Comunidade: Comunhão Amorosa, por bell hooks

Não há lugar melhor para aprender a arte de amar do que em uma comunidade.

Afetos Insurgentes
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11 min readSep 1, 2020

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Para assegurar a sobrevivência em qualquer lugar do mundo, mulheres e homens se organizam em comunidades. Comunidades sustentam a vida — não as famílias nucleares, nem os “casais”, e certamente não um individualismo rude. Não há lugar melhor para aprender a arte de amar do que em uma comunidade.

Adaptação do capítulo Comunidade, em “All About Love — New Visions ”, de bell hooks.

“Dentro e por meio das comunidades reside a salvação do mundo”. — M. Scott Peck

Em seu livro The Different Drum: Community Making and Peace, Peck define comunidade como a aproximação de grupos de indivíduos “que aprenderam a se comunicar honestamente uns com os outros, cujos relacionamentos vão mais a fundo do que as máscaras da compostura e que desenvolveram algum comprometimento significativo de ‘se alegrarem juntos, de lamentarem juntos’ e de ‘encantarem uns aos outros e fazerem as condições dos outros as suas próprias’”.

Nós nascemos neste mundo de comunidade. Raramente, se é que acontece, crianças vêm ao mundo em isolamento, com apenas um ou dois espectadores. Crianças nascem em um mundo cercado de possibilidades de comunidades. Família, médicos, enfermeiros, parteiras e até observar estranhos compõe esse campo de conexões, umas mais íntimas que outras.

O fracasso do núcleo familiar patriarcal e o papel da família estendida

Muitas das conversas sobre “valores familiares” na nossa sociedade destacam as famílias nucleares, que são formadas por mãe, pai e preferencialmente uma ou duas crianças. Nos Estados Unidos, essa unidade é apresentada como uma organização primária e preferível para a criação de filhos, é a imagem fantasiosa da família. Dificilmente alguém em nossa sociedade vive em um ambiente como esse. Até indivíduos que foram criados em famílias nucleares geralmente têm experiências meramente pequenas dentro de uma unidade maior de família estendida. Capitalismo e patriarcado juntos, como estruturas de dominação, trabalharam ao longo do tempo para minar e destruir essa unidade maior de parentes estendidos. Substituir a comunidade familiar por uma unidade privada, menor e autocrática ajudou a aumentar a alienação e tornou abusos de poder mais possíveis de serem praticados. Isso deu poder absoluto ao pai e poder secundário, direcionado às crianças, para a mãe. Ao encorajar a segregação das famílias nucleares das famílias estendidas, mulheres são forçadas a se tornarem mais dependentes de um homem, individualmente, e crianças ficam mais dependentes de uma mãe.

O fracasso do núcleo familiar patriarcal vem sendo amplamente documentado. Exposto como disfuncional mais frequentemente do que funcional, como lugar de um caos emocional, negligência e abuso, apenas aqueles em negação continuam a insistir que este é o melhor ambiente para a criação das crianças. Ao mesmo tempo em que não quero sugerir que famílias estendidas não tem a mesma propensão a serem disfuncionais, pela simples virtude de seu tamanho e da inclusão de parentes não-consanguíneos (por exemplo, indivíduos que se casam dentro da família e suas relações de sangue), eles são diversos e, portanto, são propensos a incluírem a presença de alguns indivíduos que tem sanidade, tanto quanto são amorosos.

Quando eu comecei a falar publicamente sobre famílias disfuncionais, minha mãe ficou furiosa. Para ela, minhas conquistas eram um sinal de que que não poderia ter sofrido “tanto assim” em nossa família nuclear. Ainda assim, eu sobrevivi e prosperei apesar da dor da infância precisamente porque havia indivíduos amorosos entre nossos familiares estendidos que cuidaram de mim e me deram um senso de esperança e possibilidade. Eles me mostraram que nossas interações familiares não constituem uma norma, que havia outras maneiras de pensar e se comportar, diferentes dos padrões aceitos em nossa casa. Essa história é comum. Sobreviver e triunfar por sobre as famílias nucleares disfuncionais pode depender da presença do que a psicanalista Alice Miller chama de “testemunho iluminado”. Praticamente todo adulto que experimentou sofrimento desnecessário na infância tem uma história sobre alguém cuja bondade, carinho e preocupação os devolveu o senso de esperança. Isso só pode acontecer porque famílias existem como parte de comunidades maiores.

