Coisas boas podem acontecer com este corpo

Mari Matos
Afetos Insurgentes
Published in
6 min readSep 21, 2022

Reflexões sobre prazer, sexualidade e violência; tentativas de vivenciar o corpo para além das opressões

via pexels

ela me chupa

e eu me pergunto

se meu gozo lhe cai bem

sua boca exploratória

a qualquer momento

pode acabar encontrando

a minha dor

indigesta

_ mari matos

Sexualidade é uma temática que, para muitos de nós, mistura dor, prazer, trauma, abuso, afeto, medo, vergonha, fantasia, desejo e mais um tanto de coisa. Tudo junto ao mesmo tempo.

Ao longo da vida, aprendemos que sexo é pecado e, portanto, passível de punição. Relações sexuais teriam como consequência inevitável um misto de doenças, inferno e gravidez indesejada. Tudo um tanto sujo e perigoso. A única maneira de viver isso com mais segurança seria através do casamento. Sair transando por aí só porque tem vontade, de jeito nenhum.

Além disso, existe todo um jogo para fisgar o coração de alguém, o qual pode ser rapidamente aprendido através de novelas, séries e produções hollywoodianas. Você deve se empenhar ainda mais para isso se determinaram que você é uma mulher e que sua cor preferida é rosa. Na verdade, sexo em relações monogâmicas entre pessoas cis-hetero sempre me soou como uma moeda de troca: trepadas regulares para ele, felizes para sempre para ela.

De diversas formas, absorvemos que o casamento deveria ser um dos nossos maiores objetivos de vida. Ao mesmo tempo, aquelus de nós que saímos do padrão branco, magro, cis, hetero e sem deficiências somos constantemente lembrades de que o amor romântico não é para nós. Somos pessoas feias, sujas, nojentas, doentes, anormais. Sendo assim, quem iria nos querer? Como poderíamos ser felizes?

A experiência também nos mostra que nos relacionarmos dentro desse sistema é, via de regra, frustrante e, por vezes, bastante humilhante. A troca de afeto e o respeito são a exceção. Além disso, sempre existe um peso muito grande. Afinal, qualquer match no aplicativo pode acabar virando “O” grande amor da vida.

Mesmo bons encontros, quando não “evoluem” para um namoro e casamento, podem parecer um fracasso. Outro dia, eu li pelas redes um post que dizia que namoro só serve para duas pessoas decidirem se desejam passar o resto de suas vidas juntas: se sim, não devem perder mais tempo; se não, não devem perder mais tempo. Aparentemente, não podemos ter uma troca com alguém só porque está… legal.

Esse é um texto difícil de escrever. Como muitas pessoas, eu carrego grandes traumas por violências sexuais, mas também por conta da própria dinâmica relacional estabelecida pela monogamia. Afinal, nesse sistema, os abusos proliferam, pois nos tornamos propriedade e proprietáries umes des outres. Ele também dita quem está bem colocade no mercado amoroso, e a maioria de nós está numa posição deplorável. Assim como determina uma série de regras, costumes e rituais para um suposto sucesso relacional. Um negócio um tanto trabalhoso, violento e desprazeroso. Por isso, a importância de pensarmos outros caminhos que tenham como base a autonomia, pluralidade, consentimento e apoio mútuo.

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Muita gente diz que não-monogamia é coisa de homem-cis-hetero-branco. No entanto, pelo menos no campo das não-monogamias com embasamento político, isso está bem longe de ser verdade. As pessoas mais ativas nessa luta tendem a ser justamente aquelas que mais sofrem com as opressões sociais, das quais a monogamia faz parte.

Eu entendo que, quando tocamos no assunto, muita gente fora da norma coloca o “eu não conseguiria” a partir de uma história de dor, exclusão e preterimento. Querem viver esse amor que sempre lhes foi negado, mas que promete ser incrível. Num mundo em que nossa existência é tão hostilizada, faz sentido buscarmos espaços de conforto e cura. O problema é acreditarmos que iremos encontrar isso justamente nos sistemas que nos violentam.

