diretamente quanto por consentimento de terceiros/as/es).

O poliamor não abala a mono-normatividade; em vez disso, é uma abordagem assimilacionista que simplesmente procura incluir mais pessoas sob sua forma particular de opressão. Usar “parceiro/a/e” para descrever pessoas se relacionando dessa maneira pode ser preciso — e ainda não é um argumento efetivo para a legitimidade de “parceires/as/os” em qualquer visão de liberação Queer que valha alguma coisa.

Como produtos e participantes numa cultura Monogamista, visões fora desse paradigma são raras e comumente silenciadas. Mesmo que seja importante desconstruir práticas Monogamistas — em parte por meio de desmerecimento de rótulos de papéis opressores — abolição tem a ver com criar algo novo tanto quanto destruir o sistema antigo e prejudicial. O que significa recusar rotular alguém como sue “parceire/a/o”? Você tem medo de não poder controlar ou “vetar” suas ações, de outras pessoas não verem sua relação como válida ou importante, de que ela seja desvalorizada aos olhos alheios? Ao valorizar essas coisas, você prioriza o controle e a coerção com as quais o Monogamismo condicionou você a se importar.

Talvez você já desafie esses sistemas e comportamentos aprendidos, através da Anarquia Relacional ou outra prática de construção de relações que seja não-hierárquica, não baseada em regras, que reforçada a autonomia, e é voltada para a comunidade. Isso é ótimo!

Pense em todos os jeitos que isso cria alegria, benefícios práticos, consistência com outros objetivos políticos e inspiração para a sua vida e a vida de outras pessoas à sua volta. Você pode estar demonstrando alguns dos valores que vão construir um mundo melhor e mais livre. Se você está fazendo isso, e ainda está usando o termo “parceire/a/o” para descrever suas relações, pense no que isso comunica às outras pessoas.

Não importa o quão radicais suas relações sejam em privado, o jeito que você se comunica publicamente sobre elas é o que outras pessoas verão. Mesmo que você pessoalmente acredite que o jeito que você usa “parceiro/e/a” é diferente e radical e se opõe à hegemonia Hétero, isso não será percebido dessa maneira por quase nenhum público. Em vez de inspirar outras pessoas à ação anti-casal, anti-monogamista, e de liberação Queer, você está legitimando a forma casal e o roteiro heterossexual.

Usando essa palavra, você confere apoio ao modelo dominante de relacionamento e torna ainda mais difícil para as outras pessoas viverem fora da prisão da normatividade que as enjaula dentro da monogamia, casamento e Heterossexualidade.

Imagine relações construídas sobre possibilidades expansivas, onde você não policia ações alheias e não é alvo de policiamento. Encontre outras pessoas baseando-se em desejo mútuo de descobrir-se mutuamente e construir, em vez de perpetuar uma hierarquia de intimidade baseada em sexo a na idealização da família nuclear heteropatriarcal. Valorize suas amizades. Invista tempo, cuidado e energia nessas relações e recuse-se a admitir a rejeição de outras pessoas que as chamam de “apenas amigues/as/os”. Abolir “parceires/os/as” é um passo decisivo para desmantelar a dominância da forma casal em nossas comunidades. Quantos laços e projetos revolucionários foram bloqueados para proteger a forma casal , ou para aceder às demandas de “parceires/os/as”? Em vez disso, vamos construir comunidades que atendam às necessidades de todas as pessoas e nos empenhar conjuntamente na construção de um futuro melhor. Suprima a tendência à posse de corpos alheios, e à criação de escassez sexual artificial que serve apenas para nos isolar de nossos próprios corpos e criar isolamento entre nós. Não há “escolha” ética de participação nesse sistema e de fato a única opção é de lutar ativamente contra ele.

Não importa o quão “aberto” ou visível ou extensivamente negociado o conceito de “parceiros/es/as” (sua estrutura Monogamista subjacente) que nos impede de uma revolução nas relações Queer.

Vamos abolir “parceiros/os/es” e em vez disso focar-nos em relações autênticas, voluntárias, para benefício mútuo — relações liberatórias. Construir laços baseados em valores políticos, comunidade, apoio mútuo. Laços em que a intimidade não está atrelada ao sexo ou expectativas sociais de normatividade, ou a unidade da família nuclear consumidora capitalista. Ao categorizar suas relações como “parceires/as/os” versus “amigues/as/os” (ou na verdade qualquer rótulo já socialmente estabelecido), você cria uma hierarquia de intimidade que automaticamente prejudica aqueles às margens e limita as nossas possibilidades, de todo mundo.

Mudar a linguagem pode ser difícil, e mudar o comportamento ainda mais, mas é importante construir um novo futuro no modo Queer de relacionar-se. A resistência só acontece por meio de luta. Relações Queer são expansivas, infinitas e uma parte integral da Revolução. Como você vai investir nesse futuro? Vamos abolir os “parceiros/as/es”!

Esse artigo foi escrito e debatido por participantes na RAD Unconference 2020. A Unconference é evento horizontal em que discute o tema da Anarquia Relacional, além de produzir conteúdos como zines, artigos, e dando origem a grupos de estudo e de trabalho. A RAD se propõe a trazer a abordagem anarquista e libertária ao tema não só da não-monogamia mas de toda o conjunto de relações íntimas, incluindo também as amizades e companheires de luta.

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