A família nuclear patriarcal privada ainda é uma forma relativamente recente de organização social do mundo. A maior parte dos cidadãos do mundo não tem, e nunca terá, os recursos materiais para viver em unidades menores segregadas de comunidades familiares maiores. Nos Estados Unidos, estudos mostram que fatores econômicos (o alto custo de moradia, desemprego) estão rapidamente criando um clima cultural em que filhos crescidos estão deixando as famílias mais tarde e frequentemente estão retornando ou nunca saindo de casa. Pesquisas de antropologistas e sociólogos indicam que unidades menores privadas, especialmente aquelas organizadas ao redor do pensamento patriarcal, são ambientes insalubres para todo mundo. Globalmente, uma criação saudável e iluminada é melhor realizada em um contexto redes de comunidade e de famílias estendidas.

A família estendida é um bom lugar para aprender o poder da comunidade. Entretanto, só será uma comunidade se houver comunicação honesta entre os indivíduos que a compõe. Famílias estendidas disfuncionais, assim como unidades de famílias nucleares privadas, são costumeiramente caracterizadas por ter uma comunicação desorientada. Manter segredos familiares frequentemente faz com que seja impossível que grupos estendidos construam uma comunidade.

“Amizades amorosas nos dão um espaço para experimentar a alegria da comunidade.”

O amor nas amizades e sua desvalorização perante o amor romântico

Se nós não experimentamos amor em nossas famílias estendidas de origem (que é o primeiro lugar de comunidade oferecido a nós), o outro local em que crianças, em particular, têm oportunidade de construir comunidades e conhecer o amor é nas amizades. Como nós escolhemos nossas amizades, muitos de nós, da infância à fase adulta, buscamos amigos para cuidar, respeitar, aprender e, com tudo em volta, se nutrir do crescimento que não encontramos na família.

Escrevendo em suas comoventes memórias Never Let Me Down [sem tradução], Susan Miller relembra:

“Eu seguia pensando, o amor deve estar aqui, em algum lugar. Eu olhei e olhei para dentro de mim mesma, mas não conseguia encontrá-lo. Eu sabia o que era o amor. Era o sentimento que eu tinha pelas minhas bonecas, pelas coisas lindas, por certos amigos. Mais tarde, quando eu conheci a Debbie, minha melhor amiga, eu tive ainda mais certeza de que amor era o que fazia a gente se sentir bem. Amor não era o que fazia você se sentir mal, odiar a si próprio. Era o que te confortava, te fazia se sentir livre por dentro, fazia você rir. Algumas vezes, Debbie e eu brigávamos, mas era diferente, porque nós éramos basicamente e essencialmente conectadas.”

Amizades amorosas nos dão um espaço para experimentar a alegria da comunidade — em uma relação em que nós aprendemos a processar todas as nossas questões, a lidar com diferenças e conflitos enquanto permanecemos conectados.

Muitos de nós fomos criados para acreditar que ou encontraremos o amor em nossa primeira família (nossa família de origem) ou, se não for nela, na segunda família que se espera que a gente constitua através dos casais comprometidos romanticamente, particularmente aqueles que levem a um casamento e/ou a laços para a vida toda. Muitos de nós aprendem quando crianças que amizades nunca devem ser vistas como mais importantes que laços familiares. Entretanto, a amizade é o lugar em que a grande maioria de nós tem os primeiros vislumbres de amor redentor a comunidade carinhosa.

Frequentemente nós não damos valor para amizades, mesmo quando elas são interações em que experimentamos prazer mútuo. Nós as colocamos em uma posição secundária, especialmente em relação a laços românticos. Essa desvalorização das nossas amizades cria um vazio que não conseguimos ver quando estamos devotando toda a nossa atenção a encontrar alguém para amar romanticamente ou dando toda a nossa atenção a um indivíduo que escolhemos amar. Relacionamentos amorosos de comprometimento são mais propensos a se tornarem de co-dependência quando cortamos todos os laços com amigos para dar esses laços aos que consideramos uma atenção prioritária ou exclusiva.