Por quantas frustrações estamos dispostes a passar na infinita busca por um ideal? Será que o amor colonial é mesmo o melhor lugar de acolhimento? Não há dúvidas sobre a importância de construirmos vínculos significativos, mas quanto se perde ao somarmos controle e posse a estes vínculos? Quantas relações deixamos de ter ao centralizarmos em uma?

Uma das formas pelas quais os sistemas de opressão operam é através de ameaças e violências contra pessoas que saem da norma. Lembra que eu falei ali no começo sobre os perigos da gravidez indesejada e ISTs? Estes são narrados como destinos praticamente selados para quem ousa viver fora da norma. Isso, num tom de “bem feito” e com o fatalismo do “ agora, sua vida acabou”.

E, assim… viver é risco. Essa é uma verdade para todo mundo, inclusive para quem vive abraçado no padrão. Mas esses discursos não são sobre isso. Se fossem, até poderiam ser interessantes para conversarmos sobre estratégias de cuidado através do acesso a camisinha e outros métodos de prevenção, testagem, aborto seguro e direito a tratamento digno e medicação. Afinal, essas questões fazem parte da vida e precisamos olhar para elas. Porém, todos esses recursos são fervorosamente sabotados pelos campos conservadores.

Além disso, ao reivindicar o direito de tecer caminhos que façam sentido para nossas vidas e nossos corpos, sofremos diversas formas de retaliação. Podemos ser expulses de casa, perder o emprego, sofrer julgamento social, ameaças, espancamento, estupro, assédio e morte. Isso é uma forma de nos punir e cercar pelo medo. Existe também toda uma ideia de que ao tomarmos alguns rumos estaremos fadades à solidão e à infelicidade.

Já dentro das “relações sérias” — que são o lugar “certo” para o exercício limitado de nossa sexualidade — o sexo parece muito mais uma obrigação. Torna-se uma atividade a ser executada em nome da estabilidade e bem-estar do casal. Ou seja, não é exatamente um espaço propício para explorar o prazer. Além disso, quando as vontades não se alinham, é comum que uma pessoa passe a ver a outra como sendo portadora de um problema que deve ser solucionado. Afinal, não nos prometeram o match perfeito?

Diante de tanta opressão, é bastante compreensível que muites de nós tenhamos dificuldades em abrir espaço para o prazer em nossas vidas. Não me entenda mal… Eu sou uma forte defensora do direito de chorarmos nossas dores, de sentirmos raiva ou o que quer que o momento peça. Porém, sempre me preocupo quando as pessoas se definem exclusivamente a partir do trauma.

O título desse texto é inspirado em uma sessão de terapia corporal que eu tive anos atrás, a qual eu cheguei com a certeza de que seria absurdamente dolorosa. Mas, ali, me veio uma sensação muito gostosa de que eu não precisava viver mais presa na dor, que coisas boas podem acontecer com este corpo.

Nossos machucados são um fator importante para a compreensão do mundo e de nossas vidas. Eles, inclusive, indicam um tanto do que precisa mudar. No entanto, apesar deles ou até por meio do cuidado com eles, podemos descobrir muito riso, gozo e afeto em nossos corpos. Esses processos só são possíveis quando podemos experienciar a vida sem ter que lidar com tanta regulamentação externa, inclusive das pessoas que amamos.

A não-monogamia revolucionária é um movimento de oposição a sistemas de opressão. Ainda que os obstáculos sejam muitos, propomos um rompimento com os ideais do amor colonial. Isso é uma maneira de tentar habitar esse mundo de uma maneira melhor do que dita a norma. Assim, podemos abrir mais espaço em nossas vidas para curar feridas e para que coisas boas possam acontecer, independente do que isso seja para cada um de nós.

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Mari Matos
Afetos Insurgentes

Poeta, escritora e psicóloga. Fala sobre luta anticolonial, violência em relações íntimas e dissidências.