Eu me senti especialmente triste quando amigos próximos que estavam solteiros se apaixonaram e, simultaneamente, afastaram-se da nossa amizade. Quando uma grande amiga escolheu um parceiro que não se conecta comigo de forma alguma, isso me causou sofrimento. Não só eles passaram a fazer tudo juntos, como os amigos com quem ela permanece próxima são os que ele gosta mais. A força da nossa amizade foi revelada pela nossa vontade de confrontar abertamente a mudança em nossas ligações e em fazer mudanças necessárias. Nós não nos vemos tanto quanto nos víamos antes, e não nos ligamos mais diariamente, mas as conexões positivas que nos ligam permanecem intactas.

Quanto mais genuíno for o nosso amor romântico, menos nos sentimos chamados a enfraquecer ou cortar laços com amigos de modo a estreitar laços com os parceiros românticos. Confiança é a batida do coração de um amor genuíno. E nós acreditamos que a atenção que nossos parceiros dão a amigos, ou vice-versa, não tira nada de nós — não somos diminuídos. O que aprendemos por meio dessa experiência é que nossa capacidade de estabelecer conexões profundas em amizades fortalece nossos laços íntimos.

Quando vemos o amor como a vontade de nutrir o crescimento espiritual de um ou outro, por meio de atos de cuidado, respeito, conhecimento e assumindo responsabilidade, a fundação de todo o amor em nossa vida é o mesmo. Não há amor especial reservado exclusivamente para parceiros românticos.

Amor genuíno é a fundação do nosso compromisso com todo mundo que escolhemos amar. Se vamos necessariamente agir diferentemente dependendo da natureza de uma relação, ou dos vários graus de comprometimento, os valores que mostram nosso comportamento, quando enraizados em uma ética amorosa, são sempre os mesmos para qualquer interação. Um dos relacionamentos mais longos da minha vida foi um em que eu me comportei da maneira mais tradicional de colocá-lo acima de todas as outras interações. Quando ele se tornou destrutivo, eu achei difícil sair. Eu me vi aceitando comportamentos (abusos verbais e físicos) que eu não teria tolerado em uma amizade.

“Muito frequentemente mulheres entendem que é um sinal de comprometimento, uma expressão de amor, aguentar grosseria e crueldade, perdoar e esquecer.”

O amor romântico como um amor “especial” — e seu potencial destrutivo

Eu fui criada convencionalmente para acreditar que esse relacionamento era “especial” e que eu deveria reverenciá-lo acima de tudo. A maioria dos homens e mulheres nascidos nos anos 1950 ou antes foram socializados para acreditar que casamentos e/ou laços de comprometimento romântico de qualquer tipo deveriam ter precedência ante todas as outras relações. Se eu tivesse avaliado meu relacionamento do ponto de vista que enfatizasse crescimento em vez de dever e obrigação, eu teria entendido que abuso mina os laços de forma irreparável.

Muito frequentemente mulheres entendem que é um sinal de comprometimento, uma expressão de amor, aguentar grosseria e crueldade, perdoar e esquecer. Na verdade, quando amamos da forma certa nós sabemos que a resposta saudável e amorosa a crueldade e abuso é nos colocarmos para fora do caminho do mal. Ainda que eu fosse comprometida com o feminismo quando era jovem, tudo o que eu sabia e acreditava politicamente sobre igualdade foi, por um tempo, ofuscado por uma educação religiosa e familiar que me criou para acreditar que tudo tinha de ser feito para salvar “o relacionamento”.

Em retrospecto, eu vejo como a ignorância sobre a arte de amar colocou o relacionamento em risco desde o começo. Nos mais de 14 nos que ficamos juntos, nós estivemos muito ocupados repetindo padrões antigos aprendidos na infância, agindo com informações desorientadas sobre a natureza o amor, para entender as mudanças que precisávamos fazer em nós mesmos para termos a possibilidade de amar alguém. Importante, assim como outras mulheres e homens (independentemente da orientação sexual) que estão em relacionamentos em que são objeto de terrorismo na intimidade, eu teria conseguido deixar esse relacionamento mais cedo ou teria me recuperado por dentro se eu tivesse neste laço o nível de respeito, cuidado, conhecimento e responsabilidade que eu levei às amizades. Mulheres que não tolerariam mais uma amizade em que elas fosse emocionalmente e fisicamente abusadas permanecem em relacionamentos românticos em que essas violações ocorrem regularmente. Se elas tivessem levado a esses laços os mesmos padrões que elas levam para a amizade, elas não aceitariam serem vítimas.

Naturalmente, quando eu deixei esse relacionamento de longo prazo, que me tomou tanto tempo e energia, eu estava terrivelmente sozinha e solitária. Eu aprendi, então, que é mais satisfatório viver uma vida dentro de um círculo de amor, interagindo com pessoas amadas com quem temos comprometimento. Muitos de nós aprendem da forma mais dura ao nos vermos sozinhos e sem conexões significativas com amigos. E tem sido tanto a experiência de viver com medo do abandono em relacionamentos românticos quanto a de ser abandonada que nos mostrou que os princípios do amor são sempre os mesmos em qualquer ligação com significados. Amar bem é uma tarefa de qualquer relacionamento, não só em ligações românticas. Eu conheço indivíduos que aceitam desonestidade em suas relações primárias, ou que são eles mesmos desonestos, quando eles nunca aceitariam isso em uma amizade. Amizades satisfatórias em que dividimos amor mútuo nos fornecem um guia para o comportamento em outras relações, incluindo as românticas. Elas fornecem a todos nós um caminho para conhecer a comunidade.

A solitude como caminho para o companheirismo

Todos nós desejamos uma comunidade amorosa. Isso melhora a alegria de viver. Mas muitos de nós buscamos uma comunidade apenas para escapar do medo de ficarmos sozinhos. Saber como viver solitariamente é central na arte de amar. Quando podemos ficar sozinhos, nós podemos ficar com os outros sem os usarmos como meio de escape.

Por toda a sua vida, o teólogo Henri Nouwen enfatizou o valor da solitude. Em muitos de seus livros e ensaios ele nos desencoraja a ver a solitude como sendo uma necessidade de privacidade, compartilhando seu senso de que na solitude nós encontramos o lugar em que podemos olhar para nós mesmos de verdade e deixar de lado nosso eu falso. Eu seu livro Reaching Out, ele salienta que “solidão é uma das fontes mais universais de sofrimento humano hoje em dia”.

“Nenhum amigo ou amante, nenhum marido ou esposa, nenhuma comunidade ou comuna, será capaz de colocar de lado nossos mais profundos desejos de unidade e completude.”

Sagazmente, Nouwen sugere que coloquemos esses sentimentos de lado para abraçar nossa solitude. Em vez de correr de nossa solidão e tentar esquecê-la ou negá-la, nós temos de protegê-la e transformar em uma frutífera solitude.

“Solidão é dolorosa; solitude é pacífica. Solidão faz com que nos agarremos aos outros em desespero; solitude nos permite respeitar os outros, suas características únicas e criar uma comunidade.”

Indivíduos jovens e velhos que lutam para superar medos de ficarem sozinhos muitas vezes escolhem a prática da meditação para abraçarem a solitude. Aprender a se sentar em quietude e silêncio pode ser o primeiro passo para conhecer o conforto em ficar sozinho. Se mover da solitude para a comunidade eleva nossa capacidade de companheirismo uns com os outros.

“O amor que construímos em comunidade permanece conosco aonde quer que nós formos.” [na imagem: “Vamos amar nossa comunidade.”]

Começar a construir comunidade é possível em qualquer lugar

Aproveitar os benefícios de viver e amar em comunidade nos empodera a nos encontrar com estranhos sem medo e estender a eles o presente da abertura e reconhecimento. Só de falar com um estranho, tomar conhecimento de sua presença no planeta, nós fazemos uma conexão.

Ser gentil e cortês nos conecta a outra pessoa. Diferentemente de outros movimentos por mudança social que requerem organizações conjuntas e presenças em encontros, nós podemos começar o processo de construir uma comunidade em qualquer lugar em que estivermos. Nós podemos começar compartilhando um sorriso, um cumprimento caloroso, batendo um papo; fazendo um ato gentil ou reconhecendo uma gentileza oferecida a nós.

O amor que construímos em comunidade permanece conosco aonde quer que nós formos. Com esse conhecimento como nosso guia, nós fazemos com que qualquer lugar para que nós formos seja um lugar em que retornemos ao amor.

Texto original: bell hooks, no livro “All About Love (New Visions)”; Tradução: Maurício Dehò; Adaptação: Anita Bertelli.